sábado, 31 de março de 2012

ÚLTIMA CEIA NA TERÇA-FEIRA ?

Uma das maiores divergências entre os Evangelhos está nos dias em que ocorreram os acontecimentos da Paixão de Cristo. Enquanto os três Evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) indicam a Última Ceia na sexta-feira e a morte de Cristo no sábado (no dia da Páscoa dos Judeus), o Evangelho de João coloca a última ceia na quinta-feira, a morte na sexta-feira e a Páscoa no sábado. 

Páscoa Judaica – O calendário judaico é diferente do calendário que usamos atualmente. O primeiro mês é o Nisã (ou Nissan), que começa junto com a primavera (21 de março). A Lei de Moisés (Ex 12,6) mandava que os Judeus comemorassem a Páscoa da seguinte forma: preparassem a Páscoa (imolando um cordeiro) no 14º dia do mês Nisã e, no 15º dia celebrariam a solenidade da Páscoa, observando o estrito repouso. 

Naquele tempo ... – No ano 30, ano da morte de Jesus, o 15º dia de nisã aconteceu num sábado. Portanto, os judeus prepararam o cordeiro na sexta-feira (14º dia de nisã) e, ao anoitecer (que os judeus já consideravam o dia seguinte) comeriam o cordeiro assado com pães ázimos (sem fermento). 

Divergência – Os três Evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) afirmam que a Última Ceia aconteceu no dia da preparação (em que se sacrificava o cordeiro) e a morte de Jesus no dia da Páscoa (Mt 26, 17-20;  Mc 14, 12-17;  e Lc 22, 7-12). No Evangelho de João (Jo 19,14-31) Jesus foi condenado e morreu no dia da preparação da Páscoa.  João explica que, por não terem comido o cordeiro pascal, os judeus não entravam no pretório de Pilatos durante o julgamento, pois o contato com o ambiente pagão os contaminaria (Jo 18, 28) impossibilitando de comer a ceia noturna. 

Portanto ... – Segundo Mateus, Lucas e Marcos, a Última Ceia aconteceu na sexta-feira (14º nisã) e crucificação e morte de Jesus ocorreu no sábado (15º nisã), Páscoa dos judeus; segundo João, a Última Ceia aconteceu na quinta-feira (13º nisã) e crucificação e morte de Jesus ocorreu em 14 nisã, na preparação (véspera) da Páscoa dos judeus. 

Soluções – Ao longo dos séculos aconteceram inúmeras tentativas de conciliar esta contradição dos Evangelhos, sem qualquer solução convincente. 

Calendários – No ano de 1947 foram descobertos os manuscritos de Qumrán, que eram parte de uma biblioteca de uma seita judaica chamada essênios. Dentre os inúmeros livros ali encontrados, dois deles (Livro dos Jubileus e Livro de Henoc) revelavam que, no tempo de Jesus, estavam em uso dois calendários distintos. Um era o calendário solar (ano de 364 dias) em que as festas importantes (ano novo, festa dos Tabernáculos, Páscoa) caíam sempre às quartas-feiras. O outro calendário (ano com 365 dias), mais recente e mais preciso, tinha como característica que o dia da Páscoa podia cair em qualquer dia da semana. 

Duas Páscoas – Portanto, na época de Jesus havia duas datas para a Páscoa: a os judeus mais tradicionais (mais populares), que adotavam o calendário mais antigo e celebravam a Páscoa na quarta-feira (preparavam na terça-feira e comiam após o entardecer), e a dos sacerdotes e classes mais elevadas, que adotavam o novo calendário, em que a festa da Páscoa podia cair em qualquer dia da semana. 

Solução – A solução para a divergência pode ser entendida se considerarmos que Jesus com seus apóstolos celebrou a Última Ceia baseando-se no calendário antigo, na terça-feira à noite, como fazia o povo mais simples. Os Evangelhos sinóticos afirmam que Jesus ceou com os apóstolos no dia da Páscoa (quarta-feira ou terça-feira à noite) porque seguiam o calendário antigo; João diz que Jesus ceou “antes da Páscoa”, portanto, segundo o calendário oficial. 

