sábado, 24 de junho de 2000

Ano 2000 – Ano Jubilar (Parte III)

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 24/06/2000


'E Jesus disse a Pedro: 'Eu lhe darei as chaves do Reino do Céu, e o que você ligar na terra será ligado no céu, e o que você desligar na terra será desligado no céu. '

(Mt 16,19)


O Poder da Igreja – A questão das indulgências já deu muito problema para a Igreja Católica. Desempenhou até um papel de relevo nos acontecimentos que acabaram desembocando na Reforma Protestante. Cabe então esclarecer alguns pontos. Poderíamos nos perguntar: Com que autoridade a Igreja Católica pode dizer que concebe indulgências plenas para o fiel? Será a Igreja Católica proprietária ou gerente da graça de Deus?

A resposta para essas perguntas estão na Bíblia e no bom senso. A graça, como a própria palavra indica, é de graça. Deus não é pessoa que se possa manipular ou comandar. Ele é livre mesmo diante da Igreja, que está a seu serviço. Então, perguntamos novamente, como a Igreja se atreve a declarar que o Senhor concederá indulgências a este ou aquele que cumprir determinadas condições? A Igreja faz como certos filhos que conhecem bem a mãe. Imagine um jovem que encontrasse um necessitado e dissesse: venha comigo que minha mãe vai arranjar alguma coisa para você comer e vestir.

Ao dizer isso, o jovem não está achando que manda na mãe. Ele a conhece, sabe em que circunstâncias o seu coração se comove e que tipo de recursos ela terá vontade de pôr em ação diante daquele caso. A garantia que ele dá ao desamparado não vem de um poder exercido sobre a mãe, vem da intimidade que gera confiança na abertura caridosa de alguém que o educou para ter compaixão dos necessitados. Por isso ele garante: pode vir, minha mãe vai atender você!

O Poder das Chaves – É dessa maneira que a Igreja põe em funcionamento o 'poder das chaves'. Jesus disse a seus discípulos: 'tudo o que ligares na terra será ligado no céu e tudo o que desligares na terra será desligado no céu' (Mt 16,19). Desse modo a Igreja está sendo este jovem que olha para o desamparo do mundo, imerso em pecados, e lhe diz indulgentemente em nome de Deus: 'convertam e creiam no Evangelho' (Mc 1,15), creiam no amor misericordioso do Pai que quer tirá-los das trevas e encaminhá-los à luz.

E ao mesmo tempo que Jesus concede autoridade a sua Igreja, Ele condena os peritos de cada época, quando, julgando-se auto-suficientes, conduzem o povo ao erro e às ideologias que são contrárias aos planos de Deus. 'Ai de vocês, especialistas em leis (leia-se hoje os 'peritos'), porque vocês se apoderaram da chave da Ciência. Vocês mesmos não entraram, e impediram os que queriam entrar' (no Reino de Deus) (Lc 11,52).

A Igreja Católica tem dois mil anos de história, recebeu as chaves da Igreja do próprio Jesus e por isso conhece bem o Pai (como o jovem da história conhecia bem sua mãe) e quer ser sempre fiel a Ele, tal qual o foi Jesus. Assim sendo, a Igreja Católica quer, com as indulgências concedidas nesse ano jubilar, abrir e fechar portas do jeito mesmo que Deus quer que elas sejam abertas e fechadas.

Não há indulgência sem atitudes concretas de amor - Ao oferecer aos fiéis a possibilidade de acolher as indulgências do Ano do Jubileu, a Igreja estabelece alguns requisitos. São gestos concretos que a pessoa deve realizar para se predispor ao recebimento do dom de Deus. Não são ritos mágicos, são sinais exteriores que precisam corresponder a firmes intenções e sentimentos internos. Não é qualquer viagem à Terra Santa que conta como peregrinação. Não é qualquer confissão de pecados que garante a absolvição oferecida no Sacramento da Reconciliação: sem arrependimento não há perdão.

Até mesmo o ato de caridade feito aos necessitados precisa brotar de uma genuína fraternidade. Quem estivesse pensando no socorro aos pobres como simples 'moeda de troca' com Deus estaria equivocado. Mais valeria a caridade desinteressada praticada por um ateu que não espera receber nada em troca no além. É por isso que São Paulo diz no famoso hino à caridade: 'Ainda que eu distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que entregasse meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada valeria' (1 Cor 13,3).

sábado, 17 de junho de 2000

Ano 2000 – Ano Jubilar (Parte II)

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 17/06/2000



O que é uma indulgência?

Em linguagem simples, indulgência é a misericórdia que vence o pecado. Mesmo na linguagem comum, fora da Igreja, indulgência significa a capacidade de perdoar, de 'passar por cima' do mal feito. Indulgente é quem teria direito de exigir reparação e prefere apagar o erro num ato de confiança e generosidade em relação àquele que errou.

Indulgência tem a ver com pecado, seja pessoal ou social. Precisamos de indulgências porque somos todos pecadores e vivemos num mundo marcado pelas feridas do pecado.



A indulgência deve ser entendida na relação com o pecado

Muitos preferem nem falar em pecado - como se fosse um assunto fora de moda. Infelizmente, na prática, não é um tema ultrapassado: o pecado, em suas muitas formas, nos agride diretamente. Também não é assunto particular que exija simplesmente um acerto privado entre o pecador e Deus.

Qualquer pecado espalha mal e sofrimento ao mundo, de alguma forma. Nesse sentido, o relato do primeiro pecado, no Gêneses, é exemplar. Pelo exemplo de Adão e Eva, pecar é se apossar de um 'fruto' proibido que destrói a harmonia da vida e transforma em sofrimento e perigo o que deveria ser paraíso. Cada novo pecado que praticamos, repete o processo que expulsa a humanidade do paraíso e deixa um rastro de conseqüências desastrosas, para o próprio pecador, para os que convivem com ele, para a humanidade que se torna menos humana na fraqueza de cada um de seus membros.



Por que a indulgência é proclamar um amor maior que o pecado?

O pecado pode ser perdoado por Deus, pelo irmão ofendido, pela Igreja, pela comunidade. Mas sempre ficam os vestígios do mal feito. A volta ao paraíso fica cada vez mais distante, a recuperação do bem se torna mais penosa. Nesse pano de fundo, proclamar uma Indulgência Plena é afirmar um amor capaz de ser maior do que o pecado: uma vontade restauradora de Deus que tudo cicatriza e recompõe.

