sexta-feira, 29 de novembro de 2019

“Tudo passa, só Deus basta”



Estamos iniciando o ano litúrgico, com o primeiro domingo do Advento. O texto do Evangelho das missas (Mt 24,37-44) é tirado do último grande discurso de Jesus antes de sua Paixão e morte. Para a reflexão deste Evangelho transcrevemos o texto do Pe. Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia do Vaticano.

Mateus – Neste domingo começa o primeiro ano do ciclo litúrgico trienal, chamado ano “A”. Nele nos acompanha o Evangelho de Mateus. Algumas características deste Evangelho são: a amplitude com a qual se referem aos ensinamentos de Jesus (os famosos sermões, como o da montanha), a atenção à relação Lei-Evangelho (o Evangelho é a “nova Lei”). Ele é considerado como o Evangelho mais “eclesiástico” pelo relato do primado de Pedro e pelo uso do termo “Ecclesia” (Igreja), que não se encontra nos outros três Evangelhos.

Velai – A palavra que destaca sobre todas, no Evangelho deste primeiro domingo do Advento, é: “Velai, pois, porque não sabeis que dia virá o vosso Senhor... Estai preparados, porque no momento que não penseis, virá o Filho do homem”. Pergunta-se às vezes por que Deus nos esconde algo tão importante como a hora de sua vinda, que para cada um de nós, considerado singularmente, coincide com a hora da morte.

A resposta tradicional é: “Para que estivéssemos alerta, sabendo cada um que isso pode acontecer em seus dias” (Santo Efrém). Mas o principal motivo é que Deus nos conhece; sabe que terrível angústia teria sido para nós conhecer com antecipação a hora exata e assistir à sua lenta e inexorável aproximação. Isso é o que mais atemoriza em certas doenças. São mais numerosos hoje os que morrem de afecções imprevistas de coração do que os que morrem de “penosas doenças”. No entanto, dão mais medo estas últimas, porque nos parece que privam dessa incerteza que nos permite esperar. A incerteza da hora não deve levar-nos a viver despreocupados, mas como pessoas vigilantes.

O ano litúrgico está em seu início, enquanto o ano civil chega a seu fim. Uma ocasião ótima para fazer espaço para uma reflexão sábia sobre o sentido de nossa existência. A própria natureza no outono nos convida a refletir sobre o tempo que passa. O que o poeta Giuseppe Ungaretti dizia dos soldados na trincheira do Carso, durante a primeira guerra mundial, vale para todos os homens: “Estão / como no outono / nas árvores / nas folhas”. Isto é, a ponto de cair, de um momento a outro. “O tempo passa e o homem não percebe isso”, dizia Dante.

Tudo passa – Um antigo filósofo expressou esta experiência fundamental com uma frase que se tornou célebre: «panta rei», ou seja, tudo passa. Ocorre na vida como na televisão: os programas se sucedem rapidamente e cada um anula o precedente. A tela continua sendo a mesma, mas as imagens mudam. É igual conosco: o mundo permanece, mas nós passamos, um após o outro.

Nada – De todos os nomes, os rostos, as notícias que enchem os jornais e os noticiários do dia – de mim, de você, de todos nós – o que permanecerá daqui a um ano ou década? Nada de nada. O homem não é mais que “um traço criado pela onda na areia do mar e que a onda seguinte apaga”.

Só Deus basta – Vejamos o que a fé tem a dizer-nos a propósito deste fato de que tudo passa. “O mundo passa, mas quem cumpre a vontade de Deus permanece para sempre” (1Jo 2, 17). Assim, existe alguém que não passa, Deus, e existe uma forma de que nós não passemos totalmente: fazer a vontade de Deus, ou seja, crer, aderir a Deus. Nesta vida somos como pessoas em uma balsa que um rio leva ao mar aberto, sem retorno. Em certo momento, a balsa passa perto da margem. O náufrago diz: “Agora ou nunca!”, e salta até a terra firme. Que suspiro de alívio quando sente a rocha sob seus pés! É a sensação experimentada frequentemente por quem chega à fé. Poderíamos recordar, como conclusão desta reflexão, as palavras que Santa Teresa de Ávila deixou como uma espécie de testamento espiritual: “Nada te perturbe, nada te espante. Tudo passa, só Deus basta”.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Quem não quer trabalhar, também não deve comer



 O Evangelho das missas deste domingo apresenta o texto de Lucas (21, 5-19) em que Jesus profetiza a destruição do Templo. Esse trecho faz parte dos famosos discursos sobre o fim do mundo, característicos dos últimos domingos do ano litúrgico. E, na segunda leitura, vemos a Carta de Paulo, dirigida aos cristãos de Tessalônica, que haviam deixado de trabalhar, a espera do fim do mundo anunciado por Jesus. Sobre este comportamento, Paulo escreve sua segunda carta aos Tessalonicenses.

