segunda-feira, 29 de maio de 2023

O INÍCIO DA IGREJA

 

 

Este domingo é uma grande festa missionária. Marca a transformação da Igreja de uma seita judaica a uma comunidade universal, missionária, mas não proselitista, comprometida com a construção do Reino de Deus "até os confins da terra". A liturgia deste final de semana nos apresenta a descida do Espírito Santo sobre a comunidade dos discípulos, em duas tradições: a de Lucas (Atos 2,1-11) e de João (João 20, 19-23).


Atos – O livro “Atos dos Apóstolos” descreve o dia de Pentecostes, quando os discípulos estavam reunidos. De repente, veio do céu um barulho como se fosse uma forte ventania, que encheu a casa onde eles se encontravam. Então apareceram línguas como de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Todos ficaram cheios de Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os inspirava.

Evangelho – O Evangelho de João descreve o anoitecer, o primeiro da semana, quando estavam reunidos com as portas fechadas, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: "A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio. Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos".


Diferença – Uma leitura fundamentalista da bíblia leva a gente a um beco sem saída, pois em João, a Ressurreição, a Ascensão e a descida do Espírito se deram no mesmo dia (Páscoa), enquanto Lucas separa os três eventos, num período de cinqüenta dias. Assim devemos ler os textos dentro dos interesses teológicos dos diversos autores: os 40 dias de Lucas, por exemplo, entre a Ressurreição e a Ascensão, correspondem aos 40 dias da preparação de Jesus no deserto, para a sua missão. Pois como Jesus ficou "repleto do Espírito Santo" e se lançou na sua missão "com a força do Espírito", a comunidade cristã se preparou durante o mesmo período, e na festa judaica de Pentecostes também experimentou que "todos ficaram repletos do Espírito Santo".

 

Shalom – O "Shalom" é a paz que vem da presença de Deus, da justiça do Reino. Como disse o Papa Paulo VI "A justiça é o novo nome da paz!". Jesus não promete a paz do comodismo, mas, pelo contrário, envia os seus discípulos na missão árdua em favor do Reino e promete o shalom, pois ele nunca abandonará a quem procura viver na fidelidade o projeto de Deus. Jesus soprou sobre os discípulos, como Deus fez sobre Adão (é o mesmo termo) quando infundiu nele o espírito de vida; Jesus os recria com o Espírito Santo.

 

Reino – Que a celebração nos anime para que busquemos a criação de um mundo onde o Shalom realmente possa reinar; não a paz falsa da opressão e injustiça, mas, do Reino de Deus, fruto de justiça, solidariedade e fraternidade. Jesus nos deu o Espírito Santo – agora depende de nós usarmos essa força que temos, na construção do mundo que Deus quer.

sábado, 20 de maio de 2023

A ASCENSÃO DE JESUS ACONTECEU NO DIA DA PÁSCOA OU 40 DIAS DEPOIS?

  


Neste domingo celebramos a Festa da Ascensão de Jesus. Os textos bíblicos que serão lidos nas missas apresentam uma contradição nas datas: enquanto o Evangelho de Lucas apresenta a ressurreição e a ascensão próprio dia de Páscoa, o livro Atos dos Apóstolos descreve a ascensão 40 dias após. Vejamos os textos.

 Crise – A primeira leitura (At 1,1-11), das missas deste domingo tirada do livro dos “Atos dos Apóstolos” (escrito por Lucas), dirige-se a comunidades que vivem num certo contexto de crise. O texto foi escrito na década de 80, cerca de cinquenta anos após a morte de Jesus. Passou já a fase da expectativa pela vinda iminente do Cristo glorioso para instaurar o “Reino” e há certa desilusão. As questões doutrinais trazem alguma confusão; a monotonia favorece uma vida cristã pouco comprometida; falta o entusiasmo e o empenho… O quadro geral é o de certo sentimento de frustração, porque o mundo continua igual e a esperada intervenção vitoriosa de Deus continua adiada. Quando vai concretizar-se, de forma plena e inequívoca, o projeto salvador de Deus?

40 dias – No versículo 3 (At 1,3) Lucas descreve a ascensão de Jesus, fazendo referência aos “quarenta dias” que mediaram entre a ressurreição e a ascensão, durante os quais Jesus falou aos discípulos “a respeito do Reino de Deus”. O número quarenta é, certamente, um número simbólico: é o número que define o tempo necessário para que um discípulo possa aprender e repetir as lições do mestre. Aqui define, portanto, o tempo simbólico de iniciação ao ensinamento do Ressuscitado.

 Evangelho – No Evangelho das missas deste domingo (Lc 24,46-53) o mesmo autor (Lucas) situa-nos no dia de Páscoa. No capítulo 24, ele descreve que Jesus se manifestou aos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) e aos onze, reunidos no cenáculo (Lc 24,36-43). No texto que nos é proposto nas missas, apresentam-se as últimas instruções de Jesus (Lc 24,44-49), depois Jesus levou os discípulos até Betânia e, erguendo as mãos, abençoou-os. Enquanto os abençoava, afastou-Se deles e foi elevado ao Céu (Lc 24,50-53).