Vamos falar um pouco das conseqüências do pecado, que são a razão de ser da indulgência. Pensemos, antes de tudo, num ato com que prejudicamos alguém, roubando algo que lhe pertencia ou até ferindo seu corpo. Mesmo se essa pessoa nos perdoar a ofensa, resta ainda a obrigação nossa de indenizá-la (devolver o que tiramos, pagar o tratamento médico que ele fez...). Se ela nos perdoar não só a ofensa, mas também tudo o que lhe devemos, podemos dizer que ela teve 'indulgência' para conosco. Deus, porém, não está querendo ser 'indenizado' depois de ter perdoado o pecado, a ofensa. Deus quer a nossa realização plena, a nossa felicidade. Mas o pecado não ofende apenas a Deus. Sempre deixa conseqüências negativas em nós e em nossos irmãos. A indulgência, então, é a garantia - pela intercessão da Igreja, da comunhão de todos os santos - de que Deus não somente perdoou tudo, mas nos convida a refazer nossa vida, a buscar a perfeição de nosso ser, a restabelecer plenamente a paz e o amor com todos os irmãos.



Indulgência não é um 'passaporte para o céu'

Por isso, é uma interpretação que ofende a Deus dizer (como às vezes foi dito, suscitando o escândalo dos bons cristãos...) que ganhar a indulgência é comprar o 'passaporte para o céu', o direito de entrar no paraíso. Ganhar a indulgência é comprometer-se a corresponder a graça de Deus e, com sua ajuda, procurar uma libertação total do pecado. Por isso, a indulgência exige gestos concretos que revelem a decisão firme do pecador em converter-se. Exclui qualquer atribuição mágica ao Sacramento da Penitência (Confissão) e à prática da indulgência. Exige, antes, mudança radical do modo de vida.

quinta-feira, 15 de junho de 2000

AS 95 TESES DE MARTINHO LUTERO

Dom Estevão Bettencourt OSB

Mosteiro de São Bento

Rio de Janeiro

Revista Pergunte e Responderemos, n.º 437, outubro de 1998

 

 

Em síntese: Lutero teve uma personalidade muito sensível. Edu­cado em regime familiar austero, foi formado na Filosofia nominalista e voluntarista de Guilherme Ockham. Entrou no convento para cumprir uma promessa feita a Santa Ana por ter escapado da morte numa tempesta­de. Na Vida Religiosa, sentia-se angustiado por não saber como tornar Deus propício à sua pessoa; o conceito de Deus insondável o atormentava, por mais que orasse e jejuasse. Em conseqüência, foi descobrir em São Paulo a solução do problema: para salvar-nos, basta a fé, mesmo que não tenhamos boas obras. Esta tese foi distanciando Lutero da teo­logia tradicional, que levava em conta também a epístola de São Tiago, arauto das boas obras. A distância aumentou quando o frade se insurgiu contra a pregação de indulgências. O seu protesto se exprimiu em 95 teses datadas de 31/10/1517; teve início então a reforma protestante, da qual uma pilastra é a doutrina da justificação pela fé sem as obras.

 

Após o Concílio do Vaticano II, o diálogo católico-luterano tem re­visto tal doutrina e vai superando as antíteses, de modo a aproximar sem­pre mais católicos e luteranos no tocante à teologia da justificação.

 

* * *

 

 

 

Sabe-se que a reforma protestante começou pela proclamação de 95 teses propostas por Martinho Lutero em 31/10/1517. Exprimem as primeiras réplicas do frade agostiniano ao Papado e à prática das indul­gências. Essas teses são pouco conhecidas entre os fiéis católicos. Daí a conveniência de as abordarmos, colocando-as sobre o pano de fundo respectivo, a saber: breve esboço da figura de Lutero e da sua época.

 

1. Martinho Lutero: evolução do pensamento

 

Martinho Lutero nasceu aos 11/11/1 483 em Eisleben (Turíngia), de pai mineiro um tanto rude e mãe austera. O ambiente de casa era severo; nele foi educado o menino até os doze anos de idade. A família era cató­lica fervorosa, mas impregnada de superstições correntes na época: acre­ditavam em misteriosas forças sobre-humanas, como seriam duendes, demônios íncubos e súcubos, bruxas, que apareciam aos homens como se tivessem seu habitat nos ares, nas águas, nas terras de pântano ou desertas; trovões e relâmpagos eram atribuídos à ação de espíritos ma­lignos ou infernais; as doenças eram tidas como causadas pelo Maligno.

Mais de uma vez na sua vida, Lutero acreditou que via e ouvia Satanás sob forma de cão ou outro animal, que o incomodava. Ao lado de estórias apavorantes, Lutero recebeu instrução religiosa muito válida; aprendeu a celebrar as grandes festas da Liturgia e a venerar os Santos, como os Apóstolos, São Martinho, São Jorge, Santa Ana...

 

A religião que Martinho aprendeu até os doze anos de idade, foi de temor mais do que de confiança, mais externa e formalista do que interior e profunda.

 

Estudou humanidades em Mansfeld, Magdeburgo e Eisenach. Em 1501 Martinho começou os estudos universitários em Erfurt (Turíngia), matriculando-se na Faculdade de Artes ou Filosofia.

 

A filosofia que Lutero aprendeu na Universidade, era o aristotelismo interpretado por Guilherme Ockham (+ 1347) e sua escola; era a chama­da “via moderna”, também dita “Nominalismo” ou “Terminismo”. Afirmava que não há conceitos universais, que exprimem a essência de alguma coisa; assim, quando se diz “humanidade”, não se exprime o essencial do ser humano ou aquilo que está em todos os seres humanos, mas apenas se caracteriza um indivíduo em particular; os conceitos univer­sais seriam meros nomes, não correspondentes a algo de objetivo ou à essência comum a todos os indivíduos da mesma espécie. A conseqüên­cia desta tese é que o intelecto humano não é capaz de apreender as essências ou de atingir o que é essencial a cada objeto; só percebería­mos um conjunto de notas acidentais. Desta maneira a razão humana era depreciada. A metafísica era posta de lado; entravam em seu lugar as ciências meramente experimentais, que verificam os fenômenos e fa­zem estatísticas. Somente a fé nos levaria a falar dos valores transcen­dentais; pela razão não se provaria a existência de Deus nem a imortali­dade da alma o que redunda em fideísmo anti-racional. Mais: se a ra­zão e a metafísica são depreciadas, valoriza-se a vontade ou o volun­tarismo; isto significa que o bem e o mal são tais unicamente porque Deus o quer e determina; o mal (matar, roubar, caluniar...) poderia ser um bem se Deus o quisesse. O Nominalismo levava assim ao conceito de Deus Soberano Arbitrário, mais terrível do que amável, identificado com uma vontade todo-poderosa e quase caprichosa e tirânica, que tanto pode­ria condenar um justo como salvar um pecador sem apagar o pecado deste.

