sábado, 25 de fevereiro de 2012

TENTAÇÃO É PECADO?

Muitas pessoas têm dificuldade em aceitar que Jesus tenha sido tentado pelo diabo. No fundo, é porque consideram a tentação como algo desonroso para a pessoa, como uma fraqueza, uma deficiência. Mas não é assim. A tentação não é nem boa e nem má. É simplesmente inevitável. Todo homem tem tentações, uma vez que, ao ter sido criado livre, sempre fica diante de dois caminhos, duas possibilidades de agir, uma das quais é boa e a outra má. Essa dualidade de horizontes constitui a tentação. Se o homem escolhe o caminho certo, cresce e amadurece; se opta pela via equivocada, se corrompe. 

No Evangelho – Em primeiro lugar, estranhamente, o diabo aparece de modo frontal, sem camuflagens. Além disso, Jesus aparece mudando extravagantemente de cenário. A primeira tentação, por exemplo, acontece no deserto. Mas, na segunda, o diabo aparece transportando-o pessoalmente ao Templo de Jerusalém (Mt 4,5). Como o transportou? Levantando-o? Voando? Isto seria aceitar que o diabo realizou um impressionante prodígio. De onde tirou poder para fazer milagres, quando a tradição bíblica sustenta que só Javé pode fazê-los? (Sl 72,18; 86,10; 136,4). Na terceira tentação, o diabo aparece levando-o desta vez a um alto monte, de onde lhe mostra todos os reinos e países do mundo (Mt 4,8). Existe na Terra esta extraordinária montanha, de onde se pode contemplar semelhante espetáculo? E como pôde Jesus permanecer quarenta dias no deserto sem comer e, principalmente, sem beber? A desidratação não perdoa ninguém. A menos que Jesus tenha feito um milagre para não sofrê-la. Mas que sentido teria então seu jejum?  

Criação literária – O modo como as tentações são descritas no texto do Evangelho não é histórico. Trata-se mais de uma criação literária dos evangelistas, com a finalidade de deixar um ensinamento religioso, uma idéia válida para a vida dos crentes que tropeçam com suas tentações no deserto da vida. Nenhum exegeta sustenta que Jesus foi realmente levado ao deserto, que ali teve fome e foi tentado, que depois foi levado ao Templo de Jerusalém e terminou em cima de um monte. Toda esta coreografia é uma criação dos evangelistas para deixar-nos um ensinamento.  

O número três – A vida de Jesus, como se vê, esteve repleta de tentações, mas os autores bíblicos quiseram resumi-las somente em três, porque este é um número simbólico que aparece muitas vezes na Bíblia, com o sentido de totalidade. Escolheram-nas para traçar um paralelo com aquilo que aconteceu com o povo de Israel, logo após a saída do Egito. Segundo o Antigo Testamento, depois de atravessar de forma prodigiosa o mar Vermelho (Êx 14,15-31), os israelitas entraram no deserto (Êx 15,22), conduzidos pelo Espírito de Javé (Is 63,13-14). Ali permaneceram durante quarenta anos (Nm 31,13) e sofreram principalmente três tentações. Levando em conta esses detalhes, os autores bíblicos apresentam Jesus como o novo povo de Israel, que veio substituir o antigo.  

No deserto – Assim, conforme os evangelistas, a primeira tentação de Jesus tem como cenário o deserto. Os escritores pensam que ali, durante quarenta dias, sem comer, ele sente fome e o tentador o incita a deixar seu plano de jejum e a converter as pedras em pão. Pois bem, o povo de Israel teve a mesma experiência. Depois de sair da opressão do Egito e entrar na liberdade do deserto, experimentou, durante quarenta anos, uma fome parecida. Diante da escassez de alimento, o povo caiu na tentação, rebelando-se contra Moisés. 

No templo – O segundo encontro entre Jesus e o diabo se deu, segundo Mateus, no teto de uma das galerias do Templo, sobre um precipício de mais de cem metros que dava para o vale do Cedron. Ele é convidado a jogar-se dali para o vazio, para provar que Deus sempre cuida dele e não permite que lhe aconteça nada. Também Israel havia passado por semelhante situação. Na localidade de Massa, no deserto, houve falta d’água. Os israelitas sabiam que Javé estava com eles e nunca os havia abandonado. Mas, para prová-Lo e ver se era verdade que Deus não permitiria que lhes acontecesse algo, exigiram de Moisés que, com um sinal maravilhoso, fizesse aparecer água. Caíram na tentação. 

