sábado, 27 de novembro de 2010

Fiquem atentos


Estamos iniciando o ano litúrgico, com o primeiro domingo do Advento. O texto do Evangelho das missas (Mt 24,37-44) é tirado do último grande discurso de Jesus antes de sua Paixão e morte.

 

Composição – Para compô-lo, Mateus reescreveu o chamado “discurso escatológico” do capítulo 13 de Marcos (lembre-se que o Evangelho de Mateus tem como fonte o Evangelho de Marcos), ampliando-o e mudando substancialmente o tema central: se no discurso transmitido por Marcos, a questão principal é a dos sinais que precederão a destruição de Jerusalém e do Templo, no discurso reelaborado por Mateus a questão central é a da vinda do Filho do homem e das atitudes com que os discípulos devem preparar essa vinda.

 

Qual a razão? – A mudança do tema do discurso pode ser explicada pela situação em que vivia a comunidade de Mateus e suas necessidades. Estamos na década de 80. Passaram dez anos sobre a destruição de Jerusalém e ainda não aconteceu a segunda vinda de Jesus. Os crentes estão desanimados e desiludidos… O evangelista contempla com preocupação os sinais de abandono, de desleixo, de rotina, de esfriamento que começam a aparecer na comunidade e sente que é preciso renovar a esperança e levar os crentes a comprometer-se na história, construindo o “Reino”.

 

Exortação – Nesta situação, Mateus descobre que as palavras de Jesus encerram um profundo ensinamento e compõe com elas um conselho dirigido aos cristãos. Esta exortação fundamenta-se numa profunda convicção: a vinda do “Filho do homem” é um fato certo, ainda que não aconteça logo; enquanto não chega o momento, é preciso preparar este grande acontecimento, vivendo de acordo com os ensinamentos de Jesus.

 

Linguagem – A linguagem destes capítulos é estranha e enigmática… Trata-se, no entanto, de um gênero usado com alguma frequência por alguns grupos judeus e cristãos da época de Jesus. É a linguagem “apocalíptica”, porque o seu objetivo é “revelar algo escondido” (“apocaliptô). Em muitas ocasiões, esta revelação é dirigida a comunidades que vivem numa situação de sofrimento, de desespero, de perseguição; o objetivo é animá-las, dar-lhes esperança, mostrar-lhes que a vitória final será de Deus e daqueles que forem fiéis.

 

Vigilantes – Para Mateus, a vinda do Senhor é certa, embora ninguém saiba o dia nem a hora (Mt 24,36); aos crentes resta estar vigilantes, preparados e ativos… Para transmitir esta mensagem, Mateus usa três quadros… O primeiro é o quadro da humanidade na época de Noé: os homens viviam, então, numa alegre inconsciência, preocupados apenas em gozar a sua “vidinha” descomprometida; quando o dilúvio chegou, apanhou-os de surpresa e despreparados… Se o “aproveitar a vida” ao máximo for para o homem uma prioridade fundamental, ele arrisca-se a deixar de lado o que é importante e a não cumprir o seu papel no mundo.

 

Trabalho – O segundo quadro coloca-nos diante de duas situações da vida cotidiana: o trabalho agrícola e a moagem do trigo… Os compromissos e trabalhos necessários à subsistência do homem também não podem ocupá-lo de tal forma que o levem a negligenciar o essencial: a preparação da vinda do Senhor.

 

Alerta – O terceiro quadro apresenta o exemplo do dono de uma casa que adormece e deixa que a sua casa seja saqueada pelo ladrão… Os crentes não podem, nunca, deixar-se adormecer, pois o seu sono pode levá-los a perder a oportunidade de encontrar o Senhor que vem.

 

Prioridade – A questão fundamental é, portanto, esta: o crente ideal é aquele que está sempre vigilante, atento, preparado, para acolher o Senhor que vem. Não perde oportunidades, porque não se deixa distrair com os bens deste mundo, não vive obcecado com eles e não faz deles a sua prioridade fundamental… Mas, dia a dia, cumpre o papel que Deus lhe confiou, com empenho e com sentido de responsabilidade.

sábado, 20 de novembro de 2010

Hoje mesmo estarás comigo no paraíso


O Evangelho das missas deste domingo situa-nos no Calvário (lugar do crânio), diante de uma cruz. A cena apresenta-nos Jesus crucificado, dois “malfeitores” crucificados também, os chefes dos judeus que “zombavam de Jesus”, os soldados que faziam piada dos condenados e o povo silencioso, perplexo, em expectativa. Por cima da cruz de Jesus, havia uma inscrição: “Jesus Nazareno, rei dos judeus”.