 

A estas idéias se associava também o descrédito do magistério pontifício, em favor do conciliarismo, que admitia a supremacia do Concí­lio Geral (congregando todos os Bispos) sobre o Papa; a última instância decisória na Igreja seria o Concílio Geral e não o sucessor de Pedro.

 

Tendo adquirido o mestrado em Artes ou Filosofia, Lutero se matri­culou na Faculdade de Direito em Erfurt.

 

Aos 2 de julho de 1505 deu-se um fato decisivo: quando voltava da casa de seus pais para Erfurt, onde morava, quase foi fulminado por um raio. Impressionado, exclamou então: “Ajuda-me, Santa Ana, e serei fra­de!”. Confessou posteriormente que se arrependeu de ter feito tal voto; os amigos o quiseram dissuadir de cumpri-lo, mas Lutero julgava-se obri­gado a fazê-lo; nem o pai conseguiu desviá-lo do propósito. Sendo as­sim, quatorze dias após proferir o voto, ou seja, aos 16/07/1 505, Lutero, com vinte e dois anos de idade incompletos, entrou no convento dos Agostinianos de Erfurt, tido como uma casa religiosa de observância fer­vorosa.

 

Mais tarde, isto é, em 1521 Lutero escrevia a seu pai, confessando ter entrado constrangido na Vida Religiosa:

 

“Tu receavas, com paternal afeto, por minha fraqueza, porque eu era um adolescente de 22 anos incompletos, idade em que a adolescên­cia fervilha.., e porque conhecias muitos casos em que a vida monástica resultara infeliz para não poucos. Tu, ao contrário, me preparavas um honesto e opulento matrimônio... Por fim cedeste e submeteste tua von­tade à vontade de Deus, mas sem deixar de recear por minha causa. Pois tenho muito presente na memória que, quando, acalmado, con­versavas comigo e eu te dizia que o céu com seus terrores me tinha chamado, visto que eu não me fazia frade por gosto nem de bom grado, muito menos por amor do corpo, mas porque, assediado pelo terror e a angústia da morte repentina, fiz um voto forçado pela necessidade, tu me replicaste: ‘Oxalá não haja aí engano ou alucinação””(Weimarer Ausgabe 8,5 73s)[1].

 

Pergunta-se: por que Lutero ficou no convento, se tinha consciên­cia de ter optado constrangido ou a contragosto? A explicação é dada pelo desejo de evitar o pecado e salvar sua alma fugindo do mundo em que as tentações eram fortes; o perigo de se perder espiritualmente sus­citava fases de melancolia no jovem Lutero. No convento o frade improvi­sado procurou cumprir a Regra, orando, jejuando, obedecendo, vivendo em castidade. Todavia sentia-se angustiado e inquieto pelo temor de não estar agradando a Deus. De modo especial perturbava-o a incerteza da predestinação: estaria ele irremediavelmente destinado ao inferno? Era-lhe difícil conceber uma resposta, visto que a filosofia ockhamista nominalista que aprendera, lhe insuflava a idéia de um Deus misteriosa­mente arbitrário em seus desígnios e tremendamente justiceiro, em vez do conceito de um Pai misericordioso, cuja vontade salvífica universal se evidencia no fato de haver entregue seu Filho pela salvação dos homens. Em sua crise, confessa Lutero que “não amava, mas odiava o Deus jus­ticeiro, que castigava os pecadores e, se não blasfemava em silêncio, ao menos murmurava, terrivelmente indignado contra Deus” (WA 54,185).

 

Atormentado por dúvidas e remorsos, corria a confessar-se, acu­sando culpas que talvez não fossem tais senão em sua imaginação alta­mente excitada. Afinal o Deus tirânico que ele forjara, não era o Deus da Tradição cristã, mas sim o Deus sugerido pelo regime de educação seve­ra e pela formação filosófica que recebera. Para tentar acalmar a sua alma, Lutero entregava-se à oração, ao trabalho, ao jejum e à penitência, mas isto tudo lhe parecia inútil, porque continuava a sentir em seu intimo a tendência ao pecado ou movimentos de ira, ódio, concupiscêncía des­regrada...; as obras ascéticas e virtuosas que praticava, de nada lhe ser­viam; sentia-se acusado interiormente; ele, que entrara no convento es­perando conseguir paz de consciência e sentir Deus propício, via-se frus­trado o que muito o afligia.

 

Eis alguns testemunhos do próprio Lutero a respeito do seu estado de alma:

 

“Quanto mais me esforçava por cultivara contrição, tanto maior era a força com que se levantavam as angústias da minha consciência; não me era possível aceitar a absolvição e outras consolações que os meus confessores me ministravam. Pois pensava comigo mesmo: Quem me garante que posso acreditar nessas consolações? Aconteceu logo casu­almente que, falando com meu Mestre e lamentando-me com muitas lá­grimas por sentir essas tentações que eu padecia com freqüência por causa da minha idade, ele me disse o seguinte: ‘Filho, que fazes? Não sabes que o Senhor nos mandou ter esperança?’ Esta única palavra me deu força para crer na absolvição” (WA 40,2. p. 412).

 

Todavia essa confiança era efêmera. Voltava a ser atormentado pela incerteza de estar na graça de Deus. Escreveu então:

 

“Por que suportei os mais pesados trabalhos no mosteiro? Porque macerei meu corpo com jejuns, vigílias e frio? Porque eu me esforçava por chegar à certeza de que assim conseguiria o perdão dos meus peca-dos” (WA 43, 3255).

