quarta-feira, 31 de março de 2021

Qual a distância que Jesus carregou a cruz?

 


Na leitura da Paixão de Cristo, todos os cristãos ficam impressionados com o sofrimento de Jesus ao carregar a cruz. Vamos detalhar o que aconteceu.

 Condenação – Jesus foi condenado à morte por crucificação pelo Tribunal Romano, na Fortaleza Antônia, próxima ao Templo. Para iniciar a caminhada até o monte Gólgota (ou monte Calvário), a chamada “Via Crucis”, os três condenados (Jesus e os dois ladrões) foram preparados para carregar as cruzes.

 A cruz – A Cruz é um antigo instrumento bárbaro de suplício, usado por vários povos para executar os condenados a morte. Era constituída de duas partes: uma haste vertical de aproximadamente 3,5 metros de comprimento, denominada “estipe”, que era cravada a um metro de profundidade no local da crucificação. A parte horizontal da cruz, uma haste chamada “patíbulo”, tinha cerca de 2,20 metros de comprimento e pesava aproximadamente 35 quilos. Os condenados transportavam somente o patíbulo nas costas, o que causava graves ferimentos na nuca, e os estipes ficavam fixadas no monte Calvário, aguardando a chegada dos condenados. Portanto, não são reais as representações artísticas de Jesus carregando as duas partes da cruz (estipe e patíbulo).

 Crucificação – Chegando no monte Calvário, colocavam o "patíbulo" no chão e deitavam o réu sobre ele, fixando os seus pulsos. A seguir, com forquilhas de madeira, levantavam o patíbulo (com o crucificado), fixando-o no estipe. Cabe lembrar que nenhum dos quatro Evangelhos menciona que Jesus tenha sido fixado na cruz com pregos (ou cravos). O mais comum no Império Romano era amarrar os pés e as mãos do crucificado com cordas. A indicação de que Jesus teria sido pregado na cruz vem da descrição da aparição de Jesus aos apóstolos (Jo 20,25), quando se fala em sinais deixados pelos pregos.

 

Tipos de cruzes – Havia vários tipos de cruzes para a crucificação. A mais usada era a “cruz comissa” (crux commissa), em que o patíbulo era colocado sobre o estipe, formando um “T”. Na crucificação de Jesus foi usada a cruz imissa (crux immissa), em que uma parte do estipe fica acima do patíbulo, onde havia espaço para uma inscrição (Mt 27.37).

 Via crucis A cidade de Jerusalém foi destruída durante a Guerra Judaica (66 a 73 d.C.). Na atualidade, é muito difícil estabelecer um trajeto preciso, por onde Jesus passou com a cruz, até o monte Calvário. O traçado das ruas é bastante diferente da época da ocupação Romana de Jerusalém. Se considerarmos que Jesus saiu da Fortaleza Antônia, passou pelo portão de Damasco para chegar ao Calvário, hoje, a distância seria de 595 metros. Alguns autores fixam esta distância, no tempo de Jesus, entre 500 e 600 metros.

 Não é bem assim – Mas Jesus não carregou a cruz em todo o percurso. De acordo com os Evangelhos Sinóticos, Simão de Cirene foi obrigado pelos soldados romanos a carregar a cruz de Jesus Cristo até o Gólgota (Mt 27, 32; Mc 15, 22; Lc 23, 26). O Evangelho de João nega o episódio, dando ênfase à ideia de que Jesus teria carregado a cruz sozinho até o monte. De acordo com os evangelistas Marcos e Lucas, Simão era oriundo de Cirene, cidade do Norte de África (atual Líbia), distante 1.200 km de Jerusalém. Simão era pai de Alexandre e Rufo (Marcos 15, 21), sendo representado como um negro ao ser identificado com o Simão de At 13,1. Rufo teria seguido os apóstolos, sendo citado por Paulo em Rom 16,13. Alexandre teria repudiado a pregação do Evangelho (1Tim 1,19-20; 2Tim 4,14).

