sábado, 26 de maio de 2012

O Início da Igreja

Este domingo é uma grande festa missionária. Marca a transformação da Igreja de uma seita judaica a uma comunidade universal, missionária, mas não proselitista, comprometida com a construção do Reino de Deus "até os confins da terra". A liturgia deste final de semana nos apresenta a descida do Espírito Santo sobre a comunidade dos discípulos, em duas tradições: a de Lucas (Atos 2,1-11) e de João (João 20, 19-23).

Atos – O livro “Atos dos Apóstolos” descreve o dia de Pentecostes, quando os discípulos estavam reunidos. De repente, veio do céu um barulho como se fosse uma forte ventania, que encheu a casa onde eles se encontravam. Então apareceram línguas como de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Todos ficaram cheios de Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os inspirava.

Evangelho – O Evangelho de João descreve o anoitecer, o primeiro da semana, quando estavam reunidos com as portas fechadas, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: "A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio. Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos".

Diferença – Uma leitura fundamentalista da bíblia nos leva a um beco sem saída, pois, em João, a Ressurreição, a Ascensão e a descida do Espírito se deram no mesmo dia (Páscoa), enquanto o evangelista Lucas separa os três eventos em um período de cinquenta dias. Assim, devemos ler os textos dentro dos interesses teológicos dos diversos autores: os 40 dias de Lucas, por exemplo, entre a Ressurreição e a Ascensão, correspondem aos 40 dias da preparação de Jesus no deserto, para a sua missão. Da mesma maneira como Jesus ficou "repleto do Espírito Santo" e se lançou na sua missão "com a força do Espírito", a comunidade cristã se preparou durante o mesmo período e na festa judaica de Pentecostes também experimentou que "todos ficaram repletos do Espírito Santo".
 

Lucas – Em Atos, o relato é mais apocalíptico e missionário. Nos primeiros versículos, o ambiente onde os discípulos se reuniram é uma casa. Atos dos Apóstolos nos faz lembrar que estavam reunidos três grupos distintos: os Onze, as mulheres (entre as quais Maria, a mãe de Jesus) e os “irmãos” do Senhor. Lucas usa imagens apocalípticas, símbolos da teofania ou da manifestação da presença de Deus: o som de um vendaval e as línguas de fogo. A expressão externa da descida do Espírito é o "falar em outras línguas" (e não o "falar em línguas" – glossolalia – tão valorizado por muitos grupos de cunho neopentecostal). 

Ainda Lucas – Na segunda descrição, muda o enfoque. O ambiente muda – da casa para um lugar público, provavelmente o pátio do Templo. O sinal visível da presença do Espírito não é mais o “falar em outras línguas”, mas o fato de que todos os presentes pudessem "ouvir, na sua própria língua, os discípulos falarem". O termo "ouvir" aqui implica também, "compreender". Por três vezes, o relato destaca o fato de os presentes poderem "ouvir" em sua própria língua. Com isso, Lucas quer enfatizar que o dom do Espírito Santo tem um objetivo missionário e profético. O texto é uma releitura da Torre de Babel, onde a língua única era o instrumento de um projeto de dominação (uma torre até o céu), que foi destruído por Deus, pela diversidade de línguas.  

João – No Evangelho de João é o próprio Jesus quem aparece aos Apóstolos. Não há reprovação nem queixa nas suas palavras, apesar da infidelidade de todos eles, mas, somente a alegria e a paz que já tinha prometido no último discurso. Por duas vezes, Jesus proclama o seu desejo para a comunidade dos seus discípulos: "A paz esteja com vocês". O nosso termo "paz" procura traduzir – embora de uma maneira inadequada – o termo hebraico "Shalom!", que é muito mais do que "paz" conforme o nosso mundo a compreende. 

Shalom – O "Shalom" é a paz que vem da presença de Deus, da justiça do Reino. Como disse o Papa Paulo VI, "A justiça é o novo nome da paz!". Jesus não promete a paz do comodismo, pelo contrário, envia os seus discípulos na missão árdua em favor do Reino e promete o shalom, pois este nunca abandonará a quem procura viver na fidelidade o projeto de Deus. Jesus soprou sobre os discípulos, como Deus fez sobre Adão (é o mesmo termo) quando infundiu nele o espírito de vida; Jesus os recria com o Espírito Santo. 