 

“Quando eu era monge, nada conseguia com minhas penitências, porque não queria reconhecer meu pecado e minha impiedade... Em con­seqüência, quanto mais eu corria e desejava chegar a Cristo, tanto mais se afastava Ele de mim... Após a confissão e a Missa não podia dar satis­fação a mim mesmo, porque a consciência não podia encontrar firme consolação nas obras praticadas” (WA 43, 537).

 

“No mosteiro eu não pensava em mulher nem em dinheiro ou ou­tros bens, mas o coração temia e estremecia pensando em como tornaria Deus propício a mim mesmo” (WA 47, 589s).

 

Em 1515 Lutero foi designado pelos Superiores da Ordem de S. Agostinho para lecionar as epístolas de São Paulo. Lendo e meditando tais textos, o frade foi descobrindo a solução do seu problema, que cons­tava de dois princípios básicos:

 

          -  o pecado deteriorou irremediavelmente a natureza humana, de modo que o homem é incapaz, por si, de praticar o bem, nem tem liberdade para isto. Precisa da graça para fazer obras boas; mas mesmo as obras boas dos Santos são más: ~~Mesmo praticando boas obras, pe­camos (idcirco enim bene operando peccamus)” (WA 56, 289). O pe­cado permanece sempre porque a concupiscência desregrada sempre permanece; o Batismo não a extingue;

 

          - se somos sempre pecadores, não são nossas boas obras que nos salvam, mas a fé ou a confiança em Cristo. Se alguém tem fé, Deus deixa de imputar os seus pecados e lhe aplica os méritos de Cristo. Esta modalidade de justificação é por Lutero chamada “imputativa, foren­se, judiciária e não ontológica”. Não há regeneração e santificação real da alma humana. O homem é simultaneamente justo e pecador; pecador na realidade e justo na aparência que Deus dele faz; justo porque tem fé em Cristo, pecador porque não cumpre a lei e não está isento da concu­piscência desregrada:

 

“De modo nenhum nos condena o fato de sermos pecadores, contanto que desejemos ser justos... Convém, pois, permanecer nos pe­cados e gemer por nos libertarmos deles na esperança da misericórdia de Deus” (WA 56, 266).

 

Desenvolvendo tais concepções, Lutero chega a professar a predestinação ao inferno e rejeita a universalidade da vontade salvífica de Deus.

 

Existem declarações do próprio Lutero que manifestam o seu esta­do de alma angustiado e desesperado na década de 1510:

 

“Bastava o nome de Jesus Cristo nosso Salvador para que eu tre­messe dos pés à cabeça” (WA 44, 716).

 

“Tenho feito a experiência de que, quando alguém cai em tentação ou quando a morte o atemoriza ou corre algum perigo, vem-lhe a vontade de desesperar e fugir de Deus como do demônio” (WA 46, 660).

 

“Quando eu estava no mosteiro, metido em minha co gula, era tão inimigo de Cristo que, se eu visse uma escultura ou pintura que o apre­sentasse crucificado, eu me aterrorizava, de modo que fechava os olhos e teria preferido ver o diabo” (WA 47, 310).

 

“Muitas vezes me assustei ao nome de Jesus; quando eu contem­plava Jesus na cruz, parecia-me que me fulminava um raio e, quando se pronunciava o seu nome, teria preferido ouvir o do demônio” (WA 47, 590).

 

As portas do inferno terrificante pareciam abrir-se àquele frade desesperado:

 

“Conheço um homem (o próprio Lutero) que sofria tais penas em muitas ocasiões, ainda que por brevíssimo intervalo de tempo; eram tão grandes e tão infernais que nem a língua o pode dizer nem a pena escre­ver, nem o pode crer quem não o tenha experimentado. Em conseqüên­cia, se essas penas se consumassem plenamente ou se protraissem por meia-hora ou mesmo só pela décima parte de uma hora, esse homem pereceria e todos os seus ossos se reduziriam a cinzas. Deus se apre­sentaria horrivelmente irado, e com Ele também todas as criaturas. Então não é possível fugir, não há consolação nem interna nem externa, mas tudo é acusação... Não pode crer que seja temporária aquela pena, só lhe resta um simples desejo de auxílio e um horrendo gemido; não sabe ele a quem pedir socorro” (WA 1, 557).

 

“Quem pode amar a quem trata os pecadores segundo a justiça?”

(WA 40, 2p. 445).

 

“Minha vida se aproxima do inferno e cada dia estou pior” (Briefwechsel 560).

 

Em particular quanto ao Ofício Divino (Liturgia das Horas), Lutero refere o seguinte:

 

“Muitas vezes passava eu dias inteiros lendo, pregando quatro ve­zes ao dia, com omissão das horas canônicas. Quando chegava o sába­do, eu me encerrava na cela o dia inteiro em jejum, fatigando-me com assíduas ora ções. Levei a coisa tão longe que a cabeça tonteou, e du­rante cinco semanas não pude ver a luz do dia. Nessas cinco semanas acumulei boa provisão de horas canônicas. Tendo recuperado a saúde, determinei cumprir tudo aqui, mas sentia tantos incômodos que nem po­dia ver o livro” (Tischreden 6077 V 4 74-75).

 

“Eu costumava acumular minhas horas canônicas por quatorze dias ou quatro semanas, quando tinha muito que fazer...; a seguir, reservava uma semana inteira ou um dia ou três, em que me encerrava no aposen­to, sem comer nem beber até ter rezado tudo” (Tischreden 5428 V 137).

 

 

“Certa vez assisti à promoção de doutores (na Universidade) e des­cuidei-me das minhas horas. Durante a noite estourou uma violenta tem­pestade. Então levantei-me e rezei minhas horas, pois julguei que por causa de mim tivera origem a tormenta” (Tischreden 49191V 580).

 

O simples fato de sentir impulsos desregrados o atormentava como se tivesse cometido graves pecados:

 

“Eu experimentava diversos remédios, confessava-me todos os dias, etc., mas não aproveitava nada, porque sempre voltava a concupiscên­cia da carne; por isto não me podia tranqüilizar, mas me atormentava constantemente com esses pensamentos: ‘Cometeste tal ou tal pecado. Além disto, sofres de inveja, impaciência, etc. Por conseguinte, em vão te fizeste Religioso e sacerdote; todas as tuas boas obras são inúteis”’ (WA 40, 2p. 9 is).

