sábado, 28 de dezembro de 2013

Foi Jesus desobediente aos 12 anos?


O Evangelho das missas deste domingo (Lc 2, 42-51) apresenta Jesus com 12 anos no Templo entre os doutores. José e Maria foram à Jerusalém na festa da Páscoa e levaram Jesus, que tinha 12 anos. A regressarem para Nazaré, depois de um dia de viagem, notaram que Jesus não estava na caravana. Voltaram à Jerusalém e, depois de três dias, o encontraram no Templo, sentado entre os doutores. Ao ser perguntado da razão de ter permanecido no Templo, Jesus respondeu: “Porque me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?”

Midrash – O Evangelho que nos é proposto é o final do “Evangelho da infância” de Lucas. Como já comentamos em artigos anteriores, estes textos foram escritos para se desenvolver um conceito teológico ou uma doutrina, criando-se uma história fictícia ou uma narração figurada (uma lenda, um mito). Portanto, a narração de Lucas não pretende ser um relato jornalístico ou uma informação histórica, mas sobretudo, uma catequese (texto escrito para o ensino) sobre Jesus.

Texto inacreditável – A “história” criada por Lucas, além de ser incrível, apresenta detalhes difíceis de ser sustentada como real: é inacreditável que o menino Jesus tenha decidido ficar sozinho em Jerusalém, sem dizer nada aos seus pais; como puderam José e Maria fazer a viagem de regresso de Jerusalém para Nazaré sem se certificarem de que o seu filho, apenas com 12 anos, estava na caravana?; é possível que os seus pais caminhassem durante um dia inteiro (30 km) sem sentirem a falta de Jesus?; é imaginável que José e Maria fizessem as refeições sem se darem conta de que Jesus não estava com eles? por que demoraram três dias para encontrá-lo, se o mais natural era que o procurassem no Templo, onde tinham ido em peregrinação?; onde e com quem passou Jesus as duas noites que esteve só e perdido em Jerusalém? como se atreve Maria a repreender a quem ela sabia ser o Filho do Altíssimo?

Qual a razão do texto? – Qual teria sido a razão de Lucas ter criado este texto? Para isso, devemos ter em conta que, nos primeiros tempos, os pregadores quando comunicavam o Evangelho, começavam sempre contando a vida de Jesus a partir do seu batismo no rio Jordão (como se este fosse o primeiro episódio importante da sua vida), e terminavam com a sua morte e ressurreição em Jerusalém. Um exemplo disso ocorre na eleição do substituto de Judas Iscariotes: puseram como condição que o sucessor conhecesse bem a vida de Jesus “a partir do batismo de João até dia em que nos foi arrebatado para o Alto” (At 1,21-22). Quer dizer que a vida completa do Senhor abrangia este período.

Um problema – Como a pregação da vida de Jesus começava com o seu batismo, alguns cristãos pensaram que Jesus tinha “começado” a ser Filho de Deus a partir do batismo. Isto é, julgavam que Jesus tinha sido um homem comum e normal até os 33 anos e que, a partir do batismo, foi “adotado” por Deus como seu Filho. Por isso, após ser batizado, uma voz do céu lhe dizia pela primeira vez: “Tu és meu Filho”. Esta perigosa crença, começou a espalhar-se pouco a pouco em algumas comunidades (desta crença surgiram várias heresias, como o Adocionismo e Nestorianismo).

Evangelhos da Infância – Quando foram escritos os evangelhos, Marcos (o primeiro a escrever) começou o seu relato de maneira tradicional, isto é, com o batismo de Jesus (Mc 1). Mas Lucas (e Mateus), para evitar a possível interpretação de que Jesus tinha “começado” a ser Filho de Deus a partir do batismo, decidiu acrescentar os “relatos da infância” de Jesus, que mostravam a sua filiação divina desde o nascimento.

Jesus cresceu duas vezes – Quando Lucas já tinha terminado de escrever a infância de Jesus (a anunciação do anjo, a visita de Maria a Isabel, a apresentação do menino recém-nascido no Templo), e tinha escrito a conclusão (“E o menino crescia, e fortalecia-se, enchendo-se de sabedoria, e a graça de Deus estava com Ele” – Lc 2,40), tomou conhecimento da história de Jesus adolescente perdido no Templo aos doze anos. Resolveu incluí-lo no texto da infância que já havia escrito. Mas se esqueceu que já havia colocado uma frase final no texto e voltou a colocá-la outra vez mais à frente. Assim, o capítulo 2 de Lucas “termina” duas vezes, com a repetição dos versículos 40 e 52.


QUER SABER MAIS? – Esta história de “Jesus no Templo” é contada em detalhes em alguns textos apócrifos (não reconhecidos pela Igreja). No “Evangelho apócrifo de Tomé – narrações da infância de Jesus” e no “Evangelho apócrifo de Pedro sobre a infância do Senhor” são descritas todas as conversas de Jesus com os doutores do Templo e a conversa dos fariseus com Maria. Se você quiser receber estes textos solicite por E-mail que lhe enviaremos o arquivo gratuitamente.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Quando nasceu Jesus?


Hoje vamos apresentar detalhes sobre o nascimento de Jesus com informações tiradas dos Evangelhos Canônicos e de textos históricos.

Cronologia – A cronologia do nascimento de Jesus não é encontrada, diretamente, nos Evangelhos.  No entanto, é possível a reconstrução do quadro cronológico a partir de alguns dados evangélicos, históricos e astronômicos.
         
O que dizem os Evangelhos – O ano em que Jesus nasceu pode ser calculado em função de dois dados evangélicos: alguns anos antes da morte de Herodes (Mt 2,1-19) e por ocasião de um recenseamento, quando Públio Sulpício Quirino era governador da província romana da Síria (Lc 2,2).

Um pouco de História – De acordo com o historiador judeu Flávio Josefo, Herodes governou 37 anos (desde o 714º ano do calendário romano, que conta os anos a partir da fundação de Roma – ou 40 a.C. – até a sua morte no ano 750º, ou 4 a.C.).   Herodes morreu alguns dias após um eclipse lunar e cerca de 10 dias antes da Páscoa.  A astronomia confirma um eclipse lunar visível em Jerusalém na noite de 12 de março de 4 a.C. e a Páscoa daquele ano ocorreu em 11 de abril.  Portanto, Herodes morreu no final de março do ano 4 a.C.

Herodes – Sabe-se também, que no princípio do inverno do ano de 5 a.C. Herodes, já doente (problemas pulmonares), se transferiu para Jericó e, depois, para as termas de Calliroe, no Mar Morto.  Portanto, a visita dos magos a Jesus e a Herodes em Jerusalém se deu antes dessa data (Mt 2).  Por outro lado, Herodes, calculando a época desde o nascimento de Jesus, fez matar todos os meninos com menos de dois anos.  Isso nos leva a concluir que Jesus deveria ter nascido pelo menos dois anos antes da morte de Herodes.

O ano do nascimento de Jesus – Essas considerações nos levam a situar o nascimento de Jesus nos anos 7 (mais provável) ou 6 antes de nossa era e, portanto, se não fosse um paradoxo, poderíamos dizer em 7 ou 6 "antes de Cristo".

Jesus não nasceu em dezembro – Quanto ao mês do nascimento de Jesus, a única informação está em Lc 2,8: "na mesma região havia uns pastores que estavam nos campos e que durante as vigílias montavam guarda a seu rebanho".   Sabe-se que, em dezembro, quando comemoramos o Natal, a temperatura na região de Belém é abaixo de zero e, normalmente, há geadas.   Portanto, certamente não haveria gado, no mês de dezembro, nos pastos próximos a Belém.   Atualmente, naquela região, os rebanhos são levados para o campo em março e recolhidos no fim de outubro.