 Contradição – Notem que, o mesmo autor (Lucas), em seus dois livros (Evangelho e Atos dos Apóstolos) descreve a ascensão de Jesus com as mesmas instruções em datas diferentes: no Evangelho a ascensão aconteceu no dia da Páscoa e “mandou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai” (Lc 24,49); no livro Atos dos Apóstolos, a ascensão aconteceu 40 dias após a Páscoa, com a instrução "permanecei na cidade, até que sejais revestidos da força do alto” (Lc 1,3-4).

 Qual o correto? – Do ponto de vista teológico, o mais correto seria ressurreição, aparições de Jesus ressuscitado aos discípulos e ascensão colocados no mesmo dia, pois a ressurreição e ascensão não se podem diferenciar; são apenas formas humanas de falar da passagem da morte à vida definitiva junto de Deus. O Catecismo da Igreja Católica (659) descreve que “durante os quarenta dias em que vai comer e beber familiarmente com os discípulos e instruí-los sobre o Reino, a sua glória fica ainda velada sob as aparências duma humanidade normal. A última aparição de Jesus termina com a entrada irreversível da sua humanidade na glória divina, simbolizada pela nuvem e pelo céu.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

A EXPANSÃO CRISTÃ: FILIPE NA SAMARIA

 

A Primeira Leitura das missas deste domingo (Atos 8) descreve Filipe pregando em uma cidade da Samaria. Quando os Apóstolos que estavam em Jerusalém ouviram dizer que a Samaria recebera a palavra de Deus, enviaram para lá Pedro e João. Quando chegaram, rezaram pelos samaritanos, para que recebessem o Espírito Santo.

 Igreja primitiva – Durante os primeiros anos, o cristianismo praticamente não saiu de Jerusalém: os primeiros sete capítulos do livro dos Atos dos Apóstolos apresentam-nos a Igreja de Jerusalém e o testemunho dado pelos primeiros cristãos no espaço restrito da cidade.

 Perseguição – Por volta do ano 35 (Jesus morreu em abril do ano 30), com a morte do discípulo Estevão, desencadeou-se uma perseguição contra os membros da comunidade cristã de Jerusalém. É interessante observar que esta perseguição não afetou igualmente todos os membros da comunidade (pois os apóstolos continuaram em Jerusalém), mas dirigiu-se, de forma especial, contra os judeu-helenistas do círculo de Estêvão. Estes, inconformados com a morte de Estevão, deixaram Jerusalém e espalharam-se pelas outras regiões da Palestina. Tratou-se de um fato providencial, que permitiu a difusão do Evangelho pelas outras regiões palestinas.

 Explicando – No judaísmo do tempo de Cristo (e dos primeiros discípulos) haviam dois grupos de judeus: um oriundo da própria Palestina, chamados de cristãos “hebreus”, falavam aramaico, e mantinham uma fidelidade à Lei e ao judaísmo; e outro, os judeus helenistas (como Estêvão) originários de fora da Palestina e falavam grego. Os "helenistas" eram vistos com certo preconceito pelos judeus da Palestina, pois eles não eram praticantes assíduos de todos os preceitos judaicos.

 Filipe – A primeira leitura deste domingo fala-nos de Filipe – não é o apóstolo Filipe, mas um dos sete diáconos, do mesmo grupo do mártir Estêvão (At 6,1-7) – que, deixando Jerusalém foi anunciar o Evangelho aos habitantes da região central da Palestina, a Samaria. É curioso que a difusão do Evangelho fora de Jerusalém ocorra, precisamente, na Samaria. A Samaria era, para os judeus, uma terra praticamente pagã. Os judeus desprezavam os samaritanos por serem uma mistura de sangue israelita com estrangeiros e consideravam-nos hereges em relação à pureza da fé judaica.

 O texto – O texto da Primeira Leitura divide-se em duas partes: na primeira parte (vers. 5-8), temos um sumário que resume a atuação de Filipe entre os samaritanos. Filipe pregava “o Messias”, isto é, apresentava aos samaritanos Jesus Cristo e a sua proposta de salvação e de libertação. Na segunda parte (vers. 14-17), Lucas refere a chegada à Samaria dos apóstolos Pedro e João. Quando a comunidade cristã de Jerusalém soube que a Samaria tinha já acolhido a mensagem de Jesus, enviou para lá Pedro e João para complementar a pregação. Lucas não diz qual a reação de Pedro e João ao constatarem o avanço do Evangelho; apenas refere que os samaritanos, apesar de batizados, ainda não tinham recebido o Espírito Santo.

 Que significa isto? – Provavelmente, significa que a adesão dos samaritanos ao Evangelho era superficial, talvez mais motivada pelos gestos espetaculares que acompanhavam a pregação de Filipe, do que por uma convicção bem fundada. Logo que chegaram, Pedro e João impuseram as mãos aos samaritanos, a fim de que também eles recebessem o Espírito. O Espírito aparece, aqui, como o selo que comprova a pertença dos samaritanos à Igreja de Jesus Cristo.