 Quantos metros? – Como não sabemos em que ponto do trajeto houve o encontro com Simão, vamos supor que Jesus carregou a cruz até o portão de Damasco. Neste local, onde havia uma maior concentração de pessoas, Jesus caiu pela segunda vez, fazendo parar o cortejo. Neste ponto, os soldados convocaram a ajuda de Simão (Cirineu). Com esta suposição, Jesus teria carregado a cruz entre 400 e 450 metros, deixando o restante do percurso até o Calvário (150 a 200 metros) para Simão.

 QUER SABER MAIS – Se você gostou do assunto e quer saber mais, podemos lhe oferecer mapas da cidade de Jerusalém no tempo de Jesus, com os possíveis trajetos da “Via Crucis”. Solicite por E-mail.

sábado, 20 de março de 2021

COMO QUE O GALO CANTOU, SE EM JERUSALÉM NÃO HAVIA GALOS?

  


Estamos na Quaresma, e daqui a duas semanas estaremos lendo a Paixão de Cristo. Todos devem se lembrar que, após a terceira negação de Pedro o galo cantou: ‘“Homem, não sei de que estás falando!’ E, enquanto ainda falava, o galo cantou” Lc 22,60). Como isto pode ter acontecido, se os judeus eram proibidos de criar galos nas cidades?

 Pedro? – Na leitura da Paixão, uma das frases mais surpreendentes de Jesus é o anúncio das negações de Pedro: “Pedro, eu te digo que hoje, antes que o galo cante, três vezes negarás que me conheces” (Lc 22,34). Como poderia isso acontecer? Ainda mais com Pedro, o apóstolo mais próximo de Jesus e o homem que mais demonstrou a sua fé no Messias (Mt 16,16 - “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”). Mas, com certeza, as negações de Pedro aconteceram, pois são relatadas nos quatro Evangelhos (Mt 26,34, 69-75; Mc 14,30, 66-72; Lc 22,34, 54-62; Jo 13,38; 18,15-18).

 Onde foi? – Uma pergunta importante para esta história é “onde ocorreram as negações de Pedro?”. A resposta é detalhada nos Evangelhos (Mateus 26,57; Marcos 14,53; Lucas 22,54): após a Última Ceia, Jesus foi para uma propriedade chamada Getsêmani, onde foi preso e levado para a casa do Sumo Sacerdote Anás. A casa do Sumo Sacerdote estava no centro de Jerusalém, próxima à Fortaleza Antonia (onde estava Pilatos) e ao Templo. Pedro acompanhou Jesus. Enquanto Jesus era interrogado no interior da casa, Pedro ficou no pátio, junto com os soldados.

 Galos em Jerusalém? – Um fato intrigante complica esta história. A Mishná (texto da tradição oral judaica, considerada a obra mais importante do judaísmo rabínico, é chamada de Torá Oral) é bem clara: os judeus não podem criar galos em Jerusalém por causa das Coisas Santas, nem os sacerdotes podem criá-los em qualquer lugar na Terra de Israel. O tratado Baba Kama (primeiro de uma série de três tratados talmúdicos, que lidam com matéria civil, tais como danos e delitos) também proíbe a criação de qualquer tipo de galináceo nas cidades.

 Questão – Como poderia um galo ter cantado, se Pedro estava com Jesus na casa de Anás, no centro de Jerusalém onde, certamente, não haveria um galinheiro? Sendo assim, será que houve um “galo” que literalmente, “cantou” no contexto da negação de Pedro?

 Solução – A resposta está no Evangelho de Marcos (Mc 13, 35-36): “Vigiai, portanto, porque não sabeis quando o senhor da casa voltará: à tarde, à meia-noite, ao canto do galo, ou de manhã, para que, vindo de repente, não vos encontre dormindo”. Para entender isso, é importante ter em conta que os romanos dividiam os dias em períodos de três em três horas. Lembrem que Jesus foi crucificado na sexta hora (meio dia) e morreu na nona hora (três horas da tarde).