A época mais provável – Portanto, o nascimento de Jesus se deu antes do inverno (do hemisfério norte), talvez no mês de setembro ou outubro do ano 7 (talvez 6) antes de nossa era.

25 de dezembro – Nada sabemos sobre o dia do nascimento de Jesus. Os romanos comemoravam em 25 de dezembro o ‘Dia do Sol Invencível’ pois, os dias começavam a ficar mais longos.  No século IV, os cristãos adotaram esta data para proclamar o nascimento de Cristo.


QUER SABER MAIS? – Flávio Josefo foi um escritor e historiador judeu que viveu entre 37 e 103 d.C. No primeiro século escreveu a obra “A História dos Hebreus” que, depois da Bíblia, é a maior fonte de informações sobre os impérios da Antiguidade, o povo judeu e o Império Romano. Se você quiser receber o texto completo deste livro (1.627 páginas) solicite por E-mail que lhe enviaremos o arquivo gratuitamente.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Tu és mesmo o Messias?


No Evangelho das missas deste domingo, João Batista manda os seus discípulos irem até Jesus e perguntar-lhe: “És Tu Aquele que há de vir ou devemos esperar outro?”. João Batista, como todo o povo judeu, aguardava a chegada de um Messias (o Cristo, o Ungido de Deus), como estava prometido no Antigo Testamento. Por essa razão, ele manda seus discípulos perguntarem a Jesus se Ele realmente o Messias esperado, ou devemos esperar por outro.


Messias – Nos primeiros séculos, uma das dificuldades do cristianismo era provar aos judeus que Jesus era o Messias, o Cristo esperado pelos judeus. Conforme o Antigo Testamento, este personagem deveria ter três características prometidas por Deus para o final dos tempos: um profeta, um rei e um sacerdote. Para Jesus ser o Messias, ele deveria ter as três qualidades.
 
Profeta, rei, sacerdote – A vinda de um profeta no final dos tempos foi comunicada por Deus a Moisés no livro do Deuteronômio (18,18): “Suscitarei um profeta como tu entre teus irmãos”. A promessa de um rei está no 2º Livro de Samuel (7,12), onde Deus diz a Davi: “Quando tu morreres eu mandarei um descendente teu e manterei o seu trono para sempre”. Finalmente, a promessa de um futuro sacerdote santo foi para Eli: “Mandarei um sacerdote fiel, que atue segundo a minha vontade” (1Sam 2, 35).

Jesus: Profeta e Rei – Cristo foi reconhecido como “profeta” (Mc 9,8), como “grande profeta” (Lc 7,16) e como “o profeta” (Jo 6,14). Também foi reconhecido como “rei” (Mt 21,9), como “o rei que vem em nome do Senhor” (Lc 19,38), como “o rei de Israel” (Jo 12,13).  O próprio Pedro reconhece Jesus como o profeta prometido (Hb 3,22) e como rei esperado (Hb 2,36).

Por que a pergunta de João? – João Batista e os judeus esperavam um Messias que viesse lançar fogo à terra, castigar os maus e os pecadores, dar início ao “juízo de Deus” (Mt 3,11-12). Ao contrário, Jesus aproximou-Se dos pecadores, dos marginais, dos impuros, estendeu-lhes a mão, mostrou-lhes o amor de Deus, ofereceu-lhes a salvação (Mt 8-9). João e os seus discípulos ficaram desconcertados: Jesus será o Messias esperado, ou é preciso esperar um outro que venha atuar de uma forma mais decidida, mais lógica e mais justiceira?

Jesus Sacerdote – Porém jamais, em nenhuma ocasião, Jesus foi reconhecido como sacerdote. Isto por uma clara razão: para ser sacerdote ele deveria pertencer a tribo de Levi, e Jesus pertencia à tribo de Judá. Portanto, para os judeus, Jesus era um leigo. Explicando melhor: Quando os Hebreus chegaram à Terra Prometida, se dividiram em 12 tribos. Só poderiam ser sacerdotes os descendentes da tribo de Levi (chamados levitas). Jesus pertencia à tribo de Judá, portanto nunca poderia ser aceito como sacerdote.

Solução – Por volta do ano 80 d.C. apareceu na cidade de Roma um personagem de grande cultura e grande conhecimento da língua grega. Este autor, que para nós permanece anônimo, escreveu a Carta aos Hebreus, esclarecendo que Jesus poderia ser sacerdote. Nos capítulos 7 a 10 da Carta, ele desenvolve o seguinte raciocínio: interpretando o Salmo 110 (vers. 4), em que Deus diz “tu és sacerdote para sempre, segundo a Ordem de Melquisedec”, ele afirma que Deus criou uma nova ordem de sacerdotes, distinta da ordem dos levitas. Jesus Cristo desceu dos céus para ser o sumo sacerdote desta nova ordem.
 
Quem era? – Melquisedec é proclamado como “rei de Salém” e “sacerdote do Deus Altíssimo” (Gn 14). Foi ao encontro de Abrão, abençoou-o, entregando-lhe pão e vinho. Trata-se de um personagem estranho, pois o texto não indica as suas origens nem a sua ordem sacerdotal.


Nova ordem – Portanto Cristo é o primeiro sacerdote, protagonista e iniciador de uma nova ordem de sacerdotes. Pela interpretação do Salmo (110, 4) e da Carta aos Hebreus (cap.7 a 10) a Igreja Católica proclama Jesus como “sacerdote para sempre, segundo a Ordem de Melquisedec”.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Anunciação do Anjo à Virgem Maria


O Evangelho das missas deste domingo descreve a Anunciação da Virgem Maria (Lc 1, 26-38). A Anunciação é a celebração cristã do anúncio pelo Arcanjo Gabriel para a Virgem Maria, de que ela seria a mãe de Jesus Cristo. Apesar da virgindade, Maria milagrosamente conceberia uma criança, que seria chamada de Filho de Deus. Gabriel disse a Maria ainda que deveria chamar a criança de Jesus ("Salvador"). A Igreja Católica celebra este evento na festa da Anunciação, em 25 de março, exatamente nove meses antes do Natal.

Nazaré – A cena situa-nos numa aldeia da Galileia, chamada Nazaré. A Galileia, região a norte da Palestina, à volta do Lago de Tiberíades, era considerada pelos judeus uma terra longínqua e estranha, em permanente contato com as populações pagãs e onde se praticava uma religião heterodoxa, influenciada pelos costumes e pelas tradições pagãs. Daí a convicção dos mestres judeus de Jerusalém de que “da Galileia não pode vir nada de bom”. Quanto a Nazaré, era uma aldeia pobre e ignorada, nunca nomeada na história religiosa judaica e completamente à margem dos caminhos de Deus e da salvação.

Maria – A jovem de Nazaré que está no centro deste episódio era “uma virgem desposada por um homem chamado José”. O casamento hebraico considerava o compromisso matrimonial em duas etapas: havia uma primeira fase, na qual os noivos se prometiam um ao outro (os “esponsais”); só numa segunda fase surgia o compromisso definitivo (matrimônio propriamente dito). Durante os “esponsais”, os noivos não viviam em comum, mas o compromisso que os dois assumiam tinha já um carácter estável, de tal forma que, se surgia um filho, este era considerado filho legítimo de ambos. A Lei de Moisés considerava a infidelidade da “prometida” como uma ofensa semelhante à infidelidade da esposa (Dt 22,23-27). José e Maria estavam na situação de prometidos (esponsais), não tendo ainda celebrado o matrimônio.

Evangelho da Infância – O texto da Anunciação pertence ao “Evangelho da Infância”, na versão de Lucas. Os capítulos 1 e 2 dos Evangelhos de Mateus e Lucas são chamados de “Evangelhos da Infância”, pois descrevem o nascimento de Jesus. O texto da Anunciação, que será lido neste domingo, pertence ao “Evangelho da Infância” na versão de Lucas.