Última Ceia na terça – Com a nova data, os acontecimentos ficam distribuídos da seguinte forma: Terça: pela noite, Jesus celebra a Páscoa, vai ao Monte das Oliveiras, é preso e levado ao sumo sacerdote; Quarta: pela manhã acontece a primeira sessão do Sinédrio, que escuta os testemunhos e Jesus passa a noite na prisão dos judeus; Quinta: pela manhã, em nova sessão, o Sinédrio condena Jesus à morte, que é levado à Pilatos, que o interroga e lhe envia a Herodes e Jesus passa a noite na prisão dos romanos; Sexta: Pilatos recebe pela segunda vez Jesus, o condena a ser açoitado e crucificado, morrendo às 3 horas da tarde. 

Coerência – A proposta de localização da Última Ceia na terça-feira é bastante coerente, pois distribui todos os acontecimentos que antecederam a morte de Jesus em 3 dias; não haveria tempo hábil para todos estes fatos acontecerem na madrugada e manhã da sexta-feira (como no Evangelho de João). Seria impossível acontecerem no dia da Páscoa (como nos sinóticos), pois a tradição judaica proibia para este dia: carregar armas e encarcerar um réu (Mt 26, 47); acender fogo (Lc 22, 55); caminhar do campo para a cidade (Mc 15, 21); carregar uma cruz; executar uma sentença capital; comprar uma mortalha (Mc 15, 46); preparar aromas (Lc 23, 56). 

Liturgia – A Igreja Católica sempre seguiu o Evangelho de João, comemorando a Última Ceia na quinta-feira santa. Estes ritos fazem parte da liturgia, que tem uma finalidade mais pedagógica do que histórica. Assim como celebramos o nascimento de Jesus em 25 de dezembro (sabendo que não é uma data histórica), podemos seguir celebrando a Última Ceia na quinta-feira, pois o objetivo é obter um benefício espiritual.

sábado, 24 de março de 2012

“Se alguém quer servir a mim, que me siga!”

O Evangelho das missas deste domingo apresenta Jesus falando para Felipe e André:
"Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado. Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto. Quem se apega à sua vida perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la à para a vida eterna. Se alguém me quer servir, siga-me, e onde eu estou estará também o meu servo". 
 

Sinóticos – O texto de hoje traz muito elementos que têm eco nos textos sinóticos. Até uma leitura rápida vai trazer lembranças dos seus textos sobre o seguimento de Jesus (Lc 9,22-25): "Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e me siga", entre outros. João faz uma redação conforme a sua teologia e enfatiza que o seguimento de Jesus se dá no serviço a Ele, ou seja, na luta em favor do seu projeto. E todo o Evangelho de João manifesta que o serviço a Jesus se dá no serviço ao outro. 

Projeto – Não é possível servir Jesus sem se colocar a serviço dos outros, especialmente dos mais sofridos, pois o projeto de Jesus, de fidelidade ao Pai, vai custar-lhe a vida – Ele será como o grão do trigo que, se não cai na terra e não morre, fica sozinho. "Mas se morrer produz muito fruto". Não que Jesus quer a morte e o sofrimento, mas são questões inerentes no seguimento do projeto do Pai – e apesar das aparências, não serão derrota, mas, vitória. Jesus não veio para ser triunfalista, mas para dar a vida em favor de muitos. 

Messias – Essa visão que Jesus tinha do Messias não era comum – em geral, o povo esperava um messias triunfante, glorioso, guerreiro. A Bíblia nos conta que Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança, mas, na verdade, nós muitas vezes criamos Deus em nossa imagem e semelhança, para que Ele não nos incomode. A nossa tendência é de seguir um messias triunfante e não o Servo Sofredor. Mas, para Jesus não há meio-termo. O discípulo tem que andar nas pegadas do seu mestre: "Se alguém quer servir a mim, que me siga". 

Cruz – O seguimento de Jesus leva à cruz, pois a vivência das atitudes e opções Dele vai nos colocar em conflito com os poderes contrários ao Evangelho. Carregar a cruz, não é aguentar qualquer sofrimento; assim, a religião seria masoquismo! Carregar a cruz é viver as consequências de uma vida coerente com o projeto do Pai, manifestado em Jesus. Segui-lo não é tanto fazer o que Jesus fazia, mas o que Ele faria se estivesse aqui hoje.  

