sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Deus pode pedir um crime como culto?




A primeira leitura das missas deste domingo apresenta uma das histórias mais corajosas da Bíblia: aquela em que Deus pede a Abraão que mate seu filho Isaac e ofereça-o a ele como um sacrifício.

O texto – De acordo com Gênesis (22,1-19), uma noite Deus apareceu a Abraão e, para testá-lo, ele disse: “Toma teu filho único, Isaac, a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá e oferece-o ali em holocausto”. (Holocausto: sacrificá-lo cortando-o e queimando-o totalmente).

Obediente – Sem dizer uma palavra, Abraão levantou-se no início da manhã e foi para a região que Deus indicou. Ao chegar no lugar, Abraão construiu um altar, amarrou e colocou no altar seu filho Isaac. Mas quando ele levantou a mão com a faca para sacrificá-lo, um anjo do céu gritou: "Abraão, Abraão, não machuca o filho. Agora eu sei que você é respeitoso com Deus e que não me negou seu único filho ". Olhando para cima, Abraão viu um carneiro enrolado por chifres em um mato. Ele tomou e sacrificou em vez de seu filho, e ambos voltaram para casa.

Escândalo – Muitos cristãos, ao ler este capítulo da Bíblia, não podem deixar de se sentir escandalizados. Alguns até se rebelam contra Deus. Como ele poderia pedir a Abraão, um pobre velho com uma esposa estéril, para matar o único filho? Apenas para provar sua fidelidade? Um crime pode ser um dever sagrado para Deus?

A Exegese – Esta primeira leitura faz parte de um bloco de textos a que se dá o nome genérico de “tradições patriarcais” (Gn 12-36). Esses capítulos tomam mitos, lendas, e antigas histórias sobre os clãs nômades que circularam pela palestina e apresentam aos israelitas como modelo de vida e fé.

Origem – O relato do sacrifício de Isaac (Gn 22) é uma “lenda cultual” (culto a um deus). Nasceu, provavelmente, num santuário do sul do país, muito antes de os patriarcas bíblicos se terem instalado na região. A lenda primitiva contava como num lugar sagrado, o deus aí adorado tinha salvo uma criança destinada a ser oferecida em sacrifício (no mundo dos cananeus, os sacrifícios humanos eram relativamente frequentes). A partir daí, nesse lugar, os sacrifícios de crianças tinham sido substituídos por sacrifícios de animais. Foi essa a primeira etapa da tradição que nos é hoje proposta.

Abraão – Numa segunda fase, esta história primitiva foi aplicada à figura de Abraão, quando o clã de Abraão se instalou na região. O pai cananeu da primitiva história, que levava o filho para ser oferecido em sacrifício, foi identificado com o patriarca Abraão. A tradição acabou por englobar um clã ligado ao de Abraão, o clã de Isaac. Isaac tornou-se, assim, o filho destinado ao sacrifício de que falava a velha lenda pré-israelita.

Lenda virou Catequese – Numa terceira fase, os teólogos elohistas (séc. VIII a.C.) pegaram a antiga lenda cultual e puseram-na ao serviço da sua catequese. Na reflexão dos catequistas de Israel, a antiga lenda tornou-se uma catequese sobre uma “prova” em que o justo Abraão manifestou a sua obediência radical e a sua confiança em Elohim.

Elohistas e Yahistas – A tradição elohista é uma das fontes de redação do livro do Gênesis. É denominada elohista porque denomina o seu Deus de Elohim. A outra fonte é a yahvista, que denomina o Deus de Yahvé. Por esta razão que aparecem duas descrições de criação do mundo no livro do Gênesis: a primeira (Yahista), Deus cria o mundo em sete dias, começando pela luz e terminando pelo homem; na segunda (Elohista) Deus cria o homem do barro e lhe dá a vida com um sopro.

No Gênesis – Por fim, um redator pós-elohista acrescentou ao texto outros elementos de caráter teológico. Foi, certamente, ele que ligou a lenda do sacrifício de Isaac com o monte santo dos sacrifícios do Templo de Jerusalém; foi ele, também, que acrescentou à história a ideia de que o comportamento de Abraão para com Deus mereceu uma recompensa e que essa recompensa iria, no futuro, derramar-se sobre todos os descendentes de Abraão.