Midrash – Estes textos foram escritos na forma de midrash: para se desenvolver um conceito teológico ou uma doutrina, cria-se uma história fictícia ou uma narração figurada (uma lenda, um mito). Portanto, a narração da Anunciação de Lucas não pretende ser um relato jornalístico ou uma informação histórica; mas é, sobretudo, uma catequese (texto escrito para o ensino) destinada a proclamar certas realidades salvíficas.

Homologese – É outra característica do texto de Lucas. A homologese faz com que a história fictícia que está sendo contada se utilize de fatos e pessoas já conhecidas (do Antigo Testamento) e aparições apocalípticas (anjos, aparições, sonhos). Desta forma a narração se torna mais real.

Diálogo repetido – Desta forma, a narrativa torna-se uma construção artificial. Isto pode ser constatado pelos elementos do diálogo entre o anjo e Maria, que são copiados do Antigo Testamento. A saudação “alegra-te” (v. 28) foi tirada do profeta Sofonias (3,14). A expressão “O Senhor está contigo” é do livro dos Juízes (6,12), quando o anjo aparece a Gedeão. “Não temas” é a frase do anjo a Daniel (Dn 10,12). O “nada é impossível a Deus” (v. 37) nós o encontramos em Gn 18,14, quando o anjo anuncia o nascimento de um filho a Abraão.

Mais repetições – A mensagem “conceberás em teu seio e darás à luz um filho, e lhe darás o nome de Jesus...” (v. 31) é a frase do anjo a Agar, escrava de Abraão (Gn 16,11). E a continuação — “ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai. Ele reinará na casa de Jacó pelos séculos e seu reino não terá fim” (v. 32-33) – é uma clara alusão à profecia de Natã ao rei Davi, prometendo-lhe, em nome de Deus, um sucessor em sua casa e o reinado eterno de sua linhagem (2Sm 7,12-16).


Anunciação – Lucas recolheu frases importantes do Antigo Testamento, todas elas referentes a intervenções de Deus na história e com elas escreveu um conto sobre a maior das intervenções divinas na humanidade.

sábado, 30 de novembro de 2013

Papa Francisco propõe uma reforma na Igreja


No último dia 26 de novembro, o Papa Francisco publicou a exortação apostólica “Evangelii Gaudium" ("A Alegria do Evangelho"), dirigida aos fiéis cristãos. Em seu primeiro texto, o Papa faz uma severa crítica à Igreja, apresentado a maior reforma do Vaticano em meio século (desde o Concílio Vaticano II) e propondo uma “nova etapa de evangelização” e “conversão” da Igreja. Vamos destacar os principais pontos do documento.

Evangelização – Francisco apela à Igreja para “recuperar o frescor original do Evangelho”, encontrando “novas formas” e “métodos criativos”. “Precisamos de uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como elas estão”. É necessário “reformar as estruturas eclesiais”, para que “todas se tornem mais missionárias”. Precisamos “receber a Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores tristes, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho, cuja vida irradie fervor de quem recebeu a alegria de Cristo”.

Mais Evangelização – O Papa insiste que prefere “uma igreja ferida e suja por ter saído às estradas, em vez de uma igreja preocupada em ser o centro e que acaba prisioneira, num emaranhado de obsessões e procedimentos”. Um dos pontos centrais é ainda a abertura da Igreja aos fiéis. “Precisamos de igrejas com as portas abertas” para evitar que aqueles que estão em busca de Deus encontrem “a frieza de uma porta fechada”. “Nem mesmo as portas dos Sacramentos se deveriam fechar por qualquer motivo”. A escolha dos fiéis que deveriam comungar, também é focada pelo papa. “A Eucaristia não é um prêmio para os perfeitos, mas um generoso remédio e um alimento para os fracos”.

Padres – O documento também faz apelos a padres e sacerdotes. Pedindo uma “revolução de ternura”, o papa critica “aqueles (religiosos) que se sentem superiores aos outros” (ao que chama de elitismo narcisista) e afirma que apenas fazer obras de caridade não seria o suficiente. Sobre as homilias, o papa escreve que “são muitas as reclamações em relação a este importante ministério e não podemos fechar os ouvidos”. Não deve ser nem uma conferência e nem uma aula. Um enfoque especial é dirigido também aos religiosos que não se preparam devidamente para as missas. “Um pregador que não se prepara não é espiritual, é desonesto e irresponsável”. Quanto às confissões, o papa é ainda mais incisivo: “não se trata de uma câmara de tortura”.

Reforma – Francisco convida a Igreja Católica a realizar uma "reforma profunda" de suas estruturas. Num gesto inédito para um papa, ele fala em promover uma “saudável descentralização” na Igreja. A descentralização apontaria até mesmo para a abertura de espaços a diferentes formas de praticar o catolicismo. “O cristianismo não dispõe de um único modelo cultural e o rosto da Igreja é multiforme”. “Nesta renovação não se deve ter medo de rever costumes e normas que foram adotadas ao longo dos séculos.” “Há normas e preceitos eclesiásticos que podem ter sido eficazes em outras épocas, mas já não têm mais a mesma força educativa”.

Aborto – Francisco também afirmou que "não se deve esperar que a Igreja mude sua postura" sobre a questão do aborto, pois o assunto não está sujeito a "supostas reformas ou modernizações”. “Não é progressista pretender resolver os problemas eliminando uma vida humana". No entanto, Francisco reconheceu que "fizemos pouco para acompanhar as mulheres que se encontram em situações muito duras, onde o aborto se apresenta como uma rápida solução para suas profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como produto de um estupro ou em um contexto de extrema pobreza". "Quem pode deixar de compreender essas situações de tanta dor?"

Crianças – “Entre os fracos que a Igreja quer cuidar estão as crianças em gestação, que são as mais indefesas e inocentes de todos, às quais hoje se quer negar a dignidade humana”. A defesa da vida por nascer "está intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano". "Ela representa a convicção de que um ser humano é sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada etapa de seu desenvolvimento."

Mulheres – O Pontífice confirmou declarações anteriores de que a Igreja não pode ordenar mulheres. O sacerdócio só para homens, diz ele, “não é uma questão aberta à discussão”, mas as mulheres devem ter mais influência na liderança da Igreja.

Economia – O Papa destina uma parte importante de seu texto à situação mundial e não deixa de atacar o modelo econômico que prevalece: “O atual sistema econômico é injusto pela raiz”. “Esta economia mata porque prevalece a lei do mais forte”. “Os excluídos não são explorados, mas lixo, sobras”. “O dinheiro deve servir, e não dominar”. “Até que não se resolvam radicalmente os problemas dos pobres, não se resolverão os problemas do mundo”.


Política – O papa ainda apela para que a Igreja não tenha medo de se envolver nos debates políticos e que faça parte da luta por influenciar grupos políticos para garantir maior justiça social. Os pastores têm “o direito de emitir opiniões sobre tudo o que se relaciona com a vida das pessoas”. “Ninguém pode exigir de nós que releguemos a religião à secreta intimidade das pessoas”.  O Papa volta a defender os “mais fracos”, os “sem-teto, os dependentes de drogas, os refugiados” e apela aos países que promovam uma “abertura generosa” aos imigrantes. Para ele, existem “muitos cúmplices” nesses crimes.

sábado, 23 de novembro de 2013

Hoje mesmo estarás comigo no paraíso


O Evangelho das missas deste domingo situa-nos no Calvário (lugar do crânio), diante de uma cruz. A cena apresenta-nos Jesus crucificado, dois “malfeitores” crucificados também, os chefes dos judeus que “zombavam de Jesus”, os soldados que faziam piada dos condenados e o povo silencioso, perplexo, em expectativa. Por cima da cruz de Jesus, havia uma inscrição: “Jesus Nazareno, rei dos judeus”.