Interesses – E, como ele foi morto - não pelo povo, mas por grupos de interesse bem claros "os anciãos, os chefes dos sacerdotes e os doutores da Lei" (a elite dominante) – isso significa que nós, os seus seguidores, fatalmente iremos entrar em conflito com os grupos que hoje representam os mesmos interesses. Por isso, sempre haverá a tentação de criarmos um Jesus "light", sem grandes exigências, limitado a uma religião intimista e individualista, sem consequências políticas, econômicas ou ideológicas. Seria cair na tentação de Pedro, conforme o relato sinótico, quando rejeitava o seguimento de um Messias Sofredor. 

Qual Jesus? – Mas, qual Jesus queremos seguir? A resposta se dará não tanto com os lábios, mas com as mãos e os pés. Responderemos quem é Jesus para nós, pela nossa maneira de viver, pelas nossas opções concretas, pela nossa maneira de ler os acontecimentos da vida e da história. Tenhamos cuidado com um Jesus que não seja exigente, que não traz consequências sociais, que não nos faça engajar na luta por uma sociedade mais justa. Pois o Jesus real, o Jesus de Nazaré, o Jesus do Evangelho não foi assim e deixou bem claro: "Quem tem apego à sua vida vai perdê-la; quem despreza a sua vida neste mundo, vai conservá-la para a vida eterna". É claro que aqui se usa um semitismo – o contraste com o "apegar-se" é expresso pelo verbo "desprezar" – o que significa "amar menos". Essa opção é difícil – embora João não relate a agonia no Horto, ele expressa a mesma realidade, quando Jesus diz "estou perturbado". Mas o Pai lhe deu força, como dará a quem faz a opção real pelo Reino, no seguimento de Jesus, no serviço aos irmãos.

sábado, 17 de março de 2012

Jesus e Nicodemos

A leitura do Evangelho deste domingo apresenta somente uma parte (Jo 3, 14-21) do longo diálogo entre Cristo e Nicodemos, um dos homens mais ricos de Jerusalém. Vale a pena saber quem foi Nicodemos e conhecer como a conversa com Jesus se inicia. 

Mestre da Lei – Nicodemos, cujo nome significa “vencedor do povo”, era um importante fariseu, um dos três homens mais ricos de Jerusalém. É possível que se trate do “filho de Gorion” e que teria morrido durante a guerra judaico-romana do ano 70, depois que os zelotes saquearam as suas propriedades. É citado três vezes no Evangelho de João. Nicodemos quis conhecer Jesus e interrogá-lo, depois de ter ficado impressionado com o que ele dizia e fazia.  

A visita – A sua condição social e a sua formação intelectual (era fariseu) lhe haviam aconselhado certa reserva em relação a Jesus e, por isso, decidira ver o Nazareno de noite, longe dos olhares indiscretos, na penumbra iluminada por uma lamparina. A conversa foi longa, talvez tenha durado a noite toda, embora o evangelista nos tenha relatado somente as passagens mais importantes.  

Nascer de novo – Nicodemos começa o seu discurso reconhecendo que a origem da missão de Jesus não podia ser humana: “Sabemos que és um mestre mandado por Deus...”. Na resposta, há uma referência a essa consideração. “Jesus respondeu: Na verdade, na verdade te digo, se o homem não renasce do alto, não pode ver o reino de Deus”. Mas Nicodemos parece não se dar conta do significado oculto na frase de Jesus e, talvez para provocá-lo a explicar-se e a falar mais, finge ser obtuso de mente: “Como pode um homem nascer, quando já é velho?”, pergunta. “Por acaso ele pode entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e renascer?”.  

Sopro de Vento – O Nazareno responde fazendo com que o fariseu retorne à condição de um aluno iniciante e lhe explica que alguém não pode ver o reino de Deus se nele já não foi introduzido, e isso não é resultado do esforço ou do talento humano: “Em verdade, em verdade te digo, se alguém não nasce da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus”. Em hebraico, a palavra “espírito” queria dizer também “sopro de vento”, e esse duplo significado permite que Jesus se explique: embora invisível e intocável, o vento é real. Assim também o Espírito não pode ser controlado ou manipulado com argumentos humanos. 

Testemunho – Na penumbra mal-iluminada pela lamparina, Nicodemos replica: “Como isso pode acontecer?”. Cristo responde: “Tu és mestre em Israel e desconheces tais coisas? Na verdade, na verdade, te digo, nós falamos daquilo que sabemos e testemunhamos o que vimos; mas vós não acolheis nosso testemunho. Se vos falo de coisas terrenas e não credes, como havereis de crer quando vos falar das coisas do céu?”. 

