sábado, 27 de agosto de 2016

Revolução social da humildade



No Evangelho deste domingo (Lc 14, 1.7-14) Jesus participa de um banquete na casa de um fariseu. Para a explicação deste texto, vamos recorrer ao texto do Pe. Cantalamessa (Pregador do Papa).

Preconceito – O início do Evangelho deste domingo nos ajuda a corrigir um preconceito sumamente difundido. “Num sábado, Jesus entrou para comer na casa de um dos principais fariseus. Eles o observavam atentamente”. Ao ler o Evangelho desde um certo ponto de vista, acabou-se fazendo dos fariseus o modelo de todos os vícios: hipocrisia, falsidade; os inimigos por antonomásia de Jesus. Semelhante ideia dos fariseus não é correta. Nem todos eram assim. Nicodemos, que vai ver Jesus de noite e que depois o defende ante o Sinédrio, era um fariseu (Jo 3,1;7). Também Saulo era fariseu antes da conversão, e era certamente uma pessoa sincera e zelosa, ainda que não estivesse bem iluminado. Outro fariseu era Gamaliel, que defendeu os apóstolos ante o Sinédrio (At 5,34).

Fariseus – As relações de Jesus com os fariseus não foram só de conflito. Compartilhavam muitas vezes as mesmas convicções, como a fé na ressurreição dos mortos, no amor de Deus e no compromisso como primeiro e mais importante mandamento da lei. Alguns, como neste caso, inclusive o convidam para uma refeição em sua casa. Hoje se considera que mais que os fariseus, quem queria a condenação de Jesus eram os saduceus, a quem pertencia a casta sacerdotal de Jerusalém. Por todos estes motivos, seria sumamente desejável deixar de utilizar o termo “fariseu” em sentido depreciativo.

Durante a refeição – Naquele sábado, Jesus ofereceu dois ensinamentos importantes: um dirigido aos “convidados” e outro para o “anfitrião”. Ao dono da casa, Jesus disse (talvez diante dele ou só em presença de seus discípulos): “Quando deres um almoço ou um jantar, não convides seus amigos, nem seus irmãos, nem seus parentes, nem os vizinhos ricos...”. É o que o próprio Jesus fez, quando convidou ao grande banquete do Reino os pobres, os aleijados, os humildes, os famintos, os perseguidos (as categorias de pessoas mencionadas nas Bem-aventuranças).

Banquete – Mas nesta ocasião quero deter-me a meditar no que Jesus diz aos “convidados”. “Se te convidam a um banquete de bodas, não te coloques no primeiro lugar...”. Jesus não quer dar conselhos de boa educação. Nem sequer pretende alentar o sutil cálculo de quem se põe em uma fila, com a escondida esperança de que o dono lhe peça que se aproxime. A parábola nisso pode dar pé ao equívoco, se não se levar em consideração o banquete e o dono dos quais Jesus está falando. O banquete é o universal do Reino e o dono é Deus.

Modéstia – Na vida, quer dizer Jesus, escolhe o último lugar, procura contentar os demais mais que a ti mesmo; sê modesto na hora de avaliar seus méritos, deixa que sejam os demais quem os reconheçam e não tu (“ninguém é bom juiz em causa própria”), e já desde esta vida Deus te exaltará. Ele te exaltará com sua graça, te fará subir na hierarquia de seus amigos e dos verdadeiros discípulos de seu Filho, que é o que realmente importa.

Humildade – Ele te exaltará também na estima dos demais. É um fato surpreendente, mas verdadeiro. Não só Deus “se inclina ante o humilde e rejeita o soberbo” (Sl 107,6); também o homem faz o mesmo, independentemente do fato de ser crente ou não. A modéstia, quando é sincera, não artificial, conquista, faz que a pessoa seja amada, que sua companhia seja desejada, que sua opinião seja desejada. A verdadeira glória foge de quem a persegue.

Sociedade – Vivemos em uma sociedade que tem suma necessidade de voltar a escutar esta mensagem evangélica sobre a humildade. Correr para ocupar os primeiros lugares, talvez pisoteando, sem escrúpulos, a cabeça dos demais, são características desprezadas por todos e, infelizmente, seguidas por todos. O Evangelho tem um impacto social, inclusive quando fala de humildade e modéstia.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Assunção de Maria


Neste domingo, a Igreja comemora a Assunção de Maria. O Evangelho lido é Lc 1, 39-56, que descreve a visita de Maria à sua prima Isabel e o Magnificat.