INRI – À primeira vista, está a famosa inscrição que define Jesus como “rei dos judeus”. É uma indicação que, naquela situação em que Jesus se encontrava, parece irônica: Ele não está sentado num trono, mas pregado numa cruz; não aparece rodeado de seguidores fiéis que O incensam e adulam, mas dos chefes dos judeus que O insultam e dos soldados que zombam Dele; Ele não exerce autoridade de vida ou de morte sobre milhões de homens, mas está pregado numa cruz, indefeso, condenado a uma morte infamante… Não há aqui, qualquer sinal que identifique Jesus com poder, com autoridade, com realeza terrena.

Rei? – Contudo, a inscrição da cruz – irônica aos olhos dos homens – descreve com precisão a situação de Jesus, na perspectiva de Deus: Ele é o “rei” que, da cruz, preside a um “Reino” de serviço, de amor, de entrega, de dom da vida. Neste quadro, explica-se a lógica desse “Reino de Deus” que Jesus veio propor aos homens.

Malfeitores – O quadro é completado por uma cena bem significativa, para entender o sentido da realeza de Jesus… Ao lado de Jesus estão dois “malfeitores”, crucificados como Ele. Enquanto um O insulta (este representa aqueles que recusam a proposta do “Reino”) e outro que pede: “Jesus, lembra-Te de mim quando vieres com a tua realeza”. A resposta de Jesus a este pedido é: “hoje mesmo estarás comigo no paraíso”.

Hoje no paraíso – Jesus é o Rei que apresenta aos homens uma proposta de salvação e que, da cruz, oferece a vida. O “estarás hoje no paraíso” não expressa um dado cronológico, mas indica que a salvação definitiva (o “Reino”) torna-se realidade a partir da cruz. Na cruz, manifesta-se plenamente a realeza de Jesus que é perdão, renovação do homem, vida plena; e essa realeza abarca todos os homens – mesmo os condenados – que acolhem a salvação.

No Paraíso – A Tradição afirma que o agraciado com a promessa do paraíso foi São Dimas. O “Bom Ladrão”, com sua atitude de humildade, reconhecendo-se criminoso, e com sua profissão de fé (“Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”), “roubou” o Paraíso, tornando-se o primeiro herdeiro dos que sofrem e choram.

Apócrifo – O Evangelho de Lucas cita apenas que eram dois ladrões, não indicando os seus nomes. Os nomes aparecem somente no livro apócrifo chamado “Evangelho de Nicodemos” (9,5): Dimas e Gestas. Os livros apócrifos são textos (criados a partir do 2º século), escritos por pessoas devotas, ou simplesmente curiosas, sobre tradições, histórias ou qualquer coisa que se relacionasse com Jesus. Por serem textos sem muito critério, não foram incluídos na Bíblia.

Da cruz ao paraíso – Jesus quer realizar o seu reino numa sociedade de irmãos e filhos de Deus. Até o momento de sua morte, vemos o que foi a constante de Sua vida: a preferência pelos pecadores, marginalizados e pobres. Por isso mesmo, até no último momento, oferece o Paraíso ao Bom Ladrão, que se arrependeu e acreditou nele. Da humilhação e fraqueza suprema da cruz, Cristo Jesus aparece como rei vencedor do pecado e da morte.

Ressurreição – A promessa que faz a Dimas revela esta vitória e é a garantia de nossa esperança cristã. A partir da morte e ressurreição de Jesus, que é também a sua glorificação, estão abertas as portas do Paraíso, que Adão nos tinha fechado. Fica inaugurado o reino da Ressurreição dos mortos. Jesus quer reinar a partir da cruz e não a partir do poder, e quer realizar seu reino numa sociedade de irmãos entre si e de filhos de Deus.


Dimas em Bauru – Em nossa cidade existe uma paróquia que tem Dimas como padroeiro. É a Paróquia de São Judas Tadeu e São Dimas, localizada nos altos da cidade.  São Dimas é comemorado no dia 25 de março.

sábado, 16 de novembro de 2013

Não ficará pedra sobre pedra


No Evangelho deste domingo (Lc 21,5–9), Jesus está no pátio do Templo de Jerusalém conversando com algumas pessoas sobre as belas pedras usadas na construção do Templo. Durante a conversa, Jesus faz a previsão de que tudo será destruído: “Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído.”

O Templo – O Templo de Jerusalém era o principal centro de culto da religião do povo de Israel, onde se realizavam as diversas ofertas e sacrifícios. De acordo com a tradição judaico-cristã, o Primeiro Templo foi iniciada a sua construção no terceiro ano do reinado de Salomão e concluído sete anos depois. Foi saqueado várias vezes e acabou por ser totalmente incendiado e destruído por Nabucodonosor II, em 587 A.C. Segundo o relato bíblico, o templo foi mandado reconstruir por decreto de Ciro II da Pérsia no ano 539 a.C., com a volta dos judeus mantidos em cativeiro na Babilônia.

Remodelação de Herodes – No século I a.C., Herodes, o Grande, ordenou uma remodelação ao templo (considerada por muitos judeus como uma profanação) com o propósito de agradar a César, mandando construir num dos vértices da muralha a Torre Antonia, uma guarnição romana que dava acesso direto ao interior do pátio do Templo.

Guerra Judaica – Grande Revolta Judaica foi a guerra travada pelos judeus contra o Império romano de 66 a 73 d.C. Teve início em 66, como reação a ataques contra locais de culto judaicos. Em 70, as legiões do general Titus cercaram e destruiram Jerusalém (cada legião era formada de 4 a 8 mil soldados, além de escravos e ajudantes). O Templo foi então saqueado e incendiado pelos romanos. Conforme historiadores da época, morreram um milhão e cem mil judeus e noventa e sete mil foram levados presos. A cidade de Jerusalém foi totalmente destruída e incendiada. Deste templo, só restou o que conhecemos como o Muro das Lamentações.

Diáspora Judaica – A explulsão dos judeus da Terra Santa é um evento central na história da Diáspora Judaica. Os judeus se dispersaram pelo mundo, formando um povo sem território. Apenas em 1948 (quase dois mil anos após a Guerra Judaica) foi criado o Estado de Israel, um país para abrigar os judeus.

Após a queda – Depois de anuncia a destruição de Jerusalém, Jesus faz uma reflexão sobre o “tempo da Igreja”, que culminará com a Sua segunda vinda. Como será esse tempo? Como vivê-lo?

Não será o fim – Em primeiro lugar, Lucas sugere que, após a destruição de Jerusalém, surgirão falsos messias e visionários que anunciarão o fim. Lucas avisa: “não será logo o fim”. A destruição de Jerusalém no ano 70 deve ter parecido aos cristãos o prenúncio da segunda vinda de Jesus e alguns pregadores populares deviam alimentar essas ilusões… Mas Lucas (que escreveu o Evangelho nos anos 80) quer eliminar essa febre escatológica que crescia em certos setores cristãos: em lugar de viverem obcecados com o fim, os cristãos deviam preocupar-se em viver uma vida cristã cada vez mais comprometida com a transformação “deste” mundo.

Tempo de espera – Em segundo lugar, Lucas diz aos cristãos que, paulatinamente, irá surgindo um mundo novo. Para dizer isso, Lucas recorre a imagens apocalípticas (um povo se erguerá contra outro povo e reino contra reino; haverá grandes terremotos e, em diversos lugares, fome e epidemias; haverá fenômenos espantosos e grandes sinais no céu), muito usadas pelos pregadores populares da época para falar da queda do mundo velho – o mundo do pecado, do egoísmo, da exploração – e do surgimento de um mundo novo… A questão, portanto, é esta: no tempo entre a queda de Jerusalém e a segunda vinda de Jesus, o “Reino de Deus” estará se manifestando; o mundo velho desaparecerá e nascerá um mundo novo. É claro que a libertação plena e definitiva só acontecerá com a segunda vinda de Jesus.