 

A Teologia ensina que o sentir a concupiscência não é pecado se o cristão não lhe dá consentimento. Mas, em virtude de sua formação ocamista, Lutero valorizava o sentir mais do que o raciocínio, de modo que sentir o desmando, mesmo sem lhe consentir, lhe parecia ser pe­cado.

 

Em síntese, Lutero julgava que a concupiscência desregrada é o próprio pecado original. Visto que aquela jamais se extingue no homem, segue-se que o pecado original não é apagado pelo Batismo; por isto todo homem é corrupto e rejeitado pela santidade de Deus; em tudo o que ele faça (mesmo nas boas obras), ele peca; a vontade não é livre para praticar o bem. Donde se conclui que a justificação se faz unica­mente pela fé, dom de Deus, sem colaboração ativa do homem.

 

Foi sobre este pano de fundo que sobreveio o episódio das indul­gências.

 

2. As Indulgências

 

A temática das indulgências geralmente é mal entendida e relata­da por historiadores profanos que descrevem a reforma luterana. A ver­são autêntica e objetiva do assunto é proposta no seguinte artigo deste fascículo. Nestas páginas apresentaremos apenas os fatos como se de­ram na época de Lutero, influindo sobre as atitudes do frade agostiniano.

 

Em 1514 teve origem na Alemanha uma situação pouco honesta. Com efeito, Alberto de Hohenzollern, com 24 anos de idade, foi nomeado Arcebispo de Magdeburgo (em fevereiro) e Administrador Apostólico de Halberstadt (em setembro). No ano seguinte, o cabido de Mogúncia o elegeu para esta diocese primacial da Alemanha. Caso aceitasse a elei­ção, teria que renunciar às duas outras dioceses. Suplicou, porém, ao Papa Leão X que lhe permitisse acumular as três dioceses o que não era oportuno para a vida pastoral dos diocesanos. Todavia o Pontífice lho permitiu, por razões de conveniência ocasional, contanto que pagasse à Câmara Apostólica 10.000 ducados de ouro por tal dispensa, além dos 14.000 florins renanos já desembolsados para receber o pálio (insígnia) de arcebispo e a confirmação pontifícia. Para pagar tal dívida, Alberto resolveu pedir emprestado ao banqueiro Tiago Függer, de Ausburgo, a quantia de 21.000 ducados e 500 florins, equivalente aproximadamente a 29.000 florins renanos.

 

A fim de conseguir reembolsar ao banqueiro, os príncipes eleitores Alberto e seu irmão Joaquim se entenderam com a Cúria Romana no sentido de se promover a pregação de indulgências nas três dioceses de Alberto e no território de Brandenburgo submetido a Joaquim de Hchenzoilern, sob a condição de que a metade do dinheiro arrecadado se destinasse à construção da basílica de São Pedro em Roma e a outra metade ficasse para Alberto, arcebispo de Mogúncia. Em outubro de 1515 o Imperador Maximiliano interveio exigindo durante três anos a contribui­ção de mil florins anuais em favor da igreja de São Tiago em Innsbruck.

 

A pregação dessas indulgências foi confiada ao frade dominicano João Tetzel, ardoroso pregador, de costumes íntegros, mas orador popu­lar mais do que autêntico teólogo. Com retórica tratou de comover e con­vencer os fiéis a dar sua contribuição. Não vendia bulas papais que pro­metessem o perdão dos pecados, como se tem dito, mas soube usar de dialética abusiva e imprudente o que, em parte, se compreende pelo fato de que seu trabalho era controlado por funcionários do banqueiro Függer. Tetzel seguia as normas estabelecidas por Alberto de Mogúncia no libelo lnstructio Summaria pro Subcommissariis.

 

Deve-se confessar que todo esse plano de arrecadar dinheiro e as suas finalidades não merecem aprovação.

 

3. As Teses de Lutero

 

Quando a Instructio Summaria chegou às mãos de Martinho Lutero, este se insurgiu “como um cavalo cego”, e protestou energica­mente junto ao respectivo autor, Alberto de Mogúncia.

 

É comum dizer-se que Lutero concretizou tal protesto ao meio-dia de 31/1 0/1 51 7, afixando às portas da Schlosskirche (igreja do castelo) de Wittenberg 95 teses sobre as indulgências e convidando todos os eruditos para uma disputa pública a respeito das mesmas. Na verdade, porém, esta versão é lendária. Ninguém mencionou tal façanha enquan­to Lutero viveu. O primeiro a referi-la foi Melancton em 1546; não se sabe donde tirou a notícia, nem ele cita fonte alguma; em 1517 Melancton não se achava em Wittenberg, mas sim em Tübingen; portanto não foi teste­munha do alegado. De resto, sabe-se que Melancton nem sempre é exa­to quando narra pormenores da juventude de Lutero. Pode-se supor que, lendo as 95 teses e o convite de Lutero para um debate público, tenha Melancton imaginado que se tratava do anúncio de uma disputa acadê­mica, anúncio que se fazia geralmente afixando proclamas às portas das igrejas.

 

O fato certo é que, aos 31/1 0/1 51 7, Frei Martinho Lutero escreveu, indignado, uma carta de protesto ao arcebispo de Mogúncia, enviada com um exemplar de suas teses. A carta pedia que fosse retirada de circulação a lnstructio e corrigido o modo de pregar as indulgências. Examinemos atentamente as teses, conscientes de que o autógrafo de Lutero não numerava as suas afirmações e interrogações. A numeração se deve aos tipógrafos que as imprimiram em fins de 1517, de acordo com as cópias oferecidas por Lutero e seus amigos. Eis o texto respectivo:

 

“Por amor à verdade e no empenho em elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em Wittenberg, sob a presidência do R. P. Martinho Lutero, Mestre de Artes e de Santa Teologia e Professor Catedrático desta última, naquela localidade. Por esta razão ele solicita que os que não possam estar presentes e debater com ele oralmente, o fa­çam por escrito, mesmo que ausentes. Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.

 

1. Ao dizer ‘Fazei penitência’ etc., nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência.

 

2. Esta expressão não pode ser entendida no sentido do sacra­mento da penitência (isto é, da confissão e satisfação celebrada pelo ministério dos sacerdotes).