 QUER SABER MAIS: Se você gostou do assunto e quer saber mais sobre os judeus-helenistas e a primeira expansão cristã, nós podemos lhe oferecer os textos (em Português): “Os grupos dos helenistas em atos” da Editora Paulinas; “Os Judeus Helenistas e a Primeira Expansão Cristã”, tese de doutorado de Monica Selvatici; “Quem são os helenistas”, texto de Luiz da Rosa; “A importância do helenismo no pensamento do Apóstolo Paulo”, artigo de Isidoro Mazzarolo.

RESSUSCITOU ... CONFORME AS ESCRITURAS

  


Todas as vezes que participamos de uma missa, ao rezar a Profissão de Fé, nós dizemos: “Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as escrituras, e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai”. Por que a oração diz “conforme as escrituras”?

 Escrituras – O texto da Profissão de Fé quer deixar claro que todos os livros do Novo Testamento proclamam a ressurreição de Jesus. Os 4 Evangelhos detalham a Paixão, morte e enterro de Jesus na sexta-feira (7 de abril do ano 30), o sábado da Páscoa dos judeus e a ressurreição (túmulo vazio) no domingo (9 de abril). O texto “conforme as escrituras” documenta que todos os livros do N.T. confirmam um único fato.

 Problema – Se nós fizermos a leitura da 1ª Carta de São Paulo aos Coríntios, encontraremos o seguinte texto: “Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras; ele foi sepultado, ressuscitou no terceiro dia, conforme as Escrituras; apareceu a Pedro e depois aos doze” (1Cor 15, 3-4). (Lembrar que Paulo cometeu um engano, pois eram “onze”). O problema está em quais “Escrituras” Paulo está se referindo, pois, o Novo Testamento ainda não existia.

 Novo Testamento – Nos cursos bíblicos que ministramos, deixamos claro que o primeiro documento do Novo Testamento é a Carta de Paulo aos Tessalonicenses, escrita entre 49 e 51 d.C. A Carta aos Coríntios é datada de 55-56 d.C. Os Evangelhos foram escritos 20 anos depois: Marcos (67-70 d.C. em Roma), Lucas (70-80 d.C.), Mateus (70-80 d.C.) e João (por volta do ano 100 d.C.). Se não haviam documentos nem os Evangelhos, a quais “Escrituras” Paulo estava se referindo?

 Antigo Testamento – Certamente que Paulo estava se referindo aos livros judaicos. Ele era judeu e se orgulhava de ter sido educado pelo rabino Gamaliel (líder dentre as autoridades do Sinédrio de meados do século I, reconhecido mestre e Doutor da Lei). Paulo se apresentava como: “Eu sou judeu, nasci em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade, e instruí-me aos pés de Gamaliel conforme o rigor da Lei de nossos pais, sendo zeloso para com Deus” (At 22,3). Portanto, Paulo conhecia, detalhadamente os livros dos judeus.

 Quais eram os livros judaicos? – Conforme Flavio Josefo, escritor e historiador do primeiro século, antes de 70 d.C., os judeus se utilizavam de apenas 22 livros.  Eis o texto: “Porque nós [judeus] não temos uma imensidão inumerável de livros que discordam e se contradizem entre si (como os gregos têm), mas apenas vinte e dois livros: ... cinco pertencem a Moisés, ... os profetas escreveram 13 livros ... os outros 4 livros contêm hinos e preceitos para a conduta humana”. Portanto seriam: os 5 livros da Lei (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), os 13 livros proféticos (talvez Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias, Neemias, Jó, Crônicas, Daniel, Ester, Josué, Ruth, Samuel, Reis) e, 4 livros de hinos (talvez Salmos, Provérbios, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes).

 As “Escrituras” de Paulo – Existem duas referências nos livros judaicos, que Paulo poderia estar se referindo na Carta aos Coríntios: o livro do profeta Oseias: “Depois de dois dias ele nos dará vida novamente; ao terceiro dia nos restaurará, para que vivamos em sua presença” (Os 6, 2). Também pode estar se referindo ao livro de Jonas, quando Jonas ficou na barriga do grande peixe por três dias e três noites antes de ser solto e, em uma espécie de sentido simbólico, voltou dos mortos (Jonas 2). O próprio Jesus cita esta passagem nos Evangelhos comparando sua morte e ressurreição ao “sinal de Jonas” (Mt 12, 39–41).

 QUER SABER MAIS: Se você gostou do assunto e quer saber mais, podemos lhe oferecer os textos citados: o livro “Obra completa de Flavius Josephus” que contém o livro “Against Apion”” de Flavio Josefo (1627 pág. em Português, ver livro 1, 8); a apostila “Formação do Novo Testamento” e um “Mapa Bíblico do Século I”, usados no Curso Bíblico da Paróquia São Judas Tadeu e São Dimas. Solicite por E-mail.