 

INRI – À primeira vista, está a famosa inscrição que define Jesus como “rei dos judeus”. É uma indicação que, naquela situação em que Jesus se encontrava, parece irônica: Ele não está sentado num trono, mas pregado numa cruz; não aparece rodeado de seguidores fiéis que O incensam e adulam, mas dos chefes dos judeus que O insultam e dos soldados que zombam Dele; Ele não exerce autoridade de vida ou de morte sobre milhões de homens, mas está pregado numa cruz, indefeso, condenado a uma morte infamante… Não há aqui, qualquer sinal que identifique Jesus com poder, com autoridade, com realeza terrena.

 

Rei? – Contudo, a inscrição da cruz – irônica aos olhos dos homens – descreve com precisão a situação de Jesus, na perspectiva de Deus: Ele é o “rei” que, da cruz, preside a um “Reino” de serviço, de amor, de entrega, de dom da vida. Neste quadro, explica-se a lógica desse “Reino de Deus” que Jesus veio propor aos homens.

 

Malfeitores – O quadro é completado por uma cena bem significativa, para entender o sentido da realeza de Jesus… Ao lado de Jesus estão dois “malfeitores”, crucificados como Ele. Enquanto um O insulta (este representa aqueles que recusam a proposta do “Reino”) e outro que pede: “Jesus, lembra-Te de mim quando vieres com a tua realeza”. A resposta de Jesus a este pedido é: “hoje mesmo estarás comigo no paraíso”.

 

Hoje no paraíso – Jesus é o Rei que apresenta aos homens uma proposta de salvação e que, da cruz, oferece a vida. O “estarás hoje no paraíso” não expressa um dado cronológico, mas indica que a salvação definitiva (o “Reino”) torna-se realidade a partir da cruz. Na cruz, manifesta-se plenamente a realeza de Jesus que é perdão, renovação do homem, vida plena; e essa realeza abarca todos os homens – mesmo os condenados – que acolhem a salvação.

 

No Paraíso – A Tradição afirma que o agraciado com a promessa do paraíso foi São Dimas. O “Bom Ladrão”, com sua atitude de humildade, reconhecendo-se criminoso, e com sua profissão de fé (“Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”), “roubou” o Paraíso, tornando-se o primeiro herdeiro dos que sofrem e choram.

 

Apócrifo – O Evangelho de Lucas cita apenas que eram dois ladrões, não indicando os seus nomes. Os nomes aparecem somente no livro apócrifo chamado “Evangelho de Nicodemos” (9,5): Dimas e Gestas. Os livros apócrifos são textos (criados a partir do 2º século), escritos por pessoas devotas, ou simplesmente curiosas, sobre tradições, histórias ou qualquer coisa que se relacionasse com Jesus. Por serem textos sem muito critério, não foram incluídos na Bíblia.

 

Da cruz ao paraíso – Jesus quer realizar o seu reino numa sociedade de irmãos e filhos de Deus. Até o momento de sua morte, vemos o que foi a constante de Sua vida: a preferência pelos pecadores, marginalizados e pobres. Por isso mesmo, até no último momento, oferece o Paraíso ao Bom Ladrão, que se arrependeu e acreditou nele. Da humilhação e fraqueza suprema da cruz, Cristo Jesus aparece como rei vencedor do pecado e da morte.

 

Ressurreição – A promessa que faz a Dimas revela esta vitória e é a garantia de nossa esperança cristã. A partir da morte e ressurreição de Jesus, que é também a sua glorificação, estão abertas as portas do Paraíso, que Adão nos tinha fechado. Fica inaugurado o reino da Ressurreição dos mortos. Jesus quer reinar a partir da cruz e não a partir do poder, e quer realizar seu reino numa sociedade de irmãos entre si e de filhos de Deus.