Na montanha – A terceira tentação de Jesus se dá numa montanha altíssima, de onde, numa visão imaginária, contempla todos os reinos daquele tempo. Desta vez, satanás vai diretamente ao assunto e revela-lhe o objetivo de suas tentações: que abandonasse o serviço exclusivo ao Pai e se convertesse em um adorador seu, para obter melhores benefícios e mais riquezas para si. Israel, igualmente, teve essa tentação no deserto: abandonar Javé e fazer para si um ídolo, um bezerro de ouro para adorá-lo.  

Vencedor – Israel havia sido derrotado em todas as provas do deserto. Por isso os profetas, olhando para o futuro, acreditaram que Deus mandaria um Messias com força suficiente para vencer todas as tentações e converter em realidade as antigas esperanças do povo. Com o advento do Senhor, os evangelistas sugerem que se inaugura um “novo povo de Israel”, formado por Jesus Cristo e pelos seus seguidores, os cristãos. E, desta vez, o novo povo de Deus conseguirá, sim, pois Jesus saiu triunfante das tentações e todo aquele que viver unido a ele poderá, de agora em diante, vencer igualmente as tentações. Para isso os autores colocaram as tentações só no início da vida pública de Jesus. Para mostrar que se alguém se esforça em vencê-las, logo tem desimpedido o caminho para o êxito e assegura o triunfo final, como Jesus.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Levanta-te e anda!

No evangelho deste domingo (Mc 2,1-12), Jesus cura um paralítico na casa de Simão. Para refletir sobre esse texto, reproduzimos o comentário de Dom Sergio da Rocha, Arcebispo de Brasília. 

Três grupos – A narrativa da cura do paralítico (Mc 2,1-12) apresenta as atitudes de três grupos de pessoas perante Jesus: a) os quatro homens que carregavam o paralítico; b) os mestres da Lei; c) a multidão reunida diante da casa.  

Buraco no teto – Os homens que levaram o paralítico até Jesus, com grande esforço e criatividade, chegaram a abrir o teto da casa para fazê-lo chegar até ele, por causa da multidão que ali se encontrava. Aqueles homens muito contribuíram para que o milagre acontecesse. Eles demonstraram amor pelo paralítico e, acima de tudo, a fé em Jesus Cristo. Marcos destaca que Jesus “viu a fé daqueles homens” (Mc 2,5).  

Fechamento e admiração – A postura do segundo grupo, os mestres da Lei, ao contrário do primeiro, é a de fechamento, a de recusa em admitir a cura do paralítico, criticando duramente a Jesus pelo fato dele perdoar pecados.  Entretanto, temos ainda, a reação das pessoas que se reuniam em grande número diante da porta da casa onde Jesus estava em Cafarnaum: “ficaram admirados e louvavam a Deus” (Mc 2,12). 

Humildade – No texto meditado, o paralítico nada diz; porém, os seus gestos são muito significativos: ele aceitou aproximar-se de Jesus com a ajuda das pessoas; acolheu o perdão que Jesus lhe oferecia, ao invés de questioná-lo a respeito ou de recusar; por fim, atendendo a voz de Jesus, se levantou e se dispôs a caminhar rumo a uma nova vida.  

Buscar Jesus – Este é o itinerário a ser percorrido por todos os que, também hoje, reconhecem os seus pecados e a incapacidade de caminhar sozinhos; buscam a Jesus aceitando a ajuda das pessoas e o perdão; se levantam e começam a caminhar numa nova vida. Para tanto, é preciso muita humildade e fé em Cristo.     

Personagem principal – Apesar da importância das atitudes dos diversos personagens, é Jesus Cristo quem ocupa o lugar central no Evangelho. Em Cafarnaum, ele “anuncia a Palavra” à multidão reunida; permanece atento às diferentes pessoas, elogiando a fé dos quatro homens e censurando os mestres da Lei.  