Repercussão – Apesar daquele encontro noturno, Nicodemos não se torna um verdadeiro discípulo, um seguidor do Nazareno. Entretanto, a fala de Jesus “Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas. Mas, quem age conforme a verdade, aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus” impressionaram o rico mestre israelita, pois ele aparece outras duas vezes, demonstrando ter ficado, de algum modo, impactado com Jesus. No fundo, ele não se contentara em ouvir dizer, quis verificar pessoalmente a proposta de Jesus, confrontar-se cara a cara com ele. Quis ir ao fundo do anúncio daquele estranho profeta; decidiu procurá-lo, embora secretamente. Não abandonara os seus cargos nem o seu prestigioso posto. Mas o encontro deixara nele uma marca. As palavras do Mestre certamente o atingiram.  

No Sinédrio – O reencontramos nos dias da última Páscoa em Jerusalém, quando o Sinédrio se divide a respeito da captura do homem que dentro em breve seria pregado na cruz. Os sumos sacerdotes fariseus criticavam os guardas porque não tinham conseguido aprisionar o Nazareno (Jo 7,47). Nicodemos, lembrando-se daquele distante colóquio noturno, sob o claridade da lamparina, levanta-se e intervém com sua autoridade em defesa do acusado: “Por acaso a nossa Lei permite julgar um homem sem antes ouvi-lo e sem sabermos o que ele faz?”.  

Mirra e aloé – O último e breve aparecimento de Nicodemos se dá no pior momento da dor e da piedade, quando o corpo de Jesus é retirado da cruz por José de Arimatéia para ser levado ao sepulcro. “Compareceu também Nicodemos, aquele que anteriormente havia procurado Jesus à noite, e levou uma mistura de cerca de cem libras de mirra e aloé.” (Jo 19,39). Também a partir desse último gesto, descrito pelo Evangelho, se intui que o seu coração havia sido tomado secretamente por Jesus, por aquele Nazareno que, depois de algumas horas, sairia do sepulcro, vitorioso para sempre.

sábado, 10 de março de 2012

JESUS E O TEMPLO

O episódio apresentado no Evangelho deste domingo (Jo 2,13-25) mostra Jesus numa cena pouco comum: usando um chicote, ele expulsa os vendedores do Templo e discute com os judeus sobre a destruição do Templo. 

O Templo – A cena acontece na Páscoa, março do ano 28 d.C., no Templo de Jerusalém. Trata-se do majestoso edifício construído por Herodes, para demonstrar as suas boas disposições para com o culto a Deus e conseguir a benevolência dos judeus. A construção do Templo iniciou-se em 19 a.C. e ficou pronta no ano 9 d.C. (embora os trabalhos só tivessem sido dados por concluídos em 63 d.C.). No início do ano 28 d.C., o Templo estava no seu 46º ano de construção e ainda não estava terminado, conforme a observação que os dirigentes judeus fizeram a Jesus (Jo 2,20). 

Páscoa do ano 28 – João situa o episódio nos dias que antecedem a festa da Páscoa. Era a época em que as grandes multidões se concentravam em Jerusalém, para celebrar a principal festa do calendário religioso judaico. Jerusalém, que normalmente teria por volta de 55.000 habitantes, chegava a ter 125.000 peregrinos nessa ocasião. No Templo, durante a Páscoa, sacrificavam-se cerca de 18.000 cordeiros. 

Comércio – Nesta época, o comércio relacionado com o Templo era muito grande. Três semanas antes da Páscoa, começava a emissão de licenças para a instalação dos postos comerciais em volta do Templo. O dinheiro arrecadado com a emissão dessas licenças era direcionado ao sumo-sacerdote. Havia tendas de venda que pertenciam diretamente à família do sumo-sacerdote. Os animais eram vendidos para os sacrifícios e vários outros produtos destinavam-se à liturgia do Templo. Havia também, as tendas dos cambistas, os quais trocavam moedas romanas correntes por moedas judaicas (os tributos dos fiéis para o Templo eram pagos em moeda judaica, pois ali não eram permitidas moedas com a efígie de imperadores pagãos). Este comércio era de grande importância para a economia da cidade e sustentava a nobreza sacerdotal, o clero e os empregados do Templo. 