Dificuldades – Em terceiro lugar, Lucas põe os cristãos de sobreaviso para as dificuldades e perseguições que marcarão a caminhada histórica da Igreja, até à segunda vinda de Jesus. Lucas lembra-lhes, contudo, que não estarão sós, pois Deus estará sempre presente; será com a força de Deus que eles enfrentarão os adversários e que resistirão à tortura, à prisão e à morte; será com a ajuda de Deus que eles poderão, até, resistir à dor de ser atraiçoados pelos próprios familiares e amigos…


Missão da Igreja – O discurso escatológico define, portanto, a missão da Igreja na História (até à segunda vinda de Jesus): dar testemunho da Boa Nova e construir o Reino. Os discípulos nada deverão temer: haverá dificuldades, mas eles terão sempre a ajuda e a força de Deus.

sábado, 9 de novembro de 2013

Filhos da ressurreição

No Evangelho deste domingo (Lc 20,27-38), Jesus discute com os saduceus sobre a ressurreição.

A questão – Jesus é procurado por um grupo de saduceus, que lhe propõe a seguinte questão: uma mulher casou, sucessivamente, com sete irmãos, cumprindo a lei do levirato (Dt 25,5-10). Quando ressuscitarem, ela será mulher de qual dos irmãos?

Os saduceus – No tempo de Jesus, os saduceus formavam um grupo aristocrático, recrutado sobretudo entre os sacerdotes da classe superior. Exerciam a sua autoridade à volta do Templo e dominavam o Sinédrio (realmente seriam eles os responsáveis pela condenação de Jesus). A sua importância política era real, ainda que muito limitada pela presença do procurador romano. Politicamente, eram conservadores e entendiam-se bem com o opressor romano… Pretendiam manter a situação, para não ver comprometidos os benefícios políticos, sociais e econômicos de que desfrutavam.

Mais saduceus – Para os saduceus, apenas interessava a Lei escrita – a “Torah”. Negavam que a Lei oral (aceita pelos fariseus) tivesse qualquer valor. Este apego conservador à Lei escrita explica que negassem algumas crenças e doutrinas admitidas nos ambientes populares frequentados pelos fariseus. Por isso, não aceitavam a ressurreição dos mortos: nenhum versículo da “Torah” apoiava essa crença.

Casamento levítico – O Livro de Deuteronômio (Dt 25,5-6) diz: “Quando dois irmãos moram juntos e um deles morre sem deixar filhos, a viúva não sairá da casa para casar-se com nenhum estranho; seu cunhado se casará com ela, cumprindo o dever de cunhado. O primogênito que nascer receberá o nome do irmão morto, para que o nome deste não se apague em Israel”. Certamente, uma lei que para nós parece no mínimo estranha! Mas, na época, antes da fé na ressurreição, era de suma importância para Israel que o nome de um homem se propagasse nos seus filhos. Por isso, era dever do irmão sobrevivente suscitar um filho para o falecido, para que este não morresse na memória do seu povo.

Questão – A questão central do nosso texto gira em torno da ressurreição, um tema que não significava nada para os saduceus. Com o objetivo de ridicularizar a crença em ressurreição, os saduceus apresentaram a Jesus a questão hipotética da mulher que se casou, sucessivamente, com sete irmãos, cumprindo a lei do levirato. Quando ressuscitarem, ela será mulher de qual dos irmãos?

Ressurreição – A primeira parte da resposta de Jesus afirma que a ressurreição não é (como pensavam os fariseus do tempo) uma simples continuação da vida que vivemos neste mundo (como uma revivificação, ideia apresentada na primeira leitura da missa), mas uma vida nova e distinta, uma vida de plenitude que dificilmente podemos entender, baseados somente em nossas realidades quotidianas. Nessa nova vida não haverá casamento (são semelhantes aos anjos), pois a única preocupação será servir e louvar a Deus.

Vida nova – O poder de Deus, que chama os homens da morte à vida, transforma e assume a totalidade do ser humano, de forma que nascemos para uma vida totalmente nova e em que as nossas potencialidades serão elevadas à plenitude. A nossa capacidade de compreensão deste mistério é limitada, pois estamos contemplando as coisas e classificando-as à luz das nossas realidades terrenas; no entanto, a ressurreição que nos espera ultrapassa totalmente a nossa realidade terrena.


Certeza da ressurreição – A segunda parte da resposta de Jesus é uma afirmação da certeza da ressurreição. Jesus cita-lhes a “Torah” (Ex 3,6): no episódio da sarça-ardente, Jahwéh revelou-se a Moisés como “o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”… Ora, se Deus Se apresenta dessa forma – muitos anos depois de Abraão, Isaac e Jacob terem desaparecido deste mundo – isso quer dizer que os patriarcas não estão mortos (um homem “morto” – ou seja, um homem reduzido ao estado de uma sombra inconsciente e privada de vida, no “sheol”, segundo a ideia semita corrente – tinha perdido a proteção de Deus, pois já não existia como homem vivo e consciente). Na perspectiva de Jesus, portanto, os patriarcas não estão reduzidos ao estado de sombras, na obscuridade absoluta do “sheol”, mas vivem atualmente em Deus. Conclusão: se Abraão, Isaac e Jacob estão vivos, podemos falar em ressurreição. 

sábado, 2 de novembro de 2013

O ESPIRITISMO E A COMUNHÃO DOS SANTOS


Muitas pessoas perguntam a razão dos Católicos pedirem ajuda aos santos (em vez de recorrer a Cristo), como se eles pudessem nos salvar. Recorremos às explicações do Padre João Augusto Anchieta Amazonas Mac Dowell, S.J., Doutor em Filosofia e Teologia pela PUC (RJ) e atual Professor Titular do Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) em Belo Horizonte.
 

Graça – É claro que só Cristo nos salva, como ensina a Bíblia. Mas, também para a Igreja católica, não são os santos que nos concedem as graças que pedimos a eles. Por isso dizemos: Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores. Quando reza aos santos e santas a Igreja usa sempre a fórmula: rogai por nós. Quer dizer: pede que eles roguem por nós a Deus, para que ele nos conceda a graça que precisamos. Ao contrário, quando se dirige a Cristo, a Igreja diz: Senhor, tende piedade de nós, como fez o cego do Evangelho; porque Cristo, o Filho de Deus, recebeu do Pai o poder de dar a vida e a salvação a toda a humanidade. 

Orações – Portanto, quando rezamos a um santo, não o colocamos no lugar de Jesus Cristo, como se ele fosse divino e tivesse o poder de nos salvar. Pedimos só que eles orem por nós a Deus. E isso não é absolutamente contra a Bíblia. As cartas de Paulo contêm muitas preces que ele faz pelos cristãos das Igrejas que tinha fundado. Por exemplo, na carta aos fiéis de Colossos diz: "Não paramos de rezar por vós e de pedir que conheçais plenamente a sua vontade" (1,9). Na mesma carta pede também as orações deles por si e por sua missão, dizendo: "Rezai também por nós, para que Deus se digne abrir caminho para a pregação, de modo que possamos anunciar o mistério de Cristo, pelo qual estou algemado" (4,3). 

Intercessão – Estes exemplos mostram que é próprio dos cristãos rezar uns pelos outros e pedir as orações, sobretudo daqueles que estão mais perto de Deus pela sua vida santa. De fato, o apóstolo Tiago diz na sua carta: "Orai uns pelos outros para serdes curados. É de grande poder a oração assídua do justo" (5,16). E cita o caso de Elias, que era um homem como nós, mas orou fervorosamente e obteve um milagre de Deus. Portanto, quando desejamos alcançar uma graça de Deus, podemos dirigir-nos diretamente a ele; mas também podemos pedir a outros que intercedam por nós com suas orações. 