Trabalhar para que? – Em Tessalônica, uma das primeiras comunidades cristãs, havia crentes que tiravam desses discursos de Cristo uma conclusão errônea: é inútil agitar-se, trabalhar e produzir, já que tudo está a ponto de acabar; é melhor viver cada dia, sem assumir compromissos no longo prazo, talvez vivendo um pouco de brisa.

Quem não trabalha não deve comer – A estes, São Paulo responde: “Ora, ouvimos dizer que entre vós há alguns que vivem à toa, muito ocupados em não fazer nada. Em nome do Senhor Jesus Cristo, ordenamos e exortamos a estas pessoas que, trabalhando, comam na tranquilidade o seu próprio pão”. No começo da passagem, São Paulo lembra a regra dada aos cristãos de Tessalônica: “Quem não quer trabalhar, também não deve comer”.

O trabalho na origem da criação – Esta era uma novidade para os homens da época. A cultura à qual pertenciam desprezava o trabalho manual; considerado degradante para a pessoa, como se fosse exclusivo de escravos e incultos. Mas a Bíblia tem uma visão diferente. Desde a primeira página, ela apresenta Deus trabalhando durante seis dias e descansando no sétimo. Tudo isso, antes ainda que se fale do pecado na Bíblia. Podemos concluir, portanto, que o trabalho faz parte da natureza original do homem; não é resultado da culpa nem do castigo. O trabalho manual é tão digno como o intelectual e o espiritual. O próprio Jesus dedicou vinte anos ao trabalho manual (supondo que tenha começado a trabalhar por volta dos 13 anos) e somente dois anos ao intelectual.

Quer valor tem o trabalho para Deus? – Conta um padre, que um leigo lhe escreveu perguntando: “Que sentido e que valor tem nosso trabalho de leigos diante de Deus? É verdade que nós, leigos, nos dedicamos também a muitas obras de bem (caridade, apostolado, voluntariado); mas a maior parte do tempo e das energias da nossa vida é dedicada ao trabalho. Assim, se o trabalho não vale para o céu, teremos bem pouco para a eternidade. Todas as pessoas às quais perguntamos sobre isso não souberam nos dar respostas satisfatórias. Elas nos dizem: ‘Ofereçam tudo a Deus!’. Mas isso é suficiente?”.

Trabalho como participação na obra de Deus – Respondendo ao leigo, assim se pronunciou o padre: “Não, o trabalho não vale somente pela “boa intenção” que temos ao realizá-lo, ou pelo oferecimento que se faz dele a Deus pela manhã; vale também por si mesmo, como participação da obra criadora e redentora de Deus e como serviço aos irmãos. É através do trabalho humano – diz um texto do Concílio – ‘que o homem sustenta de ordinário a própria vida e a dos seus; por meio dele se une e serve aos seus irmãos, pode exercitar uma caridade autêntica e colaborar no acabamento da criação divina. Mais ainda: sabemos que, oferecendo a Deus o seu trabalho, o homem se associa à obra redentora de Cristo’ (Gaudium et spes, 67).”

Colocar o coração no que as mãos fazem – Vemos, portanto, que não importa tanto que trabalho a pessoa realiza, mas como o realiza. Isso restabelece certa igualdade, deixando de lado todas as diferenças (às vezes injustas e escandalosas) de categoria e remuneração. Uma pessoa que desempenhou tarefas muito humildes pode “valer” muito mais que quem ocupou cargos de grande prestígio. O trabalho, como foi dito, é participação na ação criadora de Deus e na ação redentora de Cristo, e é fonte de crescimento pessoal e social, mas também, sabemos, é fadiga, suor, dor. Pode enobrecer, mas igualmente pode esvaziar e consumir. O segredo é colocar o coração no que as mãos fazem. O que cansa não é tanto a quantidade ou o tipo de trabalho que se faz, mas a falta de entusiasmo ou de motivação. Como nos diz o Apocalipse (14, 13), “nossas obras nos acompanharão” Que essa fé possa ser nossa motivação terrena para o trabalho.

sábado, 9 de novembro de 2019

Filhos da ressurreição



 No Evangelho deste domingo (Lc 20,27-38), Jesus discute com os saduceus sobre a ressurreição.