Cura por inteiro – Acima de tudo, revela o seu poder salvador através da misericórdia e do perdão, que permitem àquele homem se levantar e caminhar. Uma vez mais, Marcos apresenta Jesus curando o homem por inteiro. “Teus pecados estão perdoados”, “levanta-te e anda”, são as palavras de Jesus dirigidas ao paralítico, que continuam a ecoar nos corações de todos os que se reconhecem necessitados do poder e da misericórdia de Deus para superar as situações de sofrimento e de pecado. 

Fé e Amor – Contudo, não basta pensar em si próprio. O verdadeiro discípulo se une aos outros, como fizeram os quatro homens mencionados, para conduzir até Jesus os que já não conseguem caminhar por conta própria, à espera de um gesto de fé, de amor e de solidariedade dos irmãos. É preciso, hoje, levantar-se e caminhar com a fé em Cristo e o amor ao próximo no coração.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Além do bem estar físico

No evangelho deste domingo (Mc 1,40-45) Jesus cura um leproso e expõe a situação social e religiosa que excluía o doente de frequentar a assembleia do Povo de Deus.  

Sacerdotes – As elites religiosas de Israel, que assumiram o poder político após o fim da monarquia davídica, escreveram inúmeros preceitos legais, dizendo que tinham sido escritos por Moisés, tido pela tradição como o grande legislador. O povo humilde e simples vivia oprimido com centenas de exigências, difíceis de cumprir e que eram motivo de humilhação para muitos, discriminados como impuros e pecadores.  

Impuro – Assim, por exemplo, era considerado impuro aquele que tocasse em um animal doméstico morto (Lv 5,1-6) ou comesse sem antes lavar as mãos (Mt 7,3 - "tradição dos antigos"), o que poderia acontecer com frequência entre camponeses ou empobrecidos, em contato com criações e em situações de carência de água.  

Oferenda – Quem se tornasse impuro deveria levar ao sacerdote uma fêmea de gado miúdo para que ele fizesse o rito de expiação, que livraria o “impuro” do pecado. A mulher, considerada impura durante a menstruação, deveria – depois dos dias de suas regras – levar ao sacerdote duas rolas ou dois pombinhos, que seriam oferecidos como sacrifício pelo “pecado” (Lv 15,19). Até os doentes eram considerados impuros e pecadores, e ficavam excluídos do convívio com os que eram considerados "puros" e "justos".  

Exclusão – Na narrativa do evangelho lido neste domingo, o que constrange o leproso é ser chamado de impuro e, portanto, pecador, sendo por isso excluído: era determinado que ele morasse a sós, fora da cidade e que se apresentasse com roupas rasgadas, aparência descuidada, de maneira repugnante, proclamando sua impureza (primeira leitura). 

Além da cura – Esta narrativa do evangelho de Marcos revela que o empenho de Jesus não é a simples cura, mas a inclusão social dos marginalizados. O agir de Jesus vai além do proporcionar a recuperação do bem-estar físico particular daquele homem. O seu objetivo maior é inserir os excluídos em um convívio social fraterno e justo, fundamental para uma vida saudável.  

Libertação – Jesus vem para libertar todos os oprimidos pelo sistema religioso centrado no Templo de Jerusalém, com seus códigos de pureza e impureza. Esta libertação passa pela consciência que Ele também quer despertar nos excluídos, de que a sua situação de exclusão é fruto de uma injustiça social e religiosa e que esta não era a vontade de Deus.  

Silêncio – O pedido para o homem purificado, de que deveria guardar silêncio, pode ser entendida como uma tentativa de evitar ser visto como um simples “milagreiro", alguém que resolvia problemas individuais e imediatos das pessoas. O envio do homem curado ao sacerdote testemunhará a ação libertadora e vivificante de Jesus.  

Toque – Ao tocar no leproso, Jesus passa a ser visto como um impuro também, por isso Ele evita entrar nas cidades. Contudo, o gesto de Jesus revela a sua indiferença diante do preceito legal. E, ainda mais, promove uma inversão de valores: ao invés Dele se contagiar, é o leproso que fica purificado. Isso significa uma reviravolta na ordem constituída: o sistema que exclui os impuros e pecadores é abolido pela nova prática amorosa de Jesus, que acolhe a todos sem discriminações.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Curou muitos enfermos

No evangelho deste domingo, Marcos (1,29-39) descreve Jesus e os primeiros apóstolos na casa de Pedro. Ao chegarem, encontram a sogra de Pedro com febre. Jesus cura-a e a muitas outras pessoas que vieram até ele. Para refletir sobre os enfermos na Igreja, reproduzimos o comentário do Pe. Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia do Vaticano. 

