domingo, 27 de maio de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 18 – O quarto Evangelho

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 27/05/2001

O texto – Por volta do ano 100 d.C. começou a circular nas comunidades cristãs uma quarta compilação dos atos de Jesus. Usando um grego pobre mas correto, o autor montou um texto que parece ter um objetivo único: proclamar que Jesus é o Messias (Jo 20, 31). Com uma característica totalmente distinta dos 3 primeiros evangelhos, usou fontes próprias, fazendo longas análises teológicas sobre os atos do Senhor, chegando até a perder o contato com a realidade histórica.

Ainda o texto – Com certeza o autor conhecia os outros evangelhos e a coleção Q, mas utilizou-os muito pouco, existindo, talvez, um maior contato com o Evangelho de Lucas. Mesmo assim o texto é totalmente independente dos 3 primeiros. A melhor explicação para a composição do texto (com inúmeras adições, remendos, diversos estilos de redação) seria uma personalidade coletiva, ou seja, um Evangelho composto por muitos autores que relatavam a tradição da comunidade de Éfeso.

O autor – O seu autor é desconhecido, mas o texto exige uma pessoa ligada ao ambiente cristão e conhecedora da geografia da Palestina. A Igreja primitiva atribuiu este texto ao apóstolo João (o discípulo que Jesus amava, filho de Zebedeu), porém existem muitos fatos que não sustentam esta afirmação.

Três problemas – Existem três fatos que não sustentam a autoria do quarto Evangelho ao apóstolo João: uma tradição da Igreja, com vários testemunhos, afirma que o apóstolo João teria morrido mártir juntamente com seu irmão Tiago no ano de 44 d.C.; o texto não apresenta grande valor histórico, além de não se reconhecer no autor uma testemunha ocular dos acontecimentos; o texto se apresenta como um tratado teológico, como uma síntese dos ensinamentos de Pedro e Paulo.

Quem seria o autor? – Atualmente, a maioria dos estudiosos não aceita o apóstolo João como autor do 4º Evangelho; alguns citam João, o antigo (o presbítero João, de Éfeso, que, segundo Papias, era distinto do apóstolo João e pessoa influente na comunidade), outros o atribuem a algum cristão ligado ao apóstolo João, enquanto outros preferem uma autoria coletiva da comunidade de Éfeso.

João morreu em 44 d.C.? – As informações são bastante contraditórias: alguns documentos citam que o apóstolo João morreu martirizado, junto com seu irmão Tiago, no ano 44 (Papias no ano 100 e Orígenes no ano 220); outros apresentam João vivo após esta data (Paulo em Gal 2,9, escrita em 52-53 d.C., relata uma reunião ocorrida no ano 49 d.C. com a presença de João; Irineu, bispo de Lion; Jerônimo, no ano 400).

A idade de João – Se considerarmos João como o mais jovem dentre os apóstolos, a menor idade que poderíamos lhe atribuir seria de, aproximadamente, 14 anos, pois a tradição judaica considerava o homem adulto após os 12 anos, quando ele terminava o curso escolar e passava a aprender uma profissão (normalmente a mesma do pai). Em Mt 4, 21, João já trabalhava como pescador com seu irmão (mais velho) Tiago e seu pai Zebedeu quando foi chamado por Jesus. Se este episódio aconteceu em março do ano 28 d.C., concluímos que João nasceu por volta do ano 14 (ou antes). Esta data coloca dificuldades tremendas em aceitar que o apóstolo João ainda estivesse vivo nos últimos anos do 1º século, pois exigiria 86 anos de idade. A afirmação de Irineu de que João permaneceu em Éfeso até o tempo do imperador Trajano (98 – 116 d.C.) deve ser aceita com restrições. A expectativa média de vida no século I era de 30 anos: um terço das crianças morriam antes dos 6 anos; 60% antes dos 16 anos; 75% da população morria antes de completar 26 anos; e 90% antes dos 46 anos; menos de 3% atingia a idade de 60 anos.

sábado, 19 de maio de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 17 – Os problemas do texto de Mateus

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 19/05/2001

A difícil missão de Mateus – Como vimos, o objetivo do autor de Mateus era catequizar os judeus, apresentando Jesus como o Messias, o Cristo descrito e profetizado no Antigo Testamento, o novo Moisés. Para isso, o autor se ampara, por inúmeras vezes, em profecias (130 citações) do Antigo Testamento para justificar palavras e atos de Jesus.