 

3. Ela também não se refere apenas a uma penitência interior; sim, ela não seria penitência se externamente não produzisse toda sorte de mortificações da carne.

 

4. Por isto a pena também perdura enquanto houver o ódio da pes­soa contra si mesma (isto é, a verdadeira penitência interior), ou seja, até a entrada para o reino dos céus.

 

5. O papa não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que ele impôs por decisão própria ou dos cânones.

 

6. O papa não pode fazer cessar culpa alguma, senão declarar e confirmar que ela foi perdoada por Deus. Além disso, ele pode sem dúvi­da remiti-la nos casos reservados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecerá por inteiro.

 

7.   Deus não perdoa a culpa de quem quer que seja, sem que se sujeite em completa humildade ao sacerdote como a seu substituto.

 

8.   Os cânones penitenciais (que são a prescrição do modo de con­fessar e expiar) são apenas impostos aos vivos; nada se deve impor aos moribundos com base nos mesmos.

 

9.   Por isso o Espírito Santo nos beneficia através do papa, quando este, em seus decretos, sempre exclui a circunstância da morte e da ne­cessidade extrema.

 

10. Agem mal e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que ainda reservam aos moribundos penitências canônicas para o pur­gatório.

 

11. Essa erva daninha, de se poder transformar a pena canônica em pena do purgatório, foi semeada enquanto os bispos estavam obvia­mente dormindo.

 

12. Antigamente se impunham as penas canônicas não depois, mas antes da absolvição, como verificação da verdadeira contrição.

 

13. Através da morte os moribundos pagam tudo e já estão mortos para as leis canônicas, tendo, por direito, isenção das mesmas.

 

14. Piedade ou amor[2] imperfeitos no moribundo necessariamente trazem consigo grande temor, e tanto mais quanto menor for o amor.

 

15. Este temor e horror por si só já basta (para não falar de outras coisas) para produzir a pena do purgatório, uma vez que estão muito próximos da angústia do desespero.

 

16. Inferno, purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o desespero, o semi-desespero e a segurança[3].

 

17. Tudo indica que é necessário diminuir o horror das almas no purgatório, bem como promover o amor[4].

 

18. Parece não ter sido provado, nem à base da razão nem da Escritura, que elas se encontram fora do estado de mérito ou da possibi­lidade de crescimento no amor.

 

19. Também parece não ter sido provado que as almas no purga tó­rio estejam certas e seguras de sua felicidade, ao menos não todas, mes­mo que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza.

 

20. Portanto, sob remissão plena de todas as penas o papa não entende simplesmente todas as penas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs.

 

21. Erram, portanto, aqueles apregoadores de indulgências que afirmam que a pessoa é libertada e salva de toda pena pelas indulgênci­as do papa.

 

22. Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de um único castigo que elas, segundo os cânones (da igreja), deviam ter sal­dado nesta vida.

 

23. Se é que se pode dar algum perdão de todos os castigos a alguém, este se dará somente aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos.

 

24. Por isso a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada com essa magnífica e indistinta promessa de absolvição do castigo.

 

25. O mesmo poder que o papa tem sobre o purgatório de modo geral, todo bispo e cura dalmas também o têm em sua diocese e paróquia em particular.

 

26. O papa faz muito bem ao dar remissão às almas não pelo poder das chaves (que ele não tem)[5], mas por meio de intercessão.

 

27. Pregam doutrina humana aqueles que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando (do purgatório).

 

28. Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, pode aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da igreja[6], porém, depende apenas da vontade de Deus.

 

29. E quem é que sabe se realmente todas as almas no purgatório querem ser resgatadas? Diz-se que este não foi o caso com S. Severino e S. Pascoal.

 

30. Ninguém tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos de haver conseguido plena remissão.

 

31. Tão raro como o que é penitente de verdade é o que recebe autenticamente as indulgências, ou seja, é raríssimo.

 

32. Serão condenados em eternidade, juntamente com seus mes­tres, aqueles que se julgam seguros de sua salvação através de carta de indulgência.

 

33. Deve-se ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indulgências do papa aquela inestimável dádiva de Deus, através da qual a pessoa se reconcilia com Deus.

 

34. Isso porque aqueles favores das indulgências se referem so­mente às penas de satisfação sacramental, determinadas por homens.

 

35. Não pregam cristãmente os que ensinam não ser necessária a contrição àqueles que querem resgatar as almas ou adquirir privilégios confessionais.

 

36. Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito à remissão plena de pena e culpa, mesmo sem carta de indulgência.

 

37. Qualquer cristão verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem partici­pação em todos os bens de Cristo e da igreja, por dádiva de Deus, mes­mo sem carta de indulgência.

 

38. Mesmo assim a remissão e a participação da mesma pelo papa de forma alguma devem ser desprezadas, porque (como disse) constitu­em declaração do perdão divino.

 

39. Até mesmo para os mais doutos teólogos é dificílimo conciliar, perante o povo, ao mesmo tempo a liberalidade das indulgências e a necessidade de verdadeira contrição.

 

40. A verdadeira contrição procura e ama os castigos, ao passo que a abundância das indulgências os afrouxa e faz odiá-los, havendo ocasião para tanto.

 

41. Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apos­tólicas[7], para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras de caridade.

 

42. Deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgência possa de alguma forma ser comparada com as obras de misericórdia.

 

43. Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou empres­tando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indul­gências.

 

44. Ocorre que através da obra de caridade cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre de castigo.

 

45. Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o ne­gligencia para gastar com indulgências, obtém para si não as indulgênci­as do papa, mas a ira de Deus.

 

46. Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abun­dância, devem conservar o que é necessário para sua casa, e de forma alguma desperdiçar dinheiro com indulgências.

 

47. Deve-se ensinar aos cristãos que a compra de indulgências élivre, e não constitui obrigação.

 

48. Deve-se ensinar aos cristãos que o papa necessita mais de orações devotas a seu favor e portanto as deseja mais, ao distribuir in­dulgências, do que o dinheiro que se está pronto a pagar.

 

49. Deve-se ensinar aos cristãos que as indulgências do papa são úteis, enquanto não depositam nelas a sua confiança, porém muito preju­diciais quando, de posse delas, perdem o temor de Deus.