Uma nova reflexão – Em tempos que a mídia e ONGs fazem campanha pró-aborto e a Lei permite a destruição de embriões congelados, vamos refletir o Evangelho da visitação com outra perspectiva, que não apenas o carinho e a solicitude de Maria para com sua prima.

O primeiro milagre de Jesus – Quando se fala no primeiro milagre de Jesus, logo se pensa nas bodas de Caná da Galiléia, onde ele converteu a água em vinho a pedido de sua Mãe (Jo 2). Porém, muito antes desse momento, a Bíblia nos relata outro milagre operado por Jesus, quando ainda estava no ventre de Maria Santíssima: a santificação de João Batista, que estava no ventre de Isabel.

Visita – Maria soube, pelo anjo Gabriel, que sua parenta Isabel, uma anciã estéril, tinha ficado grávida e já estava no sexto mês de gestação, pois “para Deus nada é impossível” (Lc 1,36-37). Depois de aceitar a sua própria gravidez (“Eis a serva do Senhor...” - Lc 1,38), Maria foi amorosa e apressadamente (Lc 1,39) ao encontro da outra gestante, Isabel, que morava em uma cidade de Judá. Acredita-se que essa cidade seja Ain-Karim, situada seis quilômetros a oeste de Jerusalém.

Distância – Ora, a distância entre Nazaré – onde estava Maria – e Jerusalém é de aproximadamente 140 quilômetros. Como ela viajou “às pressas”, talvez tenha demorado uns seis dias para chegar a Ain-Karim.

Embrião – Ao entrar na casa de Zacarias e saudar Isabel, o menino Jesus tinha, então, alguns dias de vida gestacional – um embrião. Era tão pequeno que nem sequer havia se formado o coração (que só começa a pulsar entre o 18º e o 21º dia). Nem estava ainda presente o tubo neural, que daria origem ao sistema nervoso. Estava com a idade de um embrião que ainda não se fixou no útero, um embrião “pré-implantatório”. Tinha o tamanho e a aparência daqueles embriões humanos que estão congelados em alguma clínica, porque “sobraram” no processo de fertilização “in vitro”. Era semelhante àqueles que, hoje, a Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005) permite que sejam destruídos, a fim de que suas células sejam usadas em pesquisa ou terapia. Minúsculo e ainda sem uma aparência atraente, Jesus operou um milagre.

Maternidade – Isabel, com um grande grito, exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite?” (Lc 1,42-43). Note-se que o menino Jesus ainda não nascera, mas Isabel, “repleta do Espírito Santo” (Lc 1,41) chama Maria “a mãe do meu Senhor” e não “a futura mãe do meu Senhor”. De fato, a maternidade começa com a concepção e não com o parto. “Pois quando a tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu em meu ventre” (Lc 1,44). Cumpriu-se aquilo que o anjo Gabriel havia anunciado a Zacarias: o menino “ficará pleno do Espírito Santo ainda no seio de sua mãe” (Lc 1,15).

Milagre – Esse milagre foi operado por Jesus com a mediação de Maria, assim como ocorreria anos depois com o milagre de Caná. Mas o milagre da visitação supera em muito o milagre das bodas. Por quê? Porque o primeiro ocorreu na ordem da graça, ao passo que o segundo ocorreu na ordem da natureza. E a graça – que é a vida de Deus em nós – é imensamente superior à natureza.

Jesus e João – Comparemos agora o Autor do milagre (Jesus) com o seu beneficiário (João Batista). Jesus é um pequeno embrião de alguns dias. João já é um bebê grande, com seis meses de vida de gestação. Seus órgãos já estão todos formados. Encolhido no ventre de Isabel, ele já faz sentir sua presença quando se move.

Jesus Deus – Muitas das pessoas que não teriam escrúpulos em destruir fetos com a idade de Jesus (alguns dias) teriam dúvidas em fazer isso com um bebê da idade de João (seis meses). No entanto, o pequeno santificou o grande. Toda a alegria que inundou a casa de Isabel e que culminou com o cântico de Nossa Senhora (o “Magnificat”) teve como causa aquele minúsculo ser humano, que também é Deus, oculto no ventre de Maria.


Aquilo que o mundo despreza – A esse episódio aplicam-se as palavras de São Paulo: “Deus escolheu o que é loucura no mundo, para confundir os sábios; e Deus escolheu o que é fraqueza no mundo, para confundir o que é forte. E aquilo que o mundo despreza, acha vil e diz que não tem valor, isso Deus escolheu para destruir o que o mundo pensa que é importante” (1Cor 1,27-29).