Os 22 livros – Os judeus do século I (entre eles Jesus) não possuíam um catálogo (cânon) das escrituras, mas uma variedade de textos dotados de valor religioso. Flavio Josefo, escritor e historiador do primeiro século, afirmou que, antes de 70 d.C., os judeus se utilizavam de apenas 22 livros. Três séculos mais tarde, São Jerônimo, ao traduzir os textos para o latim, também deixou escrito que eram 22 os livros lidos nas sinagogas no tempo de Jesus.

Justificativas – Ao catequizar os judeus era necessária uma explicação "conforme as escrituras", ou "para que se cumprisse o que diziam as escrituras". Mas os 22 livros judeus já não eram mais suficientes, havendo a necessidade de buscar-se fundamento em outros escritos. Abriu-se assim o leque de citações, citando qualquer texto judaico em que uma explicação cristã pudesse lhe ser atribuída. Os 45 livros que compõem o Antigo Testamento em nossas Bíblias atuais nada mais são que uma ampliação (necessária à catequese) dos 22 livros dos judeus lidos nas sinagogas no tempo de Cristo.

Mateus – Sem qualquer dúvida, o objetivo principal do evangelista foi apresentar os principais eventos da vida de Jesus como realização das profecias dos livros judaicos, indicando-o como o Messias esperado pelos judeus. Talvez na ânsia de relacionar os fatos da vida de Cristo às passagens do A.T., o autor distorceu algumas citações, tomou trechos com outro significado, fez montagens de vários versículos de livros diferentes e, principalmente, citou livros não usados pelos judeus. O próprio São Jerônimo (viveu entre 347 e 420, foi dos grandes doutores da Igreja, principalmente por seus trabalhos bíblicos; foi o autor da Vulgata Latina) critica o evangelista afirmando que ele "põe na boca do Salvador passagens do Antigo Testamento que não seguem a tradução correta dos LXX".

Citações que não existem – Em Mateus 13,57 podemos ler: "Jesus lhes disse: ‘Um profeta só é desprezado em sua pátria e sua casa’.", em que Jesus parece citar um trecho desconhecido das Escrituras judaicas. Em Mt 2, 23, o autor de Mateus cita que Jesus veio morar em Nazaré, para que se cumprisse a profecia: "Ele será chamado nazoreu". Não se sabe a qual profeta ou a que livro judaico o autor de Mateus quis se referir. O termo nazoreu não tem equivalência nem com Nazareno (morador em Nazaré), nem com um membro da seita dos nazorenianos. Muito menos deve se referia a Nazir (o Santo Deus por excelência), citado por Jz 13,5.

Fora do contexto – Em Mt 2,18, ao comentar o massacre dos meninos em Belém, ele cita Jr 31,15: "Uma voz fez ouvir em Ramá, prantos e longo lamento: é Raquel que chora seus filhos e não quer ser consolada, porque eles já não existem", um texto que não se insere no assunto (acomodação), pois trata da morte dos que não voltaram da guerra com o inimigo. A tradução usada pelo autor é totalmente distorcida (faça a comparação de Mt 2,18 com Jr 31,15).

Distorções – Em Mt 4,15-17, o fato de Jesus abandonar Nazaré e ir morar em Cafarnaum, foi interpretado pelo autor de Mateus como o cumprimento da profecia de Isaías, estabelecida em Is 8,23-9,1. O autor, porém, distorceu o texto, adaptando-o aos seus objetivos. O texto original de Isaías diz: "Num primeiro momento, o Senhor cobriu de opróbio a terra de Zabulon e a terra de Neftali, mas em seguida cobriu de glória a rota do mar, o Além-Jordão e o distrito das nações. O povo que caminhava nas trevas viu uma grande luz. Sobre aqueles que habitavam a terra da sombra, uma luz resplandeceu." O texto de Isaías citado em Mt 4,15-17 é: "Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, Além-Jordão, Galiléia das Nações! O povo que jazia nas trevas viu uma grande luz; para os que jaziam na região sombria da morte levantou-se uma luz."

Mais distorções – Na entrada messiânica em Jerusalém (Mt 21,1-19), para justificar o evento da jumenta, o autor de Mateus se utiliza de uma profecia de Zacarias (Zc 9,9). Como a profecia não é suficiente para fundamentar o fato, o autor distorce a citação, com frases (talvez) de Isaías 62,11. Eis os textos: (Isaías 62,11) "Dizei a filha de Sião: eis que a tua salvação vem a ti ..."; (Zacarias 9, 9) "Estremece de alegria, filha de Sião! Prorrompe em aclamações, filha de Jerusalém. Eis que o teu rei vem ao teu encontro; ele é justo e vitorioso, humilde, montado num jumento – sobre um jumento novo." Vejam agora o autor de Mateus (21, 5) citando o ‘profeta’: "Dizei à filha de Sião: Eis que o teu rei vem a ti, humilde e montado numa jumenta e num jumentinho, filho de um animal de carga."