 Vigília – À noite, os períodos de três horas eram chamados de vigílias. A primeira vigília da noite começava às 18h00 e ia até às 21h00; a segunda das 21h00 à meia-noite; a terceira da meia-noite às 3h00 da madrugada; e a quarta das 3h00 até às 6h00 da manhã. Cada período era marcado pelo toque da trombeta. Acontece que os judeus se expressavam de forma abreviada quando se referiam a essas vigílias da noite. Assim (como em Mc 13,35), a palavra “tarde” se referia ao fim da primeira vigília (21h00); “meia-noite” indicava o fim da segunda vigília; “Canto do galo” era o termo usado por eles para o fim da terceira vigília (3h00); e “de manhã” era o modo como se referiam ao fim da quarta vigília (6h00).

 Não era uma ave – Quando Jesus diz, em Lc 22,34, “Pedro, eu te digo que hoje, antes que o galo cante, três vezes negarás que me conheces”, ele estava fazendo menção ao fim da terceira vigília. Seria o mesmo de dizer: “Pedro, eu te digo que hoje, antes das três horas da madrugada, três vezes negarás que me conheces”. Portanto, este “cantar do galo” não era uma referência ao som emitido pela ave “galo”, mas sim uma alusão ao toque da trombeta, conhecido em latim como gallicinium.

 QUER LER MAIS – Se você gostou do assunto e quer conhecer detalhes sobre o “canto do galo”, podemos lhe enviar um estudo completo (19 páginas em português). Solicite por E-mail.

sábado, 13 de março de 2021

São Longuinho: o soldado que perfurou Jesus com a lança

 


 Estamos na Quaresma e daqui a duas semanas faremos a leitura da Paixão de Cristo. Todos os cristãos devem se lembrar que, ao retirar o corpo de Jesus da cruz, um soldado perfurou Jesus com uma lança e sangue e água verteram do seu lado (Jo 19, 34). Vamos detalhar o que aconteceu.

 Via Crucis – Após a condenação de Jesus à morte, por crucificação (na Fortaleza Antônia), foi designado um soldado (centurião), chamado Longinus, para comandar a caminhada dos três condenados até o local da crucificação (monte Gólgota ou Calvário).

 Após a morte – Como era uma tarde de sexta-feira, véspera da Páscoa, os judeus pediram a Pilatos para que mandasse quebrar as pernas dos crucificados. Desta forma, a morte seria mais rápida e eles poderiam ser tirados da cruz antes do sábado. Os soldados quebraram as pernas dos dois ladrões, mas, chegando a Jesus, viram que estava morto. Por isso, não lhe quebraram as pernas; entretanto, para comprovar o óbito, um soldado golpeou-o o lado com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água (Jo 19,31-34). Este soldado é identificado com Longinus.

 Cura – A Tradição diz que essa água que saiu do lado de Cristo, respingou em Longinus e ele ficou curado de um problema que tinha nos olhos. Longinus também é identificado como o soldado que reconheceu Jesus como "Verdadeiramente este homem era Filho de Deus", logo após a morte do Mestre. Ele é citado pelos evangelistas São Mateus 27,54, São Lucas 23,47 e São Marcos 15,39.

 Conversão – Tocado pela graça de Deus, ele se converteu, passou a acreditar em Jesus, e abandonou o exército romano. São Longuinho é uma prova do poder do amor e da misericórdia de Deus. Jesus mudou a vida de um soldado que o matava.