Santos – Mas, se recorremos à intercessão de nossos irmãos e irmãs aqui na terra, com muito maior razão rezamos aos santos, para que obtenham de Deus as graças que precisamos. Durante a sua vida foram amigos de Cristo; e agora, que vivem na sua companhia, não desejam senão ajudar-nos, rogando por nós. Assim, orando aos santos, não nos esquecemos de Cristo; ao contrário, reconhecemos que é Dele que os santos recebem toda sua santidade e poder. 

Espiritismo e oração pelos mortos – Como os espíritas, os cristãos acreditam na natureza espiritual do ser humano e na sua sobrevivência depois da morte. Acreditam também que existem relações entre nós, aqui na terra, e os que já deixaram esta vida. Mas a maneira de entender a comunicação com os defuntos no espiritismo e no cristianismo é diferente. 

Comunhão – Os católicos creem na "comunhão dos santos", como dizemos no "Credo". A palavra "santos" significa aqui todos os que acreditam em Jesus Cristo e são santificados pelo Espírito Santo que receberam no batismo. A comunhão dos santos é a própria Igreja, família de Deus, formada por todos os fiéis de Cristo. Por meio da oração podemos comunicar-nos também com os que morreram em paz com Deus. Por um lado, podemos ajudar os que ainda não estão completamente purificados de seus pecados a alcançar a alegria eterna. Nossa prece, unida a de Jesus, especialmente o oferecimento da Missa, é escutada por Deus e apressa a sua purificação. Por outro, podemos também pedir a ajuda dos santos que já gozam da presença de Deus e estão prontos a interceder por nós. Eles escutam a nossa oração e obtêm do Pai comum, por meio do único mediador Jesus Cristo, as graças que pedimos. 

Comunicação – Trata-se, portanto, de uma comunicação espiritual, na base da fé, da esperança e do amor. Na medida em que estão unidos com Deus no mesmo Espírito de Jesus, os cristãos podem comunicar-se com os defuntos, desejando e fazendo o bem uns aos outros pela bondade e poder do próprio Deus.  

Espiritismo – O espiritismo, ao contrário, pretende que podemos comunicar-nos sensivelmente com os espíritos dos mortos, recebendo suas mensagens, sobretudo através de médiuns. Quem consulta os espíritos deseja quase sempre satisfazer a sua curiosidade tanto a respeito do outro mundo, como da vida aqui na terra. Quer saber, por exemplo, como está passando uma pessoa falecida ou pergunta-lhe alguma coisa sobre o seu futuro. 

Cristianismo: confiança e entrega – Esta ânsia de conhecer detalhes do próprio destino, que pertencem só a Deus, revela falta de confiança na sua providência carinhosa de Pai. Em vez de ter fé, a pessoa quer certificar-se por meio de um contato direto com o além sobre o seu futuro ou sobre a sorte de entes queridos. Por isso a Igreja condena as tentativas de comunicar-se com os espíritos dos mortos. Não é através de vozes do além nem de predições sobre o futuro, mas da entrega cheia de esperança nas mãos de Deus que encontraremos a verdadeira paz.

sábado, 26 de outubro de 2013

Modos de rezar


O Evangelho das missas deste domingo (Lc 18,9-14) propõe uma parábola “para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros”. Os protagonistas da história são um fariseu e um publicano.

Formas de orar – O fariseu, um observante escrupuloso da Lei, de pé, com os braços levantados e a cabeça erguida, agradece por ser diferente dos demais, considerados pecadores. É a forma tradicional da oração no Antigo Testamento: o louvor e o agradecimento a Deus. Porém, trata-se de agradecer pela prosperidade e pelos privilégios (atribuídos à intervenção divina), bem como pela destruição dos inimigos. Tal tipo de oração é característica da tradição do "povo eleito", presente no Antigo Testamento, podendo ser encontrada, particularmente, entre os Salmos. O publicano é alguém que, trabalhando como cobrador de impostos, a serviço das autoridades locais estabelecidas pela ocupação romana, é discriminado e humilhado pelo sistema religioso oficial, sendo considerado pecador. Entretanto, com humildade, coloca sua confiança em Deus. 

Os fariseus – O primeiro homem pertencia a um dos grupos mais interessantes e de mais impacto na sociedade palestina do tempo de Jesus: eram os defensores intransigentes da “Torah” (“a Lei”) – os cinco primeiros livros do Antigo Testamento, o Pentateuco. No dia a dia, procuravam cumprir a Lei nos mínimos detalhes e esforçavam-se por ensiná-la ao povo: só assim – pensavam eles – o Povo chegaria a ser santo e o Messias poderia vir trazer a salvação a Israel. Tratava-se de um grupo sério, verdadeiramente empenhado na santificação do Povo de Deus. No entanto, o seu fundamentalismo em relação à “Torah” será, várias vezes, criticado por Jesus: ao afirmarem a superioridade da Lei, desprezavam muitas vezes o homem e criavam no povo um sentimento constante de pecado e de indignidade, que oprimia as consciências. 

Os publicanos – O segundo homem pertence à classe dos cobradores de impostos, que prestava o serviço às forças romanas de ocupação. Os publicanos tinham fama de utilizar o seu cargo para enriquecer de modo imoral e, é preciso dizer, no geral, essa fama era bem merecida. De acordo com ensinamento oral aos judeus (Mishna), estavam permanentemente impuros e não podiam sequer fazer penitência, pois eram incapazes de conhecer todos aqueles a quem tinham prejudicado e a quem deviam uma reparação. Se um publicano, antes de aceitar o cargo, fazia parte de uma comunidade farisaica, era imediatamente expulso dela e não podia ser reabilitado, a não ser depois de abandonar esse cargo. Quem exercia tal ofício, perdia certos direitos cívicos, políticos e religiosos; por exemplo, não podia ser juiz nem prestar testemunho em tribunal, sendo equiparado ao escravo. 

Parábola – No fariseu e no publicano da parábola, Lucas põe em confronto dois tipos de atitude diante de Deus. O fariseu é o modelo de um homem irrepreensível diante da Lei, que cumpre todas as regras e leva uma vida íntegra. Ele está consciente de que ninguém pode acusá-lo de cometer ações injustas, nem contra Deus nem contra os irmãos (e, aparentemente, é verdade, pois a parábola não conta que ele estava mentindo). Evidentemente, está contente por não ser como o publicano que também está no Templo: os fariseus tinham consciência da sua superioridade moral e religiosa, sobretudo em relação aos pecadores. O publicano é o modelo do pecador. Explora os pobres, pratica injustiças e não cumpre as obras da Lei. Ele tem consciência da sua indignidade, pois a sua oração consiste apenas em pedir: “Meu Deus, tende compaixão de mim, que sou pecador”. 

A salvação vem por méritos próprios? - O comentário final de Jesus sugere que o publicano se reconciliou com Deus. Por quê? O problema do fariseu é que achava que ia ganhar a salvação com o seu próprio esforço. Para ele, a salvação não é um dom de Deus, mas uma conquista do homem; se o homem levar uma vida irrepreensível, Deus não terá outro remédio senão salvá-lo. Ele está convencido de que Deus lhe deve a salvação pelo seu bom comportamento, como se Deus fosse apenas um contabilista que toma nota das ações do homem e, no fim, lhe paga em consequência. Ele está cheio de si: não espera nada de Deus, pois – pensa ele – os seus créditos são suficientes para se salvar. Por outro lado, essa exagerada autoconfiança leva-o também, ao desprezo por aqueles que não são como ele; considera-se “separado”, como se entre ele e o pecador existisse uma barreira… É meio caminho andado para, em nome de Deus, criar segregação e exclusão: é a isso que a religião dos “méritos” leva. 