Igreja – Normalmente, imaginamos o Espírito Santo descendo sobre os discípulos em Pentecostes, mas, aquela era a descida oficial e pública do Espírito para dirigir a missão da Igreja no mundo. Para João, o dom do Espírito, que da sua natureza é invisível, flui da glorificação de Jesus, da sua volta ao Pai. O dom do Espírito neste texto tem a ver com o perdão dos pecados. 

Reino – Que a celebração deste domingo nos anime a ir em busca da criação de um mundo onde o Shalom realmente possa reinar; não a paz falsa da opressão e injustiça, mas, do Reino de Deus, fruto de justiça, solidariedade e fraternidade. Jesus nos deu o Espírito Santo – agora depende de nós usarmos essa Força que temos, na construção do mundo que Deus quer.

sábado, 19 de maio de 2012

As aparições de Cristo Ressuscitado

No Evangelho deste domingo (Mc 16,15-20), Jesus aparece aos Doze apóstolos com a seguinte mensagem: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura. Quem acreditar e for batizado será salvo; mas quem não acreditar será condenado. Eis os milagres que acompanharão os que acreditarem: expulsarão os demônios em meu nome; falarão novas línguas; se pegarem em serpentes ou beberem veneno, não sofrerão nenhum mal; e quando impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados”. Depois de ter dito isso, foi elevado ao Céu e sentou-Se à direita de Deus. 

Aparições – Esta foi uma das aparições de Jesus. Você sabe dizer quantas vezes Jesus apareceu para as pessoas? Mas, primeiro, nós temos que definir o que é aparição. 

O que é aparição? – A resposta foi orientada pela afirmação de Lucas em At 1,3: "É a eles que Jesus se apresentava vivo após a sua Paixão; tiveram mais de uma prova disso, enquanto, durante quarenta dias, Ele lhes aparecera e mantivera conversação com eles sobre o Reino de Deus". Portanto, foram consideradas as aparições em que Jesus conversou, respondeu perguntas, comeu, instruiu, foi tocado; estas aparições aconteceram nos 40 dias seguintes a sua Paixão, ou seja, entre os dias 7 de abril e 17 de maio do ano 30. Após a ascensão aos céus, ocorreram apenas visões, expressadas de diversas formas (clarão de luz, em sonho, etc.). 

Pegue sua bíblia e confira – Foram 11 aparições (nove nos Evangelhos e duas nas cartas de São Paulo). Note que uma mesma aparição pode ser descrita por mais de um livro do Novo Testamento. 

Descritas nos Evangelhos: 

1- a Madalena e às mulheres no túmulo no domingo - Mt 28,9-11; Jo 20,13-18; Mc 16,9-11;

2- aos 11 apóstolos na montanha da Galileia - Mt 28,16-20; Mc 16,15 (talvez 1Cor 15,5);

3- aos dois discípulos de Emaús - Lc 24,13-35; Mc 16,12;

4- aos 11 apóstolos em Jerusalém durante uma refeição – Lc 24,36-43; Mc 16,14; At 1,4-5; At 10,41 (talvez 1Cor 15,5);

5- aos discípulos sem Tomé - Jo 20,19-23 (talvez 1Cor 15,5);

6- aos discípulos com Tomé - Jo 20,24-29; (talvez 1Cor 15,5);

7- à margem do lago de Tiberíades, quando comeu peixe - Jo 21,1-23 (talvez At 10,41);

8- a Simão - Lc 24,34; 1 Cor 15,5;

9- na ascensão aos céus, em Betânia - Lc 24,50-53; Mc 16,19; At 1,8


Descritas nas cartas de Paulo: 

10- a mais de quinhentas pessoas - 1Cor 15,6;

11- a Tiago - 1Cor 15,7; 

Algumas Visões (não consideradas como aparições):

1- Visão de Paulo no caminho para Damasco no ano 37 – At 9,3; At 22,6; At 26, 12; 1Cor 15,8; 1Cor 9,1; Gal 1,12;

2- A visão de Ananias no ano 37 – At 9, 10-16;

3- A visão de Paulo no Templo em Jerusalém em abril do ano 58 – At 22,18;

4- Outra visão de Paulo em Jerusalém em abril do ano 58 – At 23, 11;

5- A visão de João citada em Ap 1,9s, escrito entre os anos 95 e 100. 