 

Dimas em Bauru – Em nossa cidade existe uma paróquia que tem Dimas como padroeiro. É a Paróquia de São Judas Tadeu e São Dimas, localizada nos altos da cidade.  São Dimas é comemorado no dia 25 de março.

sábado, 13 de novembro de 2010

Quem não quer trabalhar, também não deve comer

O Evangelho das missas deste domingo apresenta o texto de Lucas (21, 5-19) em que Jesus profetiza a destruição do Templo. Esse trecho faz parte dos famosos discursos sobre o fim do mundo, característicos dos últimos domingos do ano litúrgico. E, na segunda leitura, vemos a Carta de Paulo, dirigida aos cristãos de Tessalônica, que haviam deixado de trabalhar, a espera do fim do mundo anunciado por Jesus. Sobre este comportamento, Paulo escreve sua segunda carta aos Tessalonicenses.

 

Trabalhar para que? – Em Tessalônica, uma das primeiras comunidades cristãs, havia crentes que tiravam desses discursos de Cristo uma conclusão errônea: é inútil agitar-se, trabalhar e produzir, já que tudo está a ponto de acabar; é melhor viver cada dia, sem assumir compromissos no longo prazo, talvez vivendo um pouco de brisa.

 

Quem não trabalha não deve comer – A estes, São Paulo responde: “Ora, ouvimos dizer que entre vós há alguns que vivem à toa, muito ocupados em não fazer nada. Em nome do Senhor Jesus Cristo, ordenamos e exortamos a estas pessoas que, trabalhando, comam na tranquilidade o seu próprio pão”. No começo da passagem, São Paulo lembra a regra dada aos cristãos de Tessalônica: “Quem não quer trabalhar, também não deve comer”.

 

O trabalho na origem da criação – Esta era uma novidade para os homens da época. A cultura à qual pertenciam desprezava o trabalho manual; considerado degradante para a pessoa, como se fosse exclusivo de escravos e incultos. Mas a Bíblia tem uma visão diferente. Desde a primeira página, ela apresenta Deus trabalhando durante seis dias e descansando no sétimo. Tudo isso, antes ainda que se fale do pecado na Bíblia. Podemos concluir, portanto, que o trabalho faz parte da natureza original do homem; não é resultado da culpa nem do castigo. O trabalho manual é tão digno como o intelectual e o espiritual. O próprio Jesus dedicou vinte anos ao trabalho manual (supondo que tenha começado a trabalhar por volta dos 13 anos) e somente dois anos ao intelectual.

 

Quer valor tem o trabalho para Deus? – Conta um padre, que um leigo lhe escreveu perguntando: “Que sentido e que valor tem nosso trabalho de leigos diante de Deus? É verdade que nós, leigos, nos dedicamos também a muitas obras de bem (caridade, apostolado, voluntariado); mas a maior parte do tempo e das energias da nossa vida é dedicada ao trabalho. Assim, se o trabalho não vale para o céu, teremos bem pouco para a eternidade. Todas as pessoas às quais perguntamos sobre isso não souberam nos dar respostas satisfatórias. Elas nos dizem: ‘Ofereçam tudo a Deus!’. Mas isso é suficiente?”.

 

Trabalho como participação na obra de Deus – Respondendo ao leigo, assim se pronunciou o padre: “Não, o trabalho não vale somente pela “boa intenção” que temos ao realizá-lo, ou pelo oferecimento que se faz dele a Deus pela manhã; vale também por si mesmo, como participação da obra criadora e redentora de Deus e como serviço aos irmãos. É através do trabalho humano – diz um texto do Concílio – ‘que o homem sustenta de ordinário a própria vida e a dos seus; por meio dele se une e serve aos seus irmãos, pode exercitar uma caridade autêntica e colaborar no acabamento da criação divina. Mais ainda: sabemos que, oferecendo a Deus o seu trabalho, o homem se associa à obra redentora de Cristo’ (Gaudium et spes, 67).”

 

Colocar o coração no que as mãos fazem – Vemos, portanto, que não importa tanto que trabalho a pessoa realiza, mas como o realiza. Isso restabelece certa igualdade, deixando de lado todas as diferenças (às vezes injustas e escandalosas) de categoria e remuneração. Uma pessoa que desempenhou tarefas muito humildes pode “valer” muito mais que quem ocupou cargos de grande prestígio. O trabalho, como foi dito, é participação na ação criadora de Deus e na ação redentora de Cristo, e é fonte de crescimento pessoal e social, mas também, sabemos, é fadiga, suor, dor. Pode enobrecer, mas igualmente pode esvaziar e consumir. O segredo é colocar o coração no que as mãos fazem. O que cansa não é tanto a quantidade ou o tipo de trabalho que se faz, mas a falta de entusiasmo ou de motivação. Como nos diz o Apocalipse (14, 13), “nossas obras nos acompanharão” Que essa fé possa ser nossa motivação terrena para o trabalho.

sábado, 6 de novembro de 2010

A riqueza dos pobres de espírito


O Evangelho deste domingo (Mt 5,1-12) propõe a passagem das Bem-aventuranças.  Propomos, a seguir, uma reflexão do padre Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia de Roma.