A salvação que vem de Deus – O publicano, ao contrário, apóia-se apenas em Deus e não nos seus méritos. Ele apresenta-se diante de Deus de mãos vazias e sem quaisquer pretensões; entrega-se apenas nas mãos de Deus e pede-Lhe compaixão… E Deus “justifica-o” – isto é, derrama sobre ele a sua graça e o salva – precisamente porque ele não tem um coração presunçoso e está disposto a aceitar a salvação que Deus quer oferecer a todos os homens. Esta parábola, destinada a “alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros”, sugere que esses que se presumem justos estão, às vezes, muito longe de Deus e da salvação.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Adão e Eva existiram?


 
Segundo a Bíblia, Deus formou Adão, o primeiro homem, com o barro do chão. De sua costela fez Eva, sua mulher. E logo os colocou em meio a um paraíso fantástico. Ambos viviam nus sem se envergonharem e Deus, pelas tardes, costumava visitá-los e conversar com eles (Gênesis 2). 

Ciência – Esta história, que nos entusiasmava quando éramos crianças, nos coloca em sérias dificuldades agora que somos adultos. A Ciência moderna (Teoria da evolução das espécies e Teoria do Big-Bang) demonstrou que todo o universo vem se transformando. O homem não foi formado nem do barro nem de uma costela (e no princípio, não havia apenas um casal). O homem foi evoluindo a partir de seres inferiores (há 3 milhões de anos), desde o Australopitecus, passando pelo Homo erectus, o Homo habilis e o Homo sapiens, até chegar ao homem atual.  

Pergunta: Por que a Bíblia relata desta maneira a criação do homem e da mulher? Simplesmente porque se trata de uma parábola, de um relato imaginário que pretende deixar um ensinamento às pessoas. 

Catequese – O primeiro detalhe que chama a atenção é que o texto afirma que o homem foi criado do barro. Diz o Gênesis que no princípio, quando a terra era ainda um imenso deserto, “o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente” (2,7). 

Oleiro – A imagem de um Deus oleiro, de joelhos no chão amassando barro com suas mãos e soprando nas narinas de um boneco, pode nos parecer um pouco estranha. Entretanto, na mentalidade daquela época era uma homenagem para Deus. De todas as profissões conhecidas na sociedade de então, a mais digna, a mais grandiosa e perfeita era a de oleiro. Impressionava ver esse homem que, com um pouco de argila sem valor, era capaz de moldar e de criar com grande maestria preciosos objetos: baixelas, copos refinados e lindos utensílios. 

A maior criação – O autor do livro do Gênesis, sem pretender ensinar cientificamente como foi a origem do homem, posto que não o sabia, quis indicar algo mais profundo: que todo homem, quem quer que fosse, é uma obra direta e especialíssima de Deus. Não é mais um animal da criação, mas um ser superior, misterioso, sagrado e imensamente grande porque Deus em pessoa teve o trabalho de fazê-lo. 

Uma falha? Porém, de repente, o relato se detém. Algo parece haver saído mal. O próprio Deus pressente que não é muito bom o que fez: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Ele não tem ninguém com quem se relacionar. Ante esta circunstância, Deus busca corrigir a falha mediante uma nova intervenção. E da costela de Adão, forma uma mulher: “Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne: esta será chamada mulher, porque foi tomada do homem.” (Gn 2,21-23). 

Três ensinamentos deste relato – O primeiro: que a solidão do homem não é boa. Que não foi criado como um ser autônomo e autossuficiente, mas sim necessitado dos demais, de outras pessoas que o complementem em sua vida. O segundo ensinamento é que os animais não estão no mesmo nível do homem; que não têm sua mesma natureza; e, portanto, não estava bem que ele se relacionasse com os animais como fazia com as pessoas. O terceiro ensinamento pretende explicar que está bem para o homem deixar seu pai e sua mãe, para se unir a uma mulher. É o primeiro canto da Bíblia ao amor conjugal. 

Sono – Outro detalhe fascinante é o profundo sono que Deus fez cair sobre Adão antes de criar a mulher. Criar é o segredo de Deus. Só Deus o conhece e só Ele sabe fazer. O homem não pode presenciar o ato da criação de Deus. Por isso dorme quando Deus cria. Ao acordar, não sabe nada do que passou. A mulher recém-criada também não, pois quando se dá conta de que existe, já foi formada. 

Origem – A Bíblia não ensina como foi a origem real do homem e da mulher porque o escritor sagrado não sabia. Porém, como vimos, também não interessa contar “como” apareceu o homem sobre a terra, mas “de onde” apareceu. E sua resposta é: das mãos de Deus. O “como” os cientistas devem explicar. O “de onde” o responderá a Bíblia. E algo mais profundo: que todo homem, quem quer que seja, é uma obra direta e especialíssima de Deus.

sábado, 12 de outubro de 2013

As duas histórias da criação


Na semana passada vimos que a Bíblia (capítulos 1 e 2 do Gênesis) relata duas histórias criação do mundo. Ao analisar estas duas histórias, notamos várias contradições entre elas. 

As duas histórias – A primeira história (Gn 1) conta que, no começo dos tempos, tudo era caos e vazio, até que Deus resolveu pôr ordem nessa confusão. Criou a luz (manhãs e as noites), o firmamento, separou as águas da terra firme, criou as estrelas, sol, lua, plantas, aves, peixes e répteis. E, por último, formou o homem (sua imagem e semelhança). Quando vamos ao capítulo 2, parece que não aconteceu nada antes. Estamos outra vez diante do vazio total. Deus, novamente em cena, põe-se a trabalhar. Torna a criar o homem, modelando-o com o pó da terra. Cria as plantas, árvores e animais e, por fim, a mulher, de uma costela do homem. Vimos que as histórias são parábolas, relatos que pretendem deixar um ensinamento às pessoas. Mas, como se escreveram dois relatos tão diferentes? 

A primeira história – O primeiro relato a ser composto foi Gn 2, embora na Bíblia apareça em segundo lugar. Por isso tem um sabor tão primitivo, espontâneo, vívido. Durante muitos séculos foi o único relato sobre a origem do mundo que o povo de Israel tinha. Foi escrito dez séculos antes de Cristo, durante a época do rei Salomão, e seu autor era um excelente catequista que sabia pôr ao alcance do povo, em forma gráfica, as mais altas ideias religiosas. Com um estilo pitoresco e infantil, mas de uma profunda observação da psicologia humana, narra a formação do mundo, do homem e da mulher como uma parábola oriental, cheia de ingenuidade e frescor. 

As fontes – Para isso valeu-se de antigos mitos tirados dos povos vizinhos. De fato, as antigas civilizações assíria, babilônica e egípcia tinham composto suas próprias narrativas sobre a origem do cosmos, que hoje podemos conhecer graças às escavações arqueológicas realizadas no Oriente Médio. E torna-se surpreendente a semelhança entre estes relatos e o da Bíblia. Todos dependem de uma concepção cosmológica de um universo formado por três planos superpostos: os céus, com as águas superiores; a terra, com o homem e os animais; e o mar, com os peixes e as profundezas da terra. O autor de Gn 2 (javista) recolheu essas tradições populares de seu tempo e as utilizou para compor uma mensagem religiosa.  