Algumas observações – As citações em Mt 28,5; Mc 16,5; Lc 24,4 são apenas aparições de anjos.

sábado, 12 de maio de 2012

O “dever” de amar

O Evangelho deste domingo (Jo 15, 9-17) situa-nos, outra vez, em Jerusalém, numa noite de Quinta-feira do mês de Nisan, do ano trinta. A festa da Páscoa está muito próxima e a cidade está cheia de forasteiros. Jesus também está na cidade com o seu grupo de discípulos. A morte na cruz já é uma ameaça real e Jesus está plenamente consciente disso. Os discípulos também já perceberam que estão vivendo um momento decisivo e que, nas próximas horas, Jesus vai ser tirado deles. 

Despedida – É nesse contexto que podemos situar a última ceia de Jesus com os discípulos. Trata-se de uma “ceia de despedida” e tudo o que aí é dito por Jesus soa a “testamento final”… Jesus sabe que vai partir para o Pai e que os discípulos ficarão no mundo, continuando e testemunhando o projeto do “Reino”. Nesse momento de despedida, as palavras de Jesus recordam aos discípulos o essencial da mensagem e apresentam as grandes coordenadas desse projeto que eles devem continuar a concretizar no mundo. 

Para uma reflexão deste Evangelho, reproduzimos o comentário do padre Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia do Vaticano. 

Amor – “Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei... O que vos mando é que vos ameis uns aos outros”. O amor, um mandamento? Pode-se fazer do amor um mandamento sem destruí-lo? Que relação pode haver entre amor e dever, dado que um representa a espontaneidade e o outro a obrigação? 

Mandamentos – Deve-se saber que existem dois tipos de mandamentos. Existe um mandamento ou uma obrigação, que vem do exterior, de uma vontade diferente à minha, e um mandamento ou obrigação que vem de dentro e que nasce da mesma coisa. A pedra que se lança ao ar ou a maçã que cai da árvore estão “obrigadas” a cair, não podem fazer outra coisa; não porque alguém imponha isso, mas porque nelas há uma força interior de gravidade que as atrai para o centro da Terra. 

Leis – De igual forma, há dois grandes modos segundo os quais o homem pode ser induzido a fazer ou não determinada coisa: por constrição ou por atração. A lei e os mandamentos ordinários o induzem do primeiro modo: por constrição, com a ameaça do castigo; o amor, o induz do segundo modo: por atração, por um impulso interior. Cada pessoa, com efeito, é atraída pelo que ama, sem que sofra constrição alguma do exterior. Mostre a uma criança um brinquedo e a você a verá lançar-se para agarrá-lo. O que a impulsiona? Ninguém; é atraída pelo objeto de seu desejo. Ensina um Bem a uma alma sedenta de verdade e se lançará para ele. Quem a impulsiona? Ninguém; é atraída por seu desejo. 

Mandamento do amor? Mas se é assim, isto é, se somos atraídos espontaneamente pelo bem e pela verdade que é Deus, que necessidade haveria de fazer deste amor um mandamento e um dever? É que, rodeados como estamos de outros bens, corremos o perigo de errar, de estender falsos bens e perder assim o Sumo Bem. Como uma nave espacial dirigida para o Sol deve seguir certas regras, para não cair na esfera da gravidade de algum planeta ou satélite intermediário, nós, igualmente [devemos ter algumas regras] ao tender para Deus. Os mandamentos, começando pelo “primeiro e maior de todos”, que é o de amar a Deus, servem para isto. 

Dever – Tudo isso tem um impacto direto, também, na vida e no amor humano. Cada vez são mais numerosos os jovens que rejeitam a instituição do matrimônio e elegem o chamado amor livre ou a simples convivência. O matrimônio é uma instituição; uma vez contraído, liga, obriga a ser fiel e a amar o companheiro para toda a vida. Mas que necessidade tem o amor, que é instinto, espontaneidade, impulso vital, de transformar-se em um dever? 