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Eu vim trazer a divisão à terra



Os “ditos” que o Evangelho de hoje (Lc 12,49-53) nos apresenta são dos textos mais obscuros e difíceis de interpretar de todo o Novo Testamento. Particular dificuldade oferece o versículo 49, formado com palavras estranhas ao vocabulário de Lucas. Para a explicação deste texto, vamos recorrer ao texto do Pe. Cantalamessa (Pregador do Papa).

Provocação? – A passagem do Evangelho desse domingo contém algumas das palavras mais provocadoras pronunciadas por Jesus: “Pensais que eu vim trazer a paz à terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer a divisão. Pois daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas e duas contra três; ficarão divididos: pai contra filho e filho contra pai; mãe contra filha e filha contra mãe; sogra contra nora e nora contra sogra”.

Contradição? – E pensar que quem diz essas palavras é a mesma pessoa cujo nascimento foi saudado com as palavras: “Paz na terra aos homens”, e que durante sua vida havia proclamado: “Bem-aventurados os que trabalham pela paz”! A mesma pessoa que, no momento de sua prisão, ordenou a Pedro: “Coloque a espada na bainha!” (Mt 26, 52)! Como se explica esta contradição?

É muito simples – Trata-se de ver qual é a paz e a unidade que Jesus veio trazer e qual é a paz e a unidade que veio suprimir. Ele veio trazer a paz e a unidade no bem, a que conduz à vida eterna, e veio tirar essa falsa paz e unidade que só serve para adormecer as consciências e levar à ruína.

Divisão? – Não é que Jesus tenha vindo propositalmente para trazer a divisão e a guerra, mas de sua vinda resultará inevitavelmente divisão e contraste, porque Ele situa as pessoas ante a disjuntiva. E ante a necessidade de decidir-se, sabe-se que a liberdade humana reagirá de forma variada. Sua palavra e sua própria pessoa trarão à luz o que está mais oculto no profundo do coração humano. O ancião Simeão o havia predito ao tomar Jesus Menino nos braços: “Este está colocado para queda e elevação de muitos em Israel, e para ser sinal de contradição, a fim de que fiquem ao descoberto as intenções de muitos corações” (Lucas 2, 35).

Espada – A primeira vítima dessa contradição, o primeiro em sofrer a “espada” que veio trazer à terra, será precisamente Ele, que neste choque perderá a vida. Depois d’Ele, a pessoa mais diretamente envolvida neste drama é Maria, sua Mãe, a quem, de fato, Simeão, naquela ocasião, disse: “Uma espada te transpassará a alma”.

Jesus mesmo distingue os dois tipos de paz. Diz aos apóstolos: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não é à maneira do mundo que eu a dou. Não se perturbe, nem se atemorize o vosso coração” (João 14, 27). Depois de ter destruído, com sua morte, a falsa paz e solidariedade do gênero humano no mal e no pecado, inaugura a nova paz e unidade que é fruto do Espírito. Esta é a paz que oferece aos apóstolos na tarde da Páscoa, dizendo: “Paz a vós!”.

Família – Jesus diz que esta “divisão” pode ocorrer também dentro da família: entre pai e filho, mãe e filha, irmão e irmã, nora e sogra. E lamentavelmente sabemos que isso às vezes é certo e doloroso. A pessoa que descobriu o Senhor e quer segui-lo seriamente se encontra com frequência na difícil situação de ter de escolher: ou contentar aos de casa e descuidar Deus e as práticas religiosas, ou seguir estas e estar em contraste com os seus, que lhe jogam na cara cada minuto que dedica a Deus e às práticas de piedade.

Carne e Espírito – Mas o choque chega também mais profundamente, dentro da própria pessoa, e se configura como luta entre a carne e o espírito, entre o clamor do egoísmo e dos sentidos e o da consciência. A divisão e o conflito começam dentro de nós. Paulo o explicou de forma maravilhosa: “A carne de fato tem desejos contrários ao Espírito e o Espírito tem desejos contrários à carne; estas coisas se opõem reciprocamente, de maneira que não fazeis o que gostaríeis”.