 Perseguido – Após abandonar o exército romano por causa de sua conversão, Longinus fugiu para Cesárea e Capadócia (hoje Turquia). Mas foi descoberto pelo Governador da Capadócia e denunciado a Pôncio Pilatos. No processo, foi acusado de desertor e condenado a pena de morte. Se ele renunciasse à sua fé em Jesus Cristo seria perdoado. Mas ele se manteve firme e não renegou Jesus Cristo. Por isso, foi torturado, teve seus dentes arrancados e sua língua cortada. Depois, foi decapitado. O soldado que ajudara a crucificação e morte de Jesus, tempos depois dava sua vida por causa do mesmo Senhor.

 Lendas – Conta-se que Longinus era um soldado de baixa estatura que servia na alta corte de Roma antes de ser destacado para servir na Palestina. Servindo na corte de Roma, ele vivia nas festas dos romanos. Por causa de sua baixa estatura, ele conseguia ver tudo o que se passava por baixo das mesas. Com isso ele achava vários pertences das pessoas e sempre devolvia os achados para seus donos. Daí surgiu sua fama de bom soldado e de sempre encontrar coisas perdidas.

 Canonização – Longinus foi canonizado pelo Papa Silvestre II, quase mil anos depois, no ano de 999. O processo de canonização já tinha caminhado bastante conforme os trâmites exigidos pela Igreja. Porém, vários documentos que faziam parte do processo, ficaram perdidos ao longo de anos. Então, o Papa pediu a intercessão do próprio Longinus para que o ajudasse a encontrar os documentos perdidos. E aconteceu que, pouco tempo depois, os documentos foram encontrados e a canonização aconteceu conforme a lei da Igreja manda que seja.

 De Longinus para São Longuinho – Por causa da fama do soldado Longinus, espalhou-se a devoção de se rezar para São Longuinho pedindo para ele ajudar a encontrar objetos perdidos. No Brasil há uma crença popular de que São Longuinho auxilia a encontrar objetos perdidos. É só repetir: “São Longuinho, São Longuinho, se eu achar (nome do objeto perdido) dou três pulinhos. Quando a pessoa encontra o objeto precisa cumprir a promessa em devoção ao santo. O importante é a fé e o belíssimo testemunho de vida de São Longuinho. Sua festa é comemorada no dia 15 de março.

 Quer saber mais? – O Evangelho apócrifo de Nicodemus apresenta vários detalhes sobre a crucificação. Se você se interessa pelo assunto, solicite pelo E-mail.

sábado, 6 de março de 2021

Dez ou doze Mandamentos?

  


Na missa deste domingo será lido o livro do Êxodo que apresenta os Dez Mandamentos. Vamos ver como surgiram:

 Não foi bem assim – A Bíblia narra que Moisés recebeu os Dez Mandamentos no Monte Sinai e depois os entregou ao povo numa solene cerimônia. Mas, se os analisamos cuidadosamente, vemos que, na realidade, eles parecem não corresponder à época de Moisés, época de peregrinação pelo deserto e de vida nômade.

 Fora de época – Que sentido tem, por exemplo, proibir de desejar a “casa” do próximo, quando eles, como peregrinos, ainda não habitavam em casas, mas sim em tendas? Somente na Terra Prometida é que edificaram casas. O mandamento de não levantar falso testemunho supõe que já existissem tribunais, juízes e processos legais, coisa impossível durante a travessia do deserto. E quando se ordena descansar no sábado, se declara: “não trabalharás nem tu, nem teu escravo, nem tua escrava”; mas, como poderiam ter escravos, se todos eles eram escravos recém-saídos do Egito?

 Posterior – Isso fez os biblistas pensarem que os dez mandamentos pertenceriam mais apropriadamente a uma época posterior à de Moisés, quando o povo já estava instalado em Canaã, organizado com normas morais e jurídicas adequadas a uma época mais moderna. Foi provavelmente elaborada na época dos juízes, cerca de 1100 a.C., cento e cinquenta anos depois da morte de Moisés. Com o tempo, essa lista assumiu tanta importância entre os hebreus que começaram a atribuí-la a Moisés.