QUER SABER MAIS? – Se você gostou do texto e que saber mais podemos lhe oferecer dois textos escritos por um teólogo católico: “Por que Deus ordenou que Abraão matar seu filho?” (5 páginas) e “O mundo foi criado duas vezes?” (5 páginas). Solicite por E-mail.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A arca de Noé existiu?


  
A primeira leitura das missas deste domingo (Gn 9,8-15) relata a história de Noé, o dilúvio e a salvação dos homens e dos animais com a construção da arca. A dúvida que aparece diante deste episódio é: a narração contida na Bíblia realmente aconteceu ou trata-se de um relato didático? Os fatos são reais ou é uma lenda, um mito?

Lendas – Os primeiros onze capítulos do Livro do Génesis apresentam um conjunto de tradições sobre as origens do mundo e dos homens. Os episódios que compõem este bloco não são informações de fatos históricos concretos, mas lendas e mitos, tirados de povos da Mesopotâmia. Os catequistas de Israel tomaram esses mitos, adaptaram-nos, e puseram-nos ao serviço da transmissão da sua própria fé, anunciando suas descobertas sobre Deus.

Dilúvio – No texto das missas deste domingo, Noé recebeu ordens de Deus para construir uma nave de 150 metros de comprimento, 25 de largura e 15 de altura, com três pisos de cinco metros cada. Estas medidas mostram-se exorbitantes, pois são as medidas de um transatlântico moderno, nunca conseguido pela engenharia naval até o século XIX. O relato está localizado na pré-história, quando ainda não se conhecia o uso dos metais. Como se podia fazer um navio tão grande sem instrumentos metálicos? Seria preciso, além do mais, da ajuda de centenas de pessoas. Como foi construído só com a ajuda de Noé, de seus três filhos e de suas esposas?

Animais – O mais pitoresco e difícil de admitir é o que se refere aos animais que Noé e os seus deviam introduzir na arca. Como poderiam reunir um casal de cada espécie existente para salvá-las da extinção? Foram capazes de percorrer os cinco continentes do planeta para trazê-los, alguns de uma distância de 20 mil quilômetros? Acrescente-se a isso outra dificuldade: existem sobre a terra 1.700 espécies de mamíferos, 10.087 espécies de aves, 20.987 de répteis e aproximadamente 1.200.000 espécies de insetos.

Mais animais – Os zoólogos julgam que em nosso planeta pode haver entre 5 a 10 milhões de espécies animais ainda sem identificação (ocultas nos gelos polares, nas selvas tropicais ou nas areias do deserto). Carregar a arca com esta bagagem teria sido um trabalho impossível para oito pessoas. Também seria impossível repovoar o planeta só com um par de cada espécie. Por exemplo, os ursos pandas são considerados em extinção porque somente uns mil sobrevivem, número demasiado pequeno para recuperar outra vez a espécie em estado selvagem.

Perguntas sem respostas – Conforme relata a Bíblia, choveu durante 40 dias e 40 noites, sem parar (Gn 7,17) e a água cobriu toda a terra, sete metros acima dos montes mais altos da Terra (Gn 7,19-20). Impossível, pois, se todas as nuvens da atmosfera terrestre se precipitassem de uma só vez, o globo permaneceria encoberto apenas por menos de cinco centímetros de água. E as plantas, como se salvaram das águas? E os peixes, que também foram postos a salvo na arca? Como não morreram ao se misturarem as águas doces com as salgadas?

O que aconteceu? – A arqueologia indica a existência de várias inundações catastróficas no mundo entre 4000 e 2800 a.C.. Para alguns, o dilúvio bíblico poderia estar relacionado com o fim da era glacial, quando a fusão do gelo provocou grandes avalanches de água que invadiram as terras habitadas. Mas o mais provável é que o dilúvio descrito nos textos do Génesis se refira a uma das inúmeras inundações dos rios Tigre e do Eufrates… É provável que o texto bíblico evoque essa realidade. Não se tratou, em qualquer caso, de um dilúvio universal mas, com o tempo, a fantasia popular teria feito dessas inundações um “castigo universal” que atingiu o conjunto da humanidade. O autor bíblico, conhecedor dessas lendas antigas, usou-as como pano de fundo para fazer catequese e transmitir uma mensagem religiosa.