Sempre – O filósofo Kierkegaard dá uma resposta convincente: “Só quando existe o dever de amar, só então o amor está garantido para sempre contra qualquer alteração; eternamente liberado em feliz independência; assegurado em eterna bem-aventurança contra qualquer desespero”. Quer dizer: o homem que ama verdadeiramente quer amar para sempre. O amor necessita ter como horizonte a eternidade; se não, não é mais que uma brincadeira, um “amável mal-entendido” ou um “perigoso passatempo”. Por isso, quanto mais intensamente o homem ama, mais percebe com angústia o perigo que corre o seu amor, o perigo que não vem de outros, mas dele mesmo. Bem sabe que é volúvel e que amanhã, ai! Poder-se-ia cansar e não amar mais. E já que, agora que está no amor, vê com clareza a perda irreparável que isto comportaria, eis aqui que se previne, “vinculando-se” a amar para sempre. O dever subtrai o amor da volubilidade e o ancora à eternidade. Quem ama é feliz de “dever” amar, parece-lhe o mandamento mais belo e libertador do mundo.

sábado, 5 de maio de 2012

Jesus, a videira

O Evangelho do 5º domingo da Páscoa situa-nos em Jerusalém, numa noite de quinta-feira, um dia antes da festa da Páscoa do ano 30. Jesus está reunido com os seus discípulos à volta de uma mesa, numa ceia de despedida. Ele está consciente de que os dirigentes judaicos decidiram dar-Lhe a morte e que a cruz está no seu horizonte próximo. 

Nova Aliança – Os gestos e as palavras de Jesus, neste contexto, representam as suas últimas indicações, o seu “testamento”. Os discípulos recebem aqui as coordenadas para poderem continuar no mundo a missão de Jesus. Nasce, assim, a comunidade da Nova Aliança, alicerçada no serviço (Jo 13,1-17) e no amor (Jo 13,33-35), que pratica as obras de Jesus animada pelo Espírito Santo (Jo 14,15-26).  

Videira – Durante a reunião com os apóstolos (liturgia deste domingo), Jesus apresenta uma autoproclamação, na qual diz ser, ele próprio, a videira verdadeira. 

Autoproclamações – As autoproclamações de divindades já eram encontradas nas tradições religiosas da cultura egípcia. No Antigo Testamento a divindade se revelara a Moisés com o nome: "Eu Sou". No Evangelho de João são inúmeras as autoproclamações de Jesus: eu sou... o pão da vida, o pão descido do céu, a luz do mundo, a porta das ovelhas, o bom pastor, a ressurreição, o caminho, a verdade e a vida, a videira.  

Videira – Neste domingo, o evangelho apresenta mais uma autoproclamação de Jesus na qual diz ser, ele próprio, a videira verdadeira. Enquanto o Deus de Moisés permanecia invisível e nas alturas, agindo a distância, as autoproclamações do evangelho de João revelam Jesus como sendo Deus intimamente presente no mundo, convivendo com as pessoas, relacionando-se de maneira simples e comum com homens, mulheres e crianças. 

Poda da parreira – Com esta última autoproclamação, Jesus acentua a íntima relação que existe entre seus discípulos e ele. A imagem usada é a da videira, cujo cultivo era comum nas civilizações antigas em vista da produção do vinho. A poda dos ramos nos quais não brotaram frutos, a fim de fortalecerem os ramos carregados, era uma prática comum no seu cultivo.  

Israel – A simbologia da videira é muito usada no Antigo Testamento, representando o povo de Israel. Jesus lhe dá um novo sentido. Todos, sem discriminações de raça, religião ou condição social, em todos os tempos, são seus ramos. É a perspectiva universalista do dom do amor divino e da vida eterna.  

Ramos – Aos ramos cabe dar os frutos. Os ramos sem frutos serão separados da videira. Podemos perceber estes ramos sem frutos em Atos dos Apóstolos (primeira leitura), naqueles judeus de língua grega que rejeitavam a pregação de Paulo e procuravam matá-lo. O ramo que dá fruto é limpo para que dê mais frutos ainda. O ramo unido à videira é o discípulo que permanece em Jesus e Jesus, nele. É o ramo que é tornado limpo pela acolhida e prática da palavra de Jesus. 

Comunhão – A íntima inserção dos ramos ao tronco da videira é uma sugestiva imagem da permanência dos discípulos em Jesus. O verbo "permanecer" aparece oito vezes no texto. O permanecer em Jesus significa permanecer em comunhão de amor com o próximo e com Deus, já participando da vida eterna. Na Primeira Carta de João (segunda leitura) é destacado que, quem vive o mandamento de amor, permanece em Deus e Deus permanece nele, o que significa a participação em sua vida divina e eterna. 

Comunidade – A comunidade unida, em comunhão com Jesus e praticando sua palavra, tem como fundamento de sua oração pedir que seja feita a vontade do Pai. E o Pai é glorificado pela comunidade que dá frutos de amor, no empenho em remover a injustiça do mundo e promover a vida para todos.