 

50. Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das extorsões feitas pelos apregoadores de indulgências, ele preferiria redu­zir a cinzas a basílica de S. Pedro a edificá-la com pele, carne e ossos de suas ovelhas.

 

51. Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto - como é seu dever - a dar do seu dinheiro àqueles muitos de quem alguns apregoadores de indulgências extraem ardilosamente o dinheiro, mesmo se para isto fosse necessário vender a basílica de S. Pedro.

 

52. Vã é a confiança de salvação conferida pelas cartas de indul­gências, mesmo que o comissário[8] ou até mesmo o próprio papa dessem sua alma como garantia pelas mesmas.

 

53. São inimigos de Cristo e do papa aqueles que por causa da pregação de indulgências fazem calar por inteiro a palavra de Deus nas demais igrejas.

 

54. Ofende-se a palavra de Deus quando, em um mesmo sermão, se dedica tanto ou mais tempo às indulgências que àquela palavra.

 

55. A atitude do papa é necessariamente esta: se as indulgências (que são menos importantes) são celebradas com um toque de sino, com pompa e cerimônia, o evangelho (que é o mais importante) deve ser anun­ciado com uma centena de sinos, pompas e cerimônias.

 

56. Os tesouros da igreja, dos quais o papa concede as indulgênci­as, não são suficientemente mencionados nem conhecidos junto ao povo de Cristo.

 

57. Os tesouros da Igreja, com certeza, não devem ser de natureza temporal, senão muitos dos pregadores de indulgências não os distribui­riam com tanta facilidade, antes apenas ficariam a ajuntá-los.

 

58. Tampouco consistem eles nos méritos de Cristo e dos santos, pois estes sempre operam, sem o papa, a graça para o homem interior e ao mesmo tempo a cruz, a morte e o inferno para o homem exterior.

 

59. S. Lourenço disse que os pobres da igreja são os tesouros da mesma, empregando, no entanto, a palavra como era usada em sua época.

 

60. Não exageramos ao dizer que as chaves da igreja, que lhe foram proporcionadas pelos méritos de Cristo, constituem este tesouro.

 

61. Pois está claro que, para a remissão dos castigos e para a absolvição em determinados casos[9], o poder do papa por si só é suficiente.

 

62. O verdadeiro tesouro da igreja é o santíssimo evangelho da glória e da graça de Deus.

 

63. Este tesouro, entretanto, é muito odiado, e com razão, porque faz com que os primeiros sejam os últimos.

 

64. Em contrapartida, o tesouro das indulgências é com razão o mais benquisto, pois faz dos últimos os primeiros.

 

65. Por esta razão os tesouros do evangelho foram as redes com que outrora se pescavam os homens de grandes riquezas.

 

66. Os tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a riqueza dos homens.

 

67. As indulgências apregoadas pelos seus vendedores como sen­do a mais sublime graça, realmente podem ser entendidas como tal, na medida em que dão boa renda.

 

68. Estas são, entretanto, as graças mais ínfimas, se comparadas com a graça de Deus e a devoção à cruz.

 

69. Os bispos e curas de almas têm a obrigação de admitir com toda reverência os comissários de indulgências apostólicas.

 

70. Têm, porém, a obrigação ainda maior de observar com os dois olhos e atentar com ambos os ouvidos para que esses comissários não preguem os seus próprios sonhos, em lugar do que lhes foi incumbido pelo papa.

 

71. Quem fala contra a verdade das indulgências apostólicas, seja excomungado e maldito.

 

72. Aquele, porém, que se empenhar zelosamente contra a devas­sidão. e licenciosidade de palavras do pregador de indulgências, seja bendito.

 

73. Assim como o papa com razão fulmina aqueles que de alguma forma procuram defraudar o comércio das indulgências,

 

74. muito mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indul­gências, defraudam a santa caridade e verdade.

 

75. A opinião de que as indulgências papais são tão eficazes a ponto de absolver um homem que tivesse violentado a mãe de Deus, caso isso fosse possível, é loucura.

 

76. Em contrapartida, afirmamos que as indulgências papais não podem anular sequer o menor dos pecados veniais no que se refere àsua culpa.

 

77. A afirmação de que nem mesmo 5. Pedro, caso fosse o papa atualmente, poderia conceder maiores graças, é blasfêmia contra São Pedro e o papa.

 

78. Afirmamos, ao contrário, que também este ou qualquer outro papa tem graças maiores a dar, quais sejam o evangelho, as virtudes espirituais, os dons de curar, etc., como está escrito em 1 Coríntios 12.

 

79. Dizer que a cruz com as armas do papa, altivamente erguida[10], se equipara à cruz de Cristo, é blasfêmia.

 

80. Terão que prestar contas de sua atitude os bispos, curas de almas e teólogos que permitem que semelhantes conversas sejam difun­didas entre o povo.

 

81. Esta licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil, nem para homens doutos, defender a dignidade do papa contra calúnias ou perguntas, sem dúvida argutas, dos leigos.

 

82. Por exemplo: Por que o papa não evacua o purgatório, por santíssimo amor às almas e pela suprema necessidade das mesmas, sendo esta de todas as causas a mais justa, que ele redime inúmeras almas por meio do tão miserável dinheiro para a construção da basílica, que constitui uma causa tão insignificante?

 

83. Ou: Por que se mantêm as missas em prol dos defuntos e a memória dos aniversários de falecimento e não se restitui ou se permite que se recebam de volta as doações efetuadas em favor deles, quando não é justo orar pelos redimidos?[11]

 

84. Ou: Que nova piedade, de Deus e do papa, é esta, que se permita ao ímpio e inimigo11 redimir uma alma piedosa e amiga de Deus mediante dinheiro em vez de redimir por amor esta mesma alma piedosa e dileta gratuitamente?

 

85. Ou: Estando os preceitos penitenciais em si já de há muito re­vogados e mortos de fato por desuso, por que razão são eles assim mes­mo pagos com dinheiro, pela concessão de indulgências, como se ainda estivessem em pleno vigor?

 

86. Ou: Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior que a do riquíssimo Crasso[12], não constrói com seu próprio dinheiro, ao invés do dinheiro de seus pobres fiéis, ao menos esta basíllca de São Pedro?