O homem está apegado à sua pequena paz e tranquilidade, ainda que seja precária e ilusória, e esta imagem de Jesus que vem trazer o desconcerto poderia indispô-lo e levá-lo a considerar Cristo como um inimigo de sua quietude. É necessário tentar superar esta impressão e perceber que também isso é amor por parte de Jesus, talvez o mais puro e genuíno.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Vigiai e estai preparados



A Palavra de Deus que a liturgia deste domingo nos propõe convida-nos à vigilância: o verdadeiro discípulo não vive de braços cruzados, numa existência de comodismo e resignação, mas está sempre atento e disponível para acolher o Senhor, para escutar os seus apelos e para construir o “Reino”. O Evangelho das missas deste domingo começa com uma referência ao “verdadeiro tesouro” que os discípulos devem procurar e que não está nos bens deste mundo: trata-se do “Reino” e dos seus valores. A questão fundamental é: como descobrir e guardar esse “tesouro”? A resposta é dada em três “parábolas”, que apelam à vigilância.

A primeira parábola convida a ter os rins cingidos e as lâmpadas acesas (o que parece aludir a Ex 12,11 e à noite da primeira Páscoa, celebrada de pé e “com os rins cingidos”, antes da viagem para a liberdade), como homens que esperam o senhor que volta da sua festa de casamento. Os que creem são, assim, convidados a estarem preparados para acolher a libertação que Jesus veio trazer e que os levará da terra da escravidão para a terra da liberdade; e são também convidados a acolherem “o noivo” (Jesus) que veio propor à “noiva” (a humanidade) a comunhão plena com Deus (a “nova aliança”, representada na teologia judaica através da imagem do casamento).

A segunda parábola aponta para a incerteza da hora em que o Senhor virá. A imagem do ladrão que chega a qualquer hora, sem ser esperado, é uma imagem estranha para falar de Deus; mas é uma imagem sugestiva para mostrar que o discípulo fiel é aquele que está sempre preparado, a qualquer hora e em qualquer circunstância, para acolher o Senhor que vem.

A terceira parábola parece dirigir-se aos responsáveis da comunidade, que devem permanecer fiéis às suas tarefas de animação e de serviço: se algum deles descuida de suas responsabilidades no serviço aos irmãos e usa as funções que lhe foram confiadas de forma negligente ou em benefício próprio, será castigado. A última afirmação (“a quem muito foi dado, muito será exigido, a quem muito foi confiado, mais se lhe pedirá – vers. 48b) é claramente dirigida aos responsáveis da comunidade; mas pode aplicar-se a todos os que receberam dons materiais ou espirituais.

Reflexão – O Evangelho nos propõe refletir que:
♦ A vida dos discípulos de Jesus precisa ser uma espera vigilante e atenta, pois o Senhor, permanentemente, vem ao nosso encontro e nos desafia a nos despirmos das cadeias que nos escravizam e a percorrermos, com Ele, o caminho da libertação. O que é que nos distrai, que nos prende, que nos aliena e que nos impede de acolher esse dom contínuo de vida?
♦ Ser cristão não é um trabalho “das 8 às 18h”, ou um “hobby” de fim-de-semana; é um compromisso em tempo integral, que deve marcar cada pensamento, cada atitude, cada opção, vinte e quatro horas por dia… Estou consciente dessa exigência e suficientemente atento para marcar, com o selo do meu compromisso cristão, todas as minhas ações e palavras?
♦ Viver a Palavra é um constante desafio Estou suficientemente atento e disponível para acolher e responder aos apelos que Deus me faz e aos desafios que se apresentam através das necessidades dos irmãos? Estou suficientemente atento e disponível para escutar os sinais, através dos quais Deus me apresenta as suas propostas?
♦ Por vezes, os discípulos de Jesus manifestam a convicção de que tudo vai de mal a pior, que esta geração de tão poucos valores está perdida e que não é possível fazer mais nada para tornar o mundo mais humano e mais feliz… Isso não será, apenas, uma forma de mascararmos o nosso egoísmo e comodismo e de nos recusarmos a ser protagonistas empenhados na construção desse “Reino” que é o tesouro mais valioso?

♦ A Palavra de Deus deste final de semana contém uma indagação especial a todos aqueles que desempenham funções de responsabilidade, quer na Igreja, quer no governo, quer nas autarquias, quer nas empresas, quer nas repartições… Convida cada um a assumir as suas responsabilidades e a desempenhar, com atenção e empenho as funções que lhe foram confiadas. A todos aqueles a quem foi confiado o serviço da autoridade, a Palavra de Deus pergunta sobre o modo como nos comportamos: como servos que, com humildade e simplicidade cumprem as tarefas que lhes foram confiadas, ou como ditadores que manipulam os outros a seu bel‑prazer? Estamos atentos às necessidades – sobretudo dos pobres, dos pequenos e daqueles que são frágeis – ou nos instalamos no egoísmo e no comodismo e deixamos que as coisas se arrastem, sem entusiasmo, sem vida, sem desafios, sem esperança?