Morte de Judas – Na tentativa de uma explicação profética para a morte de Judas Iscariotes (Mt 27, 9), o autor de Mateus é obrigado a juntar versículos de Zacarias (Zc 11, 12) e de Jeremias (Jr 18, 2). Confira.

sábado, 12 de maio de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 16 – Mateus: o novo Pentateuco

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 12/05/2001


O novo Moisés – O Evangelho de Mateus salienta a figura de Cristo sobre o fundo do novo testamento, fazendo as vezes de novo Moisés, com a clara intenção de provar aos judeus que Cristo era o Messias tão aguardado pelo povo, que veio promulgar o Antigo Testamento.

Os destinatários – O autor de Mateus escreveu seu texto com um objetivo exclusivo: catequizar o público judaico. Isto fica claro quando utiliza-se de termos e costumes judaicos sem qualquer explicação. Seria difícil um leitor não-judeu entender tais expressões como Cidade Santa (Jerusalém), Lugar Santo (Templo de Jerusalém), Casa de Israel ou Povo Eleito (Judeus) ou Filho de Davi (Jesus).

As expressões – O termo "Reino dos Céus" ou a equivalente "Reino de Deus" é citada 33 vezes sem qualquer explicação; "Pai Celeste" aparece 20 vezes; "a consumação do século" aparece 5 vezes. Cita termos exclusivamente judaicos: as cidades de Israel, a terra de Israel, a Cidade do Grande Rei, os filhos do Reino, receber a terra por herança, a carne e o sangue, o jugo da Lei, as portas do inferno, ligar e desligar, os filhos da geena. Estas expressões não têm qualquer sentido para um não-judeu.

A autoridade do Evangelho – O texto do Evangelho de Mateus foi o primeiro a ser aceito por todas as comunidades cristãs. Era considerado como a catequese oficial dos Apóstolos, sendo o texto mais utilizado pelos pregadores cristãos dos primeiros séculos.

O novo Pentateuco – O Pentateuco são os cinco primeiros livros do Antigo Testamento, também designados como "A Lei", e seguidos de forma radical pelos judeus. Como que em uma comparação com o Pentateuco, o autor de Mateus compôs cinco sermões temáticos (três quintos do Evangelho) que apresentam de maneira bem didática os ensinamentos de Cristo: O ‘Sermão da Montanha’ (cap. 5-7), as ‘instruções aos Apóstolos’ (cap. 10), as ‘sete parábolas’ sobre o Reino (cap. 13), o ‘sermão comunitário’ do Reino de Deus (cap. 18) e o ‘sermão escatológico’ sobre o fim dos tempos (cap. 24-25).

As fontes do texto – Todo o texto de Mateus (com exceção da Infância) foi baseado em Marcos e no documento Q. O texto pode ser dividido em 5 partes, onde realça a didática do autor: A infância de Jesus (cap. 1 e 2), obtida junto a comunidades judaicas; Preparação da Missão, onde descreve as atividades de João Batista no deserto e as tentações de Jesus (Mt 3,1 a 4,11); Missão na Galiléia, com o Sermão da Montanha (cap. 5 a 7), os milagres (cap. 8 e 9), debates sociais (cap. 11 e 12) e parábolas (cap. 13); Missão em Jerusalém, descreve a viagem, a entrada triunfal e prediz a destruição do templo e o fim do mundo (cap. 19 a 25); e Paixão e Ressurreição (cap. 26 a 28) o seu texto é mais catequético.

Alguns problemas – Como vimos o objetivo do autor de Mateus era catequizar os judeus, apresentando Jesus como o Messias, o Cristo descrito e profetizado no Antigo Testamento, o novo Moisés. Para isso, o autor se ampara, por inúmeras vezes, em profecias (130 citações) do A.T., alterando palavras, ou compondo textos de vários profetas para justificar palavras e atos de Jesus. Mas isto é assunto para a próxima semana ...

VOCÊ SABIA QUE ...

... o autor de Mateus comete apenas um erro geográfico ao descrever em Mt 19,1 "... partiu da Galiléia e veio para o território da Judéia além do Jordão", pois a Galiléia e a Judéia estão do mesmo lado do rio Jordão. Talvez trate de uma descrição imprecisa, pois era comum os discípulos evitarem cruzar a Samaria, viajando pela região transjordânica e retornando por Jericó (cruzando 2 vezes o rio).