A questão – Jesus é procurado por um grupo de saduceus, que lhe propõe a seguinte questão: uma mulher casou, sucessivamente, com sete irmãos, cumprindo a lei do levirato (Dt 25,5-10). Quando ressuscitarem, ela será mulher de qual dos irmãos?

Os saduceus – No tempo de Jesus, os saduceus formavam um grupo aristocrático, recrutado sobretudo entre os sacerdotes da classe superior. Exerciam a sua autoridade à volta do Templo e dominavam o Sinédrio (realmente seriam eles os responsáveis pela condenação de Jesus). A sua importância política era real, ainda que muito limitada pela presença do procurador romano. Politicamente, eram conservadores e entendiam-se bem com o opressor romano… Pretendiam manter a situação, para não ver comprometidos os benefícios políticos, sociais e econômicos de que desfrutavam.

Mais saduceus – Para os saduceus, apenas interessava a Lei escrita – a “Torah”. Negavam que a Lei oral (aceita pelos fariseus) tivesse qualquer valor. Este apego conservador à Lei escrita explica que negassem algumas crenças e doutrinas admitidas nos ambientes populares frequentados pelos fariseus. Por isso, não aceitavam a ressurreição dos mortos: nenhum versículo da “Torah” apoiava essa crença.

Casamento levítico – O Livro de Deuteronômio (Dt 25,5-6) diz: “Quando dois irmãos moram juntos e um deles morre sem deixar filhos, a viúva não sairá da casa para casar-se com nenhum estranho; seu cunhado se casará com ela, cumprindo o dever de cunhado. O primogênito que nascer receberá o nome do irmão morto, para que o nome deste não se apague em Israel”. Certamente, uma lei que para nós parece no mínimo estranha! Mas, na época, antes da fé na ressurreição, era de suma importância para Israel que o nome de um homem se propagasse nos seus filhos. Por isso, era dever do irmão sobrevivente suscitar um filho para o falecido, para que este não morresse na memória do seu povo.

Questão – A questão central do nosso texto gira em torno da ressurreição, um tema que não significava nada para os saduceus. Com o objetivo de ridicularizar a crença em ressurreição, os saduceus apresentaram a Jesus a questão hipotética da mulher que se casou, sucessivamente, com sete irmãos, cumprindo a lei do levirato. Quando ressuscitarem, ela será mulher de qual dos irmãos?

Ressurreição – A primeira parte da resposta de Jesus afirma que a ressurreição não é (como pensavam os fariseus do tempo) uma simples continuação da vida que vivemos neste mundo (como uma revivificação, idéia apresentada na primeira leitura da missa), mas uma vida nova e distinta, uma vida de plenitude que dificilmente podemos entender, baseados somente em nossas realidades quotidianas. Nessa nova vida não haverá casamento (são semelhantes aos anjos), pois a única preocupação será servir e louvar a Deus.

Vida nova – O poder de Deus, que chama os homens da morte à vida, transforma e assume a totalidade do ser humano, de forma que nascemos para uma vida totalmente nova e em que as nossas potencialidades serão elevadas à plenitude. A nossa capacidade de compreensão deste mistério é limitada, pois estamos contemplando as coisas e classificando-as à luz das nossas realidades terrenas; no entanto, a ressurreição que nos espera ultrapassa totalmente a nossa realidade terrena.