 

Compaixão pelos ingênuos? - O Evangelho deste domingo começa com a célebre frase: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”. A afirmação “bem-aventurados os pobres de espírito”, com frequência, é mal entendida hoje ou, inclusive, se cita com algum sentimento de compaixão, como se fosse uma expressão que faz referência à credulidade dos ingênuos.

 

Frase completa – Mas Jesus jamais disse simplesmente: “Bem-aventurados os pobres de espírito!”; nunca sonhou pronunciar algo assim. Disse: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”, que é muito distinto. Deturpa-se completamente o pensamento de Jesus, banalizando-o, quando se cita sua frase pela metade, pois, assim, separa-se a bem-aventurança de seu motivo. Seria, suponhamos, o mesmo que dizer: “O que semeia...”. O que se entende disso? Nada! Mas se acrescentarmos: “colhe”, imediatamente tudo se esclarece. Se Jesus tivesse dito apenas: “Bem-aventurados os pobres!”, isso também soaria absurdo, mas quando acrescenta: “porque deles é o Reino dos Céus”, tudo se faz compreensível.

 

Reino que subverte – Mas que bendito Reino dos Céus é este, que realizou uma verdadeira “inversão de todos os valores?” É a riqueza que não passa, que os ladrões não podem roubar nem a traça consumir. É a riqueza que não se deve deixar para outros com a morte, mas que se leva consigo. É o “tesouro escondido” e a “pérola preciosa”, aquilo que, para se possuir, vale a pena deixar tudo, – diz o Evangelho. O Reino de Deus, em outras palavras, é o próprio Deus.

 

Que Reino é esse? –A chegada do Reino de Deus produziu uma espécie de “crise de governo” de alcance mundial, uma mudança radical. Abriu horizontes novos, Em alguma medida, abriu novos horizontes, como no século XV, quando,se descobriu que existia um outro mundo, a América, e as potências que ostentavam o monopólio do comércio com o Oriente, como Veneza, se viram surpreendidas de repente e entraram em crise.

 

Quem é rico hoje? – Os velhos valores do mundo – dinheiro, poder, prestígio – mudaram, ficaram relativos e inclusive foram rejeitados por causa da chegada do Reino. E agora, quem é o rico? Talvez um homem tenha uma enorme soma em dinheiro; durante a noite ocorre uma desvalorização total; pela manhã se levanta sem nada ter, mesmo que não saiba ainda.

 

O “investimento” do pobre – Os pobres, pelo contrário, estão em vantagem com a vinda do Reino de Deus, porque ao não terem nada que perder estão mais dispostos a acolher a novidade e não temem a mudança. Podem investir tudo na nova moeda. Estão mais preparados para crer.

 

Mudança social ou de fé? –Acredita-se, hoje, que as mudanças que contam são aquelas visíveis e sociais e não as que ocorrem na fé. Mas quem tem razão? No século passado, vimos acontecer muitas revoluções sociais; contudo, também vimos depois de algum tempo, que tais mudanças acabam por reproduzir, com outros protagonistas, a mesma situação de injustiça que pretendiam eliminar.

 

Vendo com o Evangelho – Há planos e aspectos da realidade que não se percebem à primeira vista, só com a ajuda de uma luz especial. Atualmente, com os satélites artificiais, são feitas inúmeras fotografias, com raios infra-vermelhos, de regiões inteiras da Terra, e podemos ver quão diferente é o panorama com esta luz! O Evangelho e, em particular, nossa bem-aventurança dos pobres, nos dá uma imagem do mundo “com raios infra-vermelhos”. Permite captar o que está por baixo ou mais além da aparência. Permite distinguir o que passa e o que fica. A riqueza do pobre é o Reino de Deus.