 Dez ou doze? – A Bíblia ensina claramente que os mandamentos são dez (Dt 4,13; 10,4), mas quando os contamos, aparecem doze: 1. Não terás outros deuses além de mim (Êx 20,3); 2. Não farás para ti ídolos, nem figura alguma (v. 4); 3. Não te prostrarás diante deles, nem lhes prestarás culto (v. 5); 4. Não pronunciarás o nome de Deus em vão (v. 7); 5. Lembra-te de santificar o dia do sábado (v. 8); 6. Honra teu pai e tua mãe (v. 12); 7. Não matarás (v. 13); 8. Não cometerás adultério (v. 14); 9. Não furtarás (v. 15); 10. Não levantarás falso testemunho contra o próximo (v. 16); 11. Não cobiçarás a casa de teu próximo (v. 17a); 12. Não cobiçarás a mulher de teu próximo (v.17b).

 Catecismo – A partir do século XVI, quando começaram a ser divulgados os catecismos populares, viu-se a necessidade de fazer as pessoas memorizarem os dez mandamentos como exame de consciência para a confissão e como incentivo para a vida espiritual. A Igreja, pois, resolveu elaborar um novo Decálogo para o catecismo, melhorando-o com aquilo que Cristo tinha superado do Antigo Testamento, da mesma forma que tinham sido supressos da vida cristã os sacrifícios de animais do Antigo

 Nova lista – Na nova lista suprimiu-se do primeiro mandamento o “não terás outros deuses...” e foi formulado de modo mais positivo e mais perfeito: “Amar a Deus sobre todas as coisas”. O segundo, o das imagens, foi eliminado, pois seu significado era o mesmo que o do anterior: não cair no culto de coisas que substituem a Deus. Seu lugar foi ocupado pelo mandamento que seguia, o de não tomar o nome de Deus em vão. Do terceiro, santificar um dia da semana em memória do Senhor, só foi modificado o dia. Em vez do sábado impôs-se o domingo, por causa da ressurreição de Cristo. O sexto proibia o adultério, ou seja, tomar uma mulher casada. Mas não estava proibido unir-se a qualquer mulher solteira. A Igreja o converteu em proibição mais profunda e exigente de “não fornicar”, ou seja, proibiu a relação com qualquer mulher que não fosse sua própria esposa. O sétimo, “não roubarás”, que na linguagem bíblica referia-se ao seqüestro de uma pessoa, converteu-se no mais genérico de “não furtar”, que incluía todo tipo de propriedade. O oitavo aludia exclusivamente a não levantar falso testemunho nos julgamentos. Por isso se lhe acrescentou “nem mentir”, para adaptá-lo a qualquer outra circunstância da vida. Finalmente, o décimo, que ordenava não desejar a mulher nem aos demais pertences do próximo, foi desdobrado em dois: o nono, referido em primeiro lugar e somente à mulher e o décimo sobre os demais bens do homem.

 QUER SABER MAIS? – Se você gostou do assunto e quer saber mais, podemos lhe oferecer um texto “Os doze Mandamentos” (10 páginas) escrito pelo teólogo “Ariel Álvarez Valdés”. Solicite pelo E-mail.

Deus pode pedir um crime como culto?

 


 A primeira leitura das missas deste domingo apresenta uma das histórias mais corajosas da Bíblia: aquela em que Deus pede a Abraão que mate seu filho Isaac e ofereça-o a ele como um sacrifício.

 

O texto – De acordo com Gênesis (22,1-19), uma noite Deus apareceu a Abraão e, para testá-lo, ele disse: “Toma teu filho único, Isaac, a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá e oferece-o ali em holocausto”. (Holocausto: sacrificá-lo cortando-o e queimando-o totalmente).