Evangelho – A passagem evangélica deste domingo oferece-nos o informe fiel de um dia típico de Jesus. Quando saiu da sinagoga, Jesus aproximou-se primeiro da casa de Pedro, onde curou a sogra, que estava de cama com febre; ao chegar a tarde, levaram a ele todos os enfermos e Jesus curou muitos afetados de diversas enfermidades; pela manhã, levantou-se quando ainda estava escuro e se retirou a um lugar solitário para orar; depois partiu para pregar o Reino a outros povos. 

Curar, orar, pregar – Deste relato, deduzimos que o dia de Jesus consistia em uma trilha de curar os enfermos, oração e pregação do Reino. Dediquemos nossa reflexão ao amor de Jesus pelos enfermos (...).  

Cura – As transformações sociais de nosso século mudaram profundamente as condições do enfermo. Em muitas situações, a ciência dá uma esperança razoável de cura ou, ao menos, prolonga em muito o tempo de evolução do mal, em caso de enfermidades incuráveis. Mas a enfermidade, como a morte, não está ainda – e jamais estará – totalmente derrotada. Faz parte da condição humana. A fé cristã pode aliviar esta condição e dar-lhe também um sentido e um valor. 

Pecado – É necessário expressar duas propostas: uma para os enfermos, outra para quem deve atendê-los. Antes de Cristo, a enfermidade era considerada como estreitamente ligada ao pecado. Em outras palavras, estava-se convencido de que a enfermidade era sempre consequência de algum pecado pessoal que era necessário expiar. 

Dor – Com Jesus, algo mudou a esse respeito. Ele “tomou nossas fraquezas e carregou nossas debilidades” (Mt 8,17). Na cruz, deu um sentido novo à dor humana, inclusive para a enfermidade: já não de castigo, mas de redenção. A enfermidade une a ele, santifica, afina a alma, prepara o dia em que Deus enxugará toda lágrima e já não haverá enfermidade nem pranto nem dor. 

Sofrimento – Depois da longa hospitalização que se seguiu ao atentado na Praça de São Pedro, o Papa João Paulo II escreveu uma carta sobre a dor, na qual, entre outras coisas, dizia: “Sofrer significa fazer-se particularmente receptivo, particularmente aberto à ação das forças salvíficas de Deus, oferecidas à humanidade em Cristo”. A enfermidade e o sofrimento abrem entre nós e Jesus na cruz, um canal de comunicação todo especial. Os enfermos não são membros passivos na Igreja, mas os membros mais ativos, mais preciosos. Aos olhos de Deus, uma hora do sofrimento daqueles, suportada com paciência, pode valer mais que todas as atividades do mundo, se se fazem só para si mesmo.  

Esperança – Agora uma palavra para os que devem atender os enfermos, no lar ou em estruturas de saúde. O enfermo tem certamente necessidade de cuidados, de competência científica, mas tem ainda mais necessidade de esperança. Nenhum remédio alivia o enfermo tanto como ouvir o médico dizer: “Tenho boas esperanças para ti”. Quando é possível fazê-lo sem enganar, há que dar esperança. A esperança é a melhor “tenda de oxigênio” para um enfermo. Não há que deixar o enfermo na solidão. Uma das obras de misericórdia é visitar os enfermos e Jesus nos advertiu de que um dos pontos do juízo final cairá precisamente sobre isto: “Estava enfermo e me visitastes... Estava enfermo e não me visitastes” (Mt 25, 36.43).

Orar – Algo que podemos fazer todos pelos enfermos é orar. Quase todos os enfermos do Evangelho foram curados porque alguém os apresentou a Jesus e lhe rogou por eles. A oração mais simples, e que todos podemos fazer nossa, é a que as irmãs Marta e Maria dirigiram a Jesus, na circunstância da enfermidade de seu irmão Lázaro: “Senhor, aquele a quem amas está enfermo!” (Jo, 11,3).