O dilúvio nunca existiu – Este considerável número de objeções já nos dá a resposta ao problema. Nunca existiu nenhum dilúvio universal. E tampouco a Bíblia pretende ensinar isto como um fato histórico. Não se pode negar a existência de algum dilúvio ou de uma grande inundação antiga, mas nunca poderia ser universal a ponto de destruir todo tipo de vida, como descreve a Bíblia. Não estamos, portanto, diante de fatos reais, históricos, mas diante de uma narração didática, uma catequese.

O que ensina o Dilúvio – O autor, portanto, não quis expor um fato histórico e sim um relato didático, para ensinar uma mensagem religiosa. O autor encontrou na tradição a lembrança desta história e apropriou-se dela para transmitir um ensinamento religioso. Que mensagem nos deixa o episódio do Dilúvio universal? Em primeiro lugar, mostra como ele acontece por culpa dos pecados dos homens. Eles se acumulam em toda a Terra, a tal ponto que a corrompem, a pervertem e provocam uma catástrofe. E assim se volta ao caos anterior à Criação. Toda a ordem que Deus havia estabelecido ao criar o mundo pode ser destruída e voltar à estaca zero, por causa da irresponsabilidade dos homens.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

“Fui jogado em um vale de leprosos”



Em depoimento à Justiça Federal em Brasília na última terça-feira, o ex-ministro da Secretaria de Governo Geddel Vieira Lima (PMDB) declarou ter sido jogado em um "vale dos leprosos". Declarou: “Vejo hoje que amigos, pessoas, de longa data me lançaram em um vale dos leprosos” (UOL Notícias, 06/02/2018). O que o ex-ministro Geddel quis dizer com esta frase?

Evangelho – Este pronunciamento coincide com o Evangelho das missas deste domingo (Mc 1,40-45) que relata Jesus frente a um leproso que pediu: "Se queres, tens o poder de curar-me". Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele e disse: "Eu quero: fica curado!" No mesmo instante, a lepra desapareceu e ele ficou curado.

A doença – Os leprosos formavam um dos grupos mais marginalizados da época de Jesus. Eram considerados pecadores e um malditos, vítimas de um doloroso castigo de Deus.  Tinham que viver isolados, apresentar-se esfarrapados e avisar, aos gritos, o seu estado de impureza, a fim de que ninguém se aproximasse deles. Não tinham acesso ao Templo, nem sequer à cidade santa de Jerusalém. Eram obrigados a viver fora da cidade ou aldeia, longe do convívio social, por motivos higiênicos e religiosos (Lv 13,45-46). A única esperança do leproso, de ser reintegrado na comunidade, estava em ser curado por Jesus. Ele diz algo significativo "se queres, tu tens o poder de me curar".

Hanseníase – No Antigo Testamento, em Levítico, capítulo 13, encontra-se toda uma orientação sobre a doença, seus sinais para identificação e cuidados em relação aos doentes, mas dificilmente se pode comprovar que se tratava de hanseníase. É possível que se tratasse de manchas dermatológicas de outra espécie ou simplesmente casos chamados de "lepra", que incluíam desde simples infecções da pele até manchas na roupa. Os sacerdotes tinham a missão de diagnosticar e tratar a doença, visto que se acreditava estar relacionada a pecados e devia ser combatida através de sacrifícios, purificações e rituais que incluíam desde a queima de objetos pessoais até o contato direto do doente com aquilo que se julgava puro, como um pássaro, uma erva ou a água.

Fé e milagre – No Evangelho de Marcos, Jesus nunca faz milagre para despertar a fé – pelo contrário só faz onde a fé já existe. O milagre em Marcos nunca causa a fé, mas é a fé que causa o milagre. É importante recordar isso no nosso mundo tão afoito em correr atrás de supostos milagres e milagreiros, pouco adepto a aprofundar a fé em Jesus no seguimento dele até a cruz. O Evangelho de Marcos tem pouco lugar para a religião de "ôba-ôba", tão em voga hoje nas diversas denominações cristãs, incluindo a Católica.

Segredo – Depois da cura do leproso, encontramos um elemento característico do Evangelho de Marcos – o tal "segredo messiânico". Jesus proíbe que ele conte para os outros a história da cura, pois não quer que o povo O siga buscando prodígios e milagres, mas quer que todos se tornem seus discípulos como o Servo de Javé, pegando a sua cruz na luta por um mundo melhor, a concretização do Reino de Deus. É de desconfiar, portanto, de pregações e celebrações religiosas que se limitam somente a experiências intimistas de Deus, sem um engajamento na transformação do mundo e das suas estruturas.