Gesto profético – Os profetas tinham criticado os sacrifícios que Israel oferecia a Deus, considerando-os como ritos estéreis, vazios e sem significado (não representavam amor a Deus). Também, acreditavam que a chegada do Messias estava ligada à purificação e à moralização do culto prestado a Deus no Templo. O profeta Zacarias liga, explicitamente, o “dia do Senhor” (vinda do Messias) com a purificação do culto e a eliminação dos comerciantes que estão “no Templo do Senhor do universo” (Zac 14,21). 

O Messias – O comportamento de Jesus no Templo deve ser visto conforme estas profecias. Quando Jesus pega no chicote de cordas e expulsa do Templo os vendedores de ovelhas, bois e pombas, acaba com o lucro dos banqueiros e derruba as mesas dos cambistas (v. 14-16); concretamente, está se revelando como “o messias” e anunciando a chegada de novos tempos, os tempos messiânicos. 

O Culto – No entanto, Jesus vai bem mais além dos profetas. Ao expulsar do Templo também, as ovelhas e os bois que serviam para os ritos sacrificais que Israel oferecia a Deus, Jesus mostra que não propõe apenas uma reforma, mas a abolição do próprio culto. O culto prestado a Deus no Templo de Jerusalém era algo sem sentido: ao transformar a casa de Deus num mercado, os líderes judaicos tinham suprimido a presença de Deus. Jesus, o Filho, com a autoridade que Lhe vem do Pai, diz um claro “basta” a uma mentira com a qual Deus não pode continuar a pactuar: “não façais da casa de meu Pai casa de comércio” (v. 16). 

Três dias – Os líderes judaicos ficam indignados. Qual a autoridade de Jesus para abolir o culto oficial prestado a Deus? A resposta de Jesus é estranha: “destruí este Templo e Eu o reconstruirei em três dias” (v. 19). O evangelista deixa claro que Jesus não se referia ao Templo de pedra, onde Israel celebrava os seus ritos litúrgicos, mas a outro “Templo”, que é o próprio Jesus (o seu corpo). O que é que isto significa? Jesus desafia os líderes que o questionaram a suprimir o Templo que é Ele próprio, mas deixa claro que, três dias depois, esse Templo estará outra vez erigido no meio dos homens. Jesus se refere à sua ressurreição, garantia que Ele vem de Deus e que a sua atuação tem o “selo de garantia” de Deus. 

Novo Templo – No entanto, o mais notável aqui, é que Jesus se apresenta como o “novo Templo”. O Templo representava, no universo religioso judaico, a residência de Deus, o lugar onde Deus se revelava e onde se tornava presente no meio do seu Povo. Jesus é, agora, o lugar onde Deus reside, onde se encontra com os homens e onde se manifesta ao mundo. É através de Jesus que o Pai oferece aos homens o seu amor e a sua vida. Aquilo que a antiga Lei já não conseguia fazer – estabelecer relação entre Deus e os homens – é Jesus que, a partir de agora, o faz.

sábado, 3 de março de 2012

DEUS, ABRAÃO E O SACRIFÍCIO DE ISAAC

A primeira leitura das missas deste domingo nos apresenta um texto de difícil compreensão: Deus pede a Abraão o sacrifício de seu filho Isaac. Vamos analisar este texto. 

Tradições – Entre os capítulos 12 e 36 do Gênesis é apresentada uma série textos sobre a origem das tradições do povo hebreu. São as chamadas “tradições patriarcais”: relatos únicos, originalmente independentes uns dos outros, sem grande unidade e sem qualquer cunho histórico. Eram antigas histórias, mitos, lendas sobre o povo hebreu, que circularam na região da Palestina dois milênios antes de Cristo. 

Lendas – Nesses capítulos (Gn 12-36) aparecem vários tipos de histórias: os chamados “mitos de origem”, que descreviam como aconteceu a “tomada de posse” de um lugar por um patriarca do clã; as “lendas cultuais”, que narravam como um deus tinha aparecido nesse lugar ao patriarca do clã; indicações mais ou menos concretas sobre a vida dos clãs nômades que viveram na região e reflexões teológicas posteriores, destinadas a apresentar aos crentes israelitas modelos de vida e de fé. 