 

Obediente – Sem dizer uma palavra, Abraão levantou-se no início da manhã e foi para a região que Deus indicou. Ao chegar no lugar, Abraão construiu um altar, amarrou e colocou no altar seu filho Isaac. Mas quando ele levantou a mão com a faca para sacrificá-lo, um anjo do céu gritou: "Abraão, Abraão, não machuca o filho. Agora eu sei que você é respeitoso com Deus e que não me negou seu único filho ". Olhando para cima, Abraão viu um carneiro enrolado por chifres em um mato. Ele tomou e sacrificou em vez de seu filho, e ambos voltaram para casa.

 

Escândalo – Muitos cristãos, ao ler este capítulo da Bíblia, não podem deixar de se sentir escandalizados. Alguns até se rebelam contra Deus. Como ele poderia pedir a Abraão, um pobre velho com uma esposa estéril, para matar o único filho? Apenas para provar sua fidelidade? Um crime pode ser um dever sagrado para Deus?

 

A Exegese – Esta primeira leitura faz parte de um bloco de textos a que se dá o nome genérico de “tradições patriarcais” (Gn 12-36). Esses capítulos tomam mitos, lendas, e antigas histórias sobre os clãs nômades que circularam pela palestina e apresentam aos israelitas como modelo de vida e fé.

 

Origem – O relato do sacrifício de Isaac (Gn 22) é uma “lenda cultual” (culto a um deus). Nasceu, provavelmente, num santuário do sul do país, muito antes de os patriarcas bíblicos se terem instalado na região. A lenda primitiva contava como num lugar sagrado, o deus aí adorado tinha salvo uma criança destinada a ser oferecida em sacrifício (no mundo dos cananeus, os sacrifícios humanos eram relativamente frequentes). A partir daí, nesse lugar, os sacrifícios de crianças tinham sido substituídos por sacrifícios de animais. Foi essa a primeira etapa da tradição que nos é hoje proposta.

 

Abraão – Numa segunda fase, esta história primitiva foi aplicada à figura de Abraão, quando o clã de Abraão se instalou na região. O pai cananeu da primitiva história, que levava o filho para ser oferecido em sacrifício, foi identificado com o patriarca Abraão. A tradição acabou por englobar um clã ligado ao de Abraão, o clã de Isaac. Isaac tornou-se, assim, o filho destinado ao sacrifício de que falava a velha lenda pré-israelita.

 

Lenda virou Catequese – Numa terceira fase, os teólogos elohistas (séc. VIII a.C.) pegaram a antiga lenda cultual e puseram-na ao serviço da sua catequese. Na reflexão dos catequistas de Israel, a antiga lenda tornou-se uma catequese sobre uma “prova” em que o justo Abraão manifestou a sua obediência radical e a sua confiança em Elohim.

 

Elohistas e Yahistas – A tradição elohista é uma das fontes de redação do livro do Gênesis. É denominada elohista porque denomina o seu Deus de Elohim. A outra fonte é a yahvista, que denomina o Deus de Yahvé. Por esta razão que aparecem duas descrições de criação do mundo no livro do Gênesis: a primeira (Yahista), Deus cria o mundo em sete dias, começando pela luz e terminando pelo homem; na segunda (Elohista) Deus cria o homem do barro e lhe dá a vida com um sopro.

 

No Gênesis – Por fim, um redator pós-elohista acrescentou ao texto outros elementos de caráter teológico. Foi, certamente, ele que ligou a lenda do sacrifício de Isaac com o monte santo dos sacrifícios do Templo de Jerusalém; foi ele, também, que acrescentou à história a ideia de que o comportamento de Abraão para com Deus mereceu uma recompensa e que essa recompensa iria, no futuro, derramar-se sobre todos os descendentes de Abraão.

 

QUER SABER MAIS? – Se você gostou do texto e que saber mais podemos lhe oferecer dois textos escritos por um teólogo católico: “Por que Deus ordenou que Abraão matar seu filho?” (5 páginas) e “O mundo foi criado duas vezes?” (5 páginas). Solicite por E-mail.