Vivência comunitária – Finalmente, o homem deve apresentar-se aos sacerdotes para que a sua cura seja autenticada, segundo as leis levíticas. Para Jesus não basta a cura individual – Ele quer que todas as pessoas sejam integradas numa vivência comunitária sem marginalização por causa de gênero, classe social, raça, cor ou saúde! A fé em Jesus leva a um mundo totalmente diferente do mundo de exclusão que é a nossa atual sociedade neoliberal e consumista!

Inclusão – E diante dessa boa-nova de inclusão, o povo excluído corre atrás de Jesus, pois ele manifesta a verdadeira face de Deus a eles: o Deus de bondade e perdão, cujo rosto tinha sido escondido pelas leis de puro e impuro do Templo e pelo sistema farisaico da época - "e de toda parte as pessoas iam procurá-lo".

sábado, 3 de fevereiro de 2018

A casa de Pedro


  
No Evangelho das missas deste domingo (Mc 1, 29-39) Jesus está na cidade de Cafarnaum e cura a sogra de Pedro. Lembramos que Jesus deixou a sua cidade natal, Nazaré (situada a 34 km a sudoeste), e instalou-se em Cafarnaum (Mt 4,13). Simão, o pescador, lhe emprestou a sua casa e, desde então, a vila se tornou o centro de suas atividades. Ao receber Jesus, Cafarnaum passou a ser a capital do anúncio evangélico, passando a ser conhecida como “Cidade de Jesus” (Mt 9,1). Jesus viveu ali durante o tempo de sua pregação, entre os anos 27 e 30.

Jesus – Lembramos que Jesus nasceu na cidade de Belém, na Judéia (no ano 7 a.C.), foi criado em Nazaré (por isso foi chamado de Jesus de Nazaré ou Nazareno) e, no ano 27 d.C., com 33 anos de idade, foi morar em Cafarnaum, que se tornou a sede de sua pregação. Jesus morreu crucificado na sexta-feira, 7 de abril do ano 30 (com 36 anos), e ressuscitou no domingo, 9 de abril.

Ruas – Cafarnaum situava-se na margem do lago de Genesaré (ou Mar da Galiléia). Tinha uns 300 metros de leste a oeste e uns 200 metros de norte a sul, com uma população estimada entre 800 e 900 pessoas. Tinha uma planta harmoniosa e ordenada, com ruas formando quarteirões e conjuntos de casas. No desenho acima podemos ver as ruínas da cidade de Cafarnaum, com as ruas, a casa de Pedro e a sinagoga (lembrem-se do Evangelho da semana passada, quando Jesus estava na sinagoga).

Pedro – A casa de Simão Pedro estava situada em um dos quarteirões, nas imediações do lago. Em Cafarnaum não existiam casas individuais, mas habitações de famílias ou coletivas: as habitações, construídas em pedra, agrupavam-se ao redor de um único pátio, para várias famílias. As diversas habitações não tinham porta para a rua, permanecendo sempre abertas para o pátio. Uma única porta comunicava a rua ao pátio. No pátio se amassava e assava o pão, em fornos coletivos; as mulheres moíam o trigo e os artesãos faziam seus trabalhos manuais.

A casa – O pátio da casa de Pedro tinha aproximadamente 84 m2, totalizando sete habitações. Conforme Marcos (1, 29), na casa moravam Simão (Pedro) e seu irmão André. Devemos considerar que todos tinham mulheres e filhos, além da sogra de Pedro, que podia ter marido e outros membros da família. No Evangelho deste domingo, Jesus saiu da sinagoga e, ao chegar na “casa coletiva”, lhe informaram que a sogra de Pedro estava com febre. Jesus entrou no pátio e se encaminhou para a casa onde estava a sogra de Pedro. Levantou-a pela mão, curando-a. Mais tarde, curou doentes na porta da casa.

Sinagoga – Perto da casa de Pedro havia uma sinagoga, tantas vezes visitada por Jesus. Tinha 22 m de largura por 16 m de comprimento. Sabemos, pelo Evangelho de São Lucas, que foi construída por um centurião romano, cujo criado foi curado por Jesus. O Evangelho diz que, quando o militar enviou um grupo de judeus para implorar seu milagre, estes lhe disseram: “Ele merece este favor, porque ama o nosso povo. Ele até construiu uma sinagoga para nós.” (Lc 7,5).


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