Início da lenda – O relato do sacrifício de Isaac (Gn 22) é uma “lenda cultual”. Nasceu muito antes de os patriarcas bíblicos terem se instalado na região. Havia uma lenda primitiva (que não é descrita em Gênesis) que contava que os cananeus (povo que habitava Canaã, a Terra Prometida) faziam sacrifícios humanos em um lugar sagrado, oferecendo crianças a um deus. A lenda dizia que esse deus tinha salvado uma criança que seria oferecida em sacrifício, substituindo-a por um animal. A partir daí, nesse lugar, os sacrifícios de crianças tinham sido substituídos por sacrifícios de animais. Foi essa a primeira etapa da tradição que nos é hoje proposta. 

Abraão e Isaac – Numa segunda fase, esta história primitiva foi aplicada à figura de Abraão, quando o seu clã se instalou na região. O pai cananeu da história primitiva, que levava o filho para ser oferecido em sacrifício, foi identificado com o patriarca Abraão. A tradição acabou por englobar o clã de Isaac, que se tornou, assim, o filho destinado ao sacrifício de que falava a velha lenda pré-israelita. 

Catequese – Por volta do século VIII a.C., os teólogos pegaram a antiga lenda cultual e puseram-na ao serviço da sua catequese. Na reflexão dos catequistas de Israel, a antiga lenda cultual tornou-se uma catequese sobre uma “prova” em que o justo Abraão manifestou a sua obediência radical e a sua confiança em Deus. 

Na Bíblia – Por fim, o redator de Gênesis acrescentou ao texto outros elementos teológicos. Foi, certamente, ele que ligou a lenda do sacrifício de Isaac com o monte santo dos sacrifícios do Templo de Jerusalém; foi ele, também, que acrescentou à história a ideia de que o comportamento de Abraão para com Deus mereceu uma recompensa e que essa recompensa iria, no futuro, derramar-se sobre todos os descendentes de Abraão. 

Prova – Todo o conteúdo da história está em “testar”, “pôr à prova”: Deus vai “submeter Abraão a um teste”. A “prova” a que Abraão é submetido é especialmente dramática: Deus pede-lhe que tome Isaac, o seu único filho, e o ofereça em sacrifício sobre um monte. Contudo, Isaac não é apenas o filho único e amado de Abraão, mas o herdeiro da promessa que Deus fez a Abraão: é a garantia de um futuro, de uma descendência numerosa que irá tomar posse da terra; é a garantia que deu sentido à peregrinação de Abraão desde que Deus o mandou deixar a sua terra, a sua família e a casa de seus pais. Deus que parece retomar o que havia dado. Por que essa mudança de planos? Quais são, na realidade, os desígnios de Deus? Pode-se confiar num Deus que muda de ideia dessa forma?  Como confiar num Deus que se contradiz? 

Abraão – Do princípio ao fim, Abraão não abre a boca a não ser para dizer “aqui estou”. De resto, Abraão não discute, não argumenta, não procura obter respostas para esse drama incompreensível, em que parece que Deus voltou atrás ao que lhe havia prometido. Abraão age, apenas. Levanta-se de madrugada, prepara as coisas para o holocausto, põe-se a caminho. Já no “monte do sacrifício”, Abraão constrói o altar, amarra a vítima e puxa a faca para matar o filho. O silêncio de Abraão, a rapidez da resposta e a forma determinada como age mostram a entrega, a confiança absoluta em Deus, a obediência levada até às últimas consequências. 

Resultado – Percorrido o longo e angustiante caminho da “prova”, chega finalmente o momento em que Deus, pela voz do seu mensageiro, faz o balanço e constata o resultado. A “prova” é conclusiva: todo o comportamento de Abraão, ao longo desta “crise”, testemunha que ele “teme o Senhor”. A recompensa? A obediência de Abraão irá gerar plenitude de vida e de bênçãos, uma descendência numerosa “como as estrelas do céu ou como a areia que está na margem do mar”. 

Mensagem – A história do sacrifício de Isaac destina-se, sobretudo, a propor a atitude que deve assumir diante de Deus aquele que crê. Abraão é apresentado como o protótipo do homem de fé ideal, que sabe escutar Deus e acolher os seus projetos com obediência incondicional, com confiança total… Mesmo que as propostas de Deus sejam incompreensíveis ou que os desafios de Deus interfiram com os projetos do homem, o crente ideal deve acolher os planos de Deus e realizá-los com fidelidade. Foi para deixar esta lição aos seus concidadãos que os teólogos foram buscar esta velha lenda.