 

87. Ou: O que é que o papa perdoa e concede àqueles que pelo arre­pendimento completo têm direito ao pleno perdão e às bênçãos.[13]

 

88. Ou: Que benefício maior se poderia proporcionar à igreja, se o papa, como agora o faz uma vez[14], concedesse estas remissões e bên­çãos cem vezes ao dia a qualquer dos fiéis?

 

89. Já que com as indulgências ele procura mais a salvação das almas do que o dinheiro, por que suspende ele as cartas de indulgências outrora concedidas, se são igualmente eficazes?

 

90. Rebater estes muito perspicazes argumentos dos leigos so­mente pela força e sem motivos razoáveis, significa expor a igreja e o papa à zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos.

 

91. Se, portanto, as indulgências fossem apregoadas em conformi­dade com o espírito e a opinião do papa, estas objeções poderiam ser facilmente dissipadas e nem mesmo teriam surgido.

 

92. Fora, pois, com todos esses profetas que dizem ao povo de Cristo “Paz, paz!” sem que haja paz!

 

93. Abençoados, porém, sejam todos os profetas que dizem ao povo de Cristo “Cruz! cruz!”, sem que haja cruz!

 

94. Admoestem-se os cristãos a que procurem seguir sua cabeça, Cristo, através de penas, da morte e do inferno.

 

95. E assim confiem entrar no céu passando antes por muitas tribu­lações do que pela segurança da paz infundada”

 

 

4. Observações ao Texto

 

Algumas das proposições de Lutero se ressentem de falso concei­to de indulgências: o reformador as entendia como aquisição material de uma bula papal donde resultaria o perdão dos pecados; não levava em conta o conceito correto de indulgências, que exigia o arrependimento e a confissão dos pecados; não se vendia o perdão dos pecados; ver o artigo seguinte neste fascículo. Ao escrever suas teses, Lutero já havia concebido sua noção de justificação pela fé e de penitência cristã, noção incompatível com a da Teologia clássica. Quem lê as 95 teses, pode ter a impressão de que foram lançadas sem muita ordem nem encadeamento de idéias; vão sendo propostas às vezes em tom passional, às vezes em vestes de humildade; estão sujeitas a repetições e imprecisões. O que têm de válido, é a preocupação, presente em quase todas as teses, com a necessidade de compunção interior mais do que de obras exteriores; infelizmente, porém, o estilo extremado e temperamental das teses leva a exageros impróprios a um teólogo.

 

A variedade das proposições permite distinguir rumos diversos entre elas. Assim há

 

          - teses aceitáveis ao Catolicismo: n.º 1. 2. 3. 7. 26. 38. 41;

 

          -  teses demagógicas: n9  92. 93. 94. 95;

 

          - teses que supõem o conceito luterano de justificação: n.º 5. 20. 21. 25. 32. 56. 58. 62;

 

          -  teses que procuram reconhecer o magistério do Papa: n.º  42. 50. 51. 53. 55. 70. 91;

 

          -  teses sarcásticas: n.º  65. 66. 82. 86.

 

Lutero proferiu suas teses sem a intenção de se afastar da Igreja. O fato, porém, é que se tornaram o ponto de partida público de uma ruptura que foi crescendo até a consumação do cisma em 1521.

 

 

5. Conclusão

 

O cisma perdura até nossos dias; é a conseqüência de um proble­ma pessoal, problema de uma personalidade fogosa e temperamental (há quem seja mais severo), que projetou o problema e sua falsa solução no mundo de sua época. A nação alemã aproveitou-se da rebeldia de Lutero para desabafar suas tendências anti-romanas, que haviam carac­terizado a política dos Imperadores germânicos durante a Idade Média. O ambiente predisposto pela política contra Roma favoreceu o cisma de Lutero, que tem sido visto pelos alemães não somente como figura religi­osa, mas também -  e muito -  como porta-voz das reivindicações da na­ção germânica do século XVI.

 

Atualmente verifica-se que as circunstâncias que levaram ao cis­ma, estão ultrapassadas; donde se pode crer que a dissidência luterana poderá ser superada, de algum modo, em favor de fraterna reaproximação. A doutrina luterana é, como dito, a expressão de um problema pessoal de Lutero apavorado, problema que o reformador resolveu a seu modo, tranqüilizando-se por uma re-leitura tendenciosa das epístolas de São Paulo. Tal solução foi lançada ao público como sendo a autêntica moda­lidade de entender o Cristianismo. Deste problema pessoal de Lutero originou-se o protestantismo, que é uma forma mais suave de se viver o Evangelho, mas uma forma subjetiva, concebida por Martinho Lutero apavorado para Martinho Lutero. Verdade é que a época de Lutero (pri­meiras décadas do século XVI) foi um período infeliz na história da Igreja Católica, cujas mazelas podiam provocar críticas e censuras, mas não fundamentavam uma ruptura ou um cisma chefiado por um homem mui­to religioso, mas pouco equilibrado como foi Lutero.

 

O cisma vai sendo, hoje em dia, revisto por luteranos e católicos, de tal modo que se têm realizado sessões de estudos reunindo as duas partes; destes colóquios tem resultado consentimento sobre pontos im­portantes relativos à justificação, consentimento que se espera vá mais e mais progredindo. A propósito ver as pp. 463s deste fascículo.

 
A bibliografia sobre Lutero é imensa, ora justificando, ora critican­do o reformador. Entre as várias obras publicadas, citamos RICARDO GARCIA-VILLOS LADA, Martin Lutero, vols. 1 e II. BAC, Madrid. 1976.


[1] 1 A Weimarer Ausgabe (edição de Weimar) é a edição das obras de Lutéro efetuada em Weimar a partir de 1883. São 94 volumes, tidos como a edição mais completa e exata dos escritos de Lutero. Será citada como WA.
[2] Sc. amor a Deus.
[3] Sc. da salvação
[4] Sc. amor a Deus
[5] Sc. para este fim.
[6] Isto é, sua aceitação
[7] Isto é, sua aceitação
[8] Comissário era o incumbido da pregação de indulgências, no caso, Alberto de Mogúncia
[9] Cf. tese 6.
[10] Sc. nas igrejas
[11] Sc. de Deus
[12] Referência a Marco Licínio Crasso, protótipo do homem rico na Antigüidade
[13] Cf. teses 36 e 37
[14] Nas cartas de indulgência constavam as seguintes palavras: “Uma vez na vida e
em caso de morte”.