Certeza da ressurreição – A segunda parte da resposta de Jesus é uma afirmação da certeza da ressurreição. Jesus cita-lhes a “Torah” (Ex 3,6): no episódio da sarça-ardente, Jahwéh revelou-se a Moisés como “o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”… Ora, se Deus Se apresenta dessa forma – muitos anos depois de Abraão, Isaac e Jacob terem desaparecido deste mundo – isso quer dizer que os patriarcas não estão mortos (um homem “morto” – ou seja, um homem reduzido ao estado de uma sombra inconsciente e privada de vida, no “sheol”, segundo a idéia semita corrente – tinha perdido a proteção de Deus, pois já não existia como homem vivo e consciente). Na perspectiva de Jesus, portanto, os patriarcas não estão reduzidos ao estado de sombras, na obscuridade absoluta do “sheol”, mas vivem atualmente em Deus. Conclusão: se Abraão, Isaac e Jacob estão vivos, podemos falar em ressurreição.

sábado, 2 de novembro de 2019

A riqueza dos pobres de espírito



O Evangelho deste domingo (Mt 5,1-12) propõe a passagem das Bem-aventuranças.  Propomos, a seguir, uma reflexão do padre Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia de Roma.

Compaixão pelos ingênuos? - O Evangelho deste domingo começa com a célebre frase: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”. A afirmação “bem-aventurados os pobres de espírito”, com frequência, é mal-entendida hoje ou, inclusive, se cita com algum sentimento de compaixão, como se fosse uma expressão que faz referência à credulidade dos ingênuos.

Frase completa – Mas Jesus jamais disse simplesmente: “Bem-aventurados os pobres de espírito!”; nunca sonhou pronunciar algo assim. Disse: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”, que é muito distinto. Deturpa-se completamente o pensamento de Jesus, banalizando-o, quando se cita sua frase pela metade, pois, assim, separa-se a bem-aventurança de seu motivo. Seria, suponhamos, o mesmo que dizer: “O que semeia...”. O que se entende disso? Nada! Mas se acrescentarmos: “colhe”, imediatamente tudo se esclarece. Se Jesus tivesse dito apenas: “Bem-aventurados os pobres!”, isso também soaria absurdo, mas quando acrescenta: “porque deles é o Reino dos Céus”, tudo se faz compreensível.

Reino que subverte – Mas que bendito Reino dos Céus é este, que realizou uma verdadeira “inversão de todos os valores?” É a riqueza que não passa, que os ladrões não podem roubar nem a traça consumir. É a riqueza que não se deve deixar para outros com a morte, mas que se leva consigo. É o “tesouro escondido” e a “pérola preciosa”, aquilo que, para se possuir, vale a pena deixar tudo, – diz o Evangelho. O Reino de Deus, em outras palavras, é o próprio Deus.

Que Reino é esse? – A chegada do Reino de Deus produziu uma espécie de “crise de governo” de alcance mundial, uma mudança radical. Abriu horizontes novos, em alguma medida, como no século XV, quando, se descobriu que existia um outro mundo, a América, e as potências que ostentavam o monopólio do comércio com o Oriente, como Veneza, se viram surpreendidas de repente e entraram em crise.

Quem é rico hoje? – Os velhos valores do mundo – dinheiro, poder, prestígio – mudaram, ficaram relativos e inclusive foram rejeitados por causa da chegada do Reino. E agora, quem é o rico? Talvez um homem tenha uma enorme soma em dinheiro; durante a noite ocorre uma desvalorização total; pela manhã se levanta sem nada ter, mesmo que não saiba ainda.

O “investimento” do pobre – Os pobres, pelo contrário, estão em vantagem com a vinda do Reino de Deus, porque ao não terem nada que perder estão mais dispostos a acolher a novidade e não temem a mudança. Podem investir tudo na nova moeda. Estão mais preparados para crer.

Mudança social ou de fé? – Acredita-se, hoje, que as mudanças que contam são aquelas visíveis e sociais e não as que ocorrem na fé. Mas quem tem razão? No século passado, vimos acontecer muitas revoluções sociais; contudo, também vimos depois de algum tempo, que tais mudanças acabam por reproduzir, com outros protagonistas, a mesma situação de injustiça que pretendiam eliminar.

Vendo com o Evangelho – Há planos e aspectos da realidade que não se percebem à primeira vista, só com a ajuda de uma luz especial. Atualmente, com os satélites artificiais, são feitas inúmeras fotografias, com raios infra-vermelhos, de regiões inteiras da Terra, e podemos ver quão diferente é o panorama com esta luz! O Evangelho e, em particular, nossa bem-aventurança dos pobres, nos dá uma imagem do mundo “com raios infra-vermelhos”. Permite captar o que está por baixo ou mais além da aparência. Permite distinguir o que passa e o que fica. A riqueza do pobre é o Reino de Deus.