A grande decepção – Quatro séculos depois de a primeira história ter sido composta, uma catástrofe veio alterar a vida e a fé do povo judaico. No ano de 587 a.C., o exército babilônico, comandado por Nabucodonosor, tomou Jerusalém e levou o povo como escravo para a Babilônia. E lá, na Babilônia, veio a grande surpresa. Os primeiros cativos começaram a chegar àquela capital e se depararam com uma cidade esplêndida, com enormes edifícios, magníficos palácios, torres com vários andares, aquedutos grandiosos, jardins suspensos, fortificações e templos luxuosos. Eles, que se sentiam orgulhosos de pertencer a uma nação bendita e engrandecida por Javé, na Judéia, não eram senão um povo modesto, com escassos recursos, diante da Babilônia. O templo de Jerusalém, construído com todo o luxo pelo grande rei Salomão e para a glória de Javé, que o escolhera para sua morada, não era senão um pálido reflexo do impressionante complexo cultural do “deus” Marduk, da “deusa” Sin e de seu “esposo” Ningal. Jerusalém, orgulho nacional, por quem todo israelita suspirava, era uma cidade apenas “considerável”, em comparação com Babilônia e suas muralhas, enquanto seu rei, ungido de Javé, nada podia fazer diante do poderoso monarca Nabucodonosor, “braço direito” do “deus” Marduk. 

A fé estava em perigo – Javé seria mais fraco que o deus dos babilônios? Não seria a hora de crer num deus que fora superior a Javé, que protegera com mais eficiência seus súditos, outorgando-lhes melhores favores que os magros benefícios obtidos suplicando ao Deus de Israel? Caíram, então, as ilusões num Deus que parecia não ter podido cumprir suas promessas. Os judeus começaram a passar em massa para a nova religião dos conquistadores, com a esperança de que um deus de tal envergadura melhoraria sua sorte e seu futuro. 

Uma nova catequese – Diante da situação em que vivia o decaído povo judeu, um grupo de sacerdotes começou a tomar consciência de que era preciso voltar a catequizar o povo. O velho relato da criação, que o povo tanto conhecia (Gn 2), já não servia mais. Tinha perdido sua força. Era preciso escrever um novo, onde se pudesse apresentar uma vigorosa ideia do Deus de Israel, poderoso, que expressasse supremacia, excelso entre as criaturas. Escrevem assim uma nova catequese (Gn 1), com um renovado ato de fé em Javé, o Deus de Israel. 

Um Deus atualizado – Cem anos depois, lá por 400 a.C., um último redator compôs o livro do Gênesis, recopiando velhas tradições. Resolveu, apesar das evidentes contradições, conservar os dois relatos da criação. Colocou como porta de entrada na Bíblia o relato dos sacerdotes. Não quis, porém, suprimir o antigo relato do autor javista e o colocou a seguir. Com isso, manifestava que, para ele, Gn 1 e Gn 2 relatavam, de maneira distinta, a mesma verdade revelada, tão rica, que não bastava um só relato para expressá-la.

sábado, 5 de outubro de 2013

O mundo foi criado duas vezes?


Quando nós lemos o início da Bíblia (capítulos 1 e 2 do Gênesis), ficamos admirados com as duas histórias criação do mundo. E ainda mais perplexos, com a maneira contraditória com que estas histórias são contadas. 

Primeira história – Quando éramos crianças, na catequese, ouvimos que, no começo dos tempos, tudo era caos e vazio, até que Deus resolveu pôr ordem nessa confusão. Iniciou criando a luz (Gn 1,3) e fazendo surgir as manhãs e as noites. Depois decidiu separar a terra e as águas, criando o firmamento. Quando viu que o solo era só uma mistura lamacenta, secou uma parte e deixou a outra molhada, e com isso apareceram os mares e a terra firme. Criou as estrelas, Sol, Lua, plantas, aves, peixes e répteis. E, por último, como coroação de tudo, formou o homem, o melhor de sua criação, a quem modelou conforme sua imagem e semelhança. Decidiu, então, descansar.  

Segunda história – Quando vamos ao capítulo 2, vem o espanto. Parece que não aconteceu nada antes. Estamos outra vez diante do vazio total, onde não há plantas, nem água, nem homens (Gn 2,5). Apresenta-se um Deus muito diferente do relato anterior. Em vez de ser solene e majestoso, adquire agora traços muito mais humanos. Torna a criar o homem, modelando-o com o pó da terra, sopra em suas narinas e assim lhe dá a vida (Gn 2,7). Detalha-se logo, pela segunda vez, a formação de plantas, árvores e animais. E para criar a mulher emprega agora um método diferente. Faz o homem dormir, extrai-lhe uma costela, preenche com carne o vazio que ficou e modela Eva. Depois a apresenta ao homem e a dá como sua companheira ideal para sempre. 

Contradições – Por acaso, no início dos tempos, houve duas criações? Inúmeras são as contradições entre os dois capítulos. Desde o começo chama a atenção a forma diferente de referir-se a Deus. Enquanto Gn 1 o designa com o nome hebraico de Elohim (Deus), Gn 2 o chama de Javé Deus. O Deus de Gn 2 é descrito com aparências mais humanas. Ele não cria, mas “faz” as coisas. Suas obras não vêm do nada, mas as fabrica sobre uma terra oca e árida. O Deus de Gn 1, ao contrário, não entra em contato com a criação, mas a faz surgir à distância, como se criasse tudo do nada. Assim, enquanto Deus em Gn 1 aparece em toda a sua grandiosidade (ao som de sua voz vão brotando as criaturas do Universo), em Gn 2, Deus é muito mais simples. Como se fosse um oleiro, modela e forma o homem (v. 7). Como um agricultor, semeia e planta as árvores do paraíso (v. 8). Como um cirurgião, opera o homem, extraindo-lhe a mulher (v. 21). Como um alfaiate, confecciona os primeiros vestidos para o casal, porque estavam nus (3,21). 

Mais divergências – Enquanto em Gn 1 Deus leva seis dias para criar o mundo e no sétimo descansa, em Gn 2 todo o trabalho da criação leva apenas um dia. Em Gn 2 Javé cria somente o homem e, dando-se conta de que está só e de que precisa de uma companheira adequada, oferece-lhe a mulher. Em Gn 1, pelo contrário, Deus faz existir desde o princípio, simultaneamente, o homem e a mulher, como casal. Enquanto em Gn 1 os seres vão surgindo em ordem progressiva, do menor ao maior, ou seja, primeiro as plantas, depois os animais e enfim os seres humanos, em Gn 2 cria-se primeiro o homem (v. 7), mais tarde as plantas (v. 9), os animais (v. 19), e finalmente a mulher (v. 22). Em Gn 1 a criação parte de um ambiente aquático, sendo a terra criada a partir deste ambiente; em Gn 2 tudo era um imenso deserto de terra seca e estéril (v. 5), pois não havia chuva alguma. 

Os autores – Os estudiosos chegaram à conclusão que as duas descrições da criação deveriam ter sido escritas por diferentes autores e em épocas distintas. Denominaram o primeiro como “sacerdotal”, porque atribuíram a um grupo de sacerdotes do século VI a.C. O segundo autor, situado no século X a.C., recebeu o nome de “javista”, porque prefere chamar a Deus com o nome de Javé. 

Ciência – Esta história, que nos entusiasmava quando éramos crianças, nos coloca em sérias dificuldades agora que somos adultos. A Ciência moderna (Teoria da evolução das espécies e Teoria do Big-bang) demonstrou que todo o universo vem se transformando. O homem não foi formado nem do barro nem de uma costela (no princípio não houve apenas um casal). O homem foi evoluindo a partir de seres inferiores (há 3 milhões de anos), até chegar ao homem atual.  

Duas criações? – O mundo não foi criado duas vezes. Existe apenas um mundo, que vem evoluindo há 13,5 bilhões de anos. Os textos do livro do Gênesis são parábolas, relatos imaginários que pretendem deixar um ensinamento às pessoas. Mas, como se escreveram dois relatos tão diferentes? Por que acabaram sendo ambos incluídos num mesmo livro da Bíblia? Na próxima semana vamos ver a origem destas histórias.