sábado, 20 de março de 2010

Atire a primeira pedra


No Evangelho das missas deste domingo (Jo 8,1-11), Jesus é questionado pelos judeus sobre uma mulher surpreendida em adultério.

 

Pegadinha – A Lei judaica prescrevia a pena de morte por apedrejamento para a mulher (Dt 22,23-24) e a lei romana tinha retirado dos judeus o direito de condenar alguém a morte. Portanto, se Jesus dissesse que ela deveria ser apedrejada, ele contrariaria a lei civil dos romanos; se ele negasse esta pena, estaria contra a lei religiosa mosaica. É uma cilada semelhante ao dilema sobre o imposto a César. Que eles não se interessavam pela Lei, fica claro pelo fato de só acusarem a mulher e não o seu parceiro! Uma atitude machista tão comum ainda na nossa sociedade...

 

Homem e mulher – Conforme a tradição da Torá, a pena de morte devia ser aplicada quando um homem cometia adultério com a mulher de outro homem, e os dois adúlteros deviam morrer (Lv 20,10). Entretanto, um homem casado poderia adulterar com uma mulher solteira, sem preocupar-se com a honra de sua esposa. Como o adultério implica parceria, deveriam ter trazido a Jesus tanto a mulher casada como o homem que adulterou com ela.

 

Misericórdia – Após a observação de Jesus (“Quem de vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra”), todos renunciam a apedrejá-la. Santo Agostinho (354-430) assim comenta essa passagem: "Retiraram-se todos, um após outro. Só ficaram duas: a miserável e a Misericórdia. Mas o Senhor, depois de tê-los derrubado com o vigor da justiça, não se dignou ficar olhando a queda deles; afastando o seu olhar, ‘baixou-se de novo para desenhar traços no chão’. Quando aquela mulher ficou sozinha, depois de todos os outros se terem ido embora, levantou os olhos para ela. Ouvimos a voz da justiça, ouçamos também a da bondade....” (“Vai e não tornes a pecar”).

 

Discriminação – Nas palavras de João Paulo II, “Jesus entra na situação concreta e histórica da mulher, situação sobre a qual pesa a herança do pecado. Esta herança exprime-se, entre outras coisas, no costume que discrimina a mulher em favor do homem, e está enraizada também dentro dela. Deste ponto de vista, o episódio da mulher ‘surpreendida em adultério’ (Jo 8, 3-11) parece ser particularmente eloquente. No fim Jesus lhe diz: ‘não tornes a pecar’; mas, primeiro ele desperta a consciência do pecado nos homens... Jesus parece dizer aos acusadores: esta mulher, com todo o seu pecado, não é talvez também, e antes de tudo, uma confirmação das vossas transgressões, da vossa injustiça ‘masculina’, dos vossos abusos?”

 

Mulher – E continua o Papa: “Esta é uma verdade válida para todo o gênero humano... Uma mulher é deixada só, é exposta diante da opinião pública com ‘o seu pecado’, enquanto por detrás deste ‘seu’ pecado se esconde um homem como pecador, culpado pelo ‘pecado do outro’, antes, co-responsável do mesmo. E, no entanto, o seu pecado escapa à atenção, passa sob silêncio... Quantas vezes a mulher paga pelo próprio pecado, mas paga ela só, e paga sozinha! Quantas vezes ela fica abandonada na sua maternidade, quando o homem, pai da criança, não quer aceitar a sua responsabilidade? E ao lado das numerosas ‘mães solteiras’ das nossas sociedades, é preciso tomar em consideração também todas aquelas que, muitas vezes, sofrendo diversas pressões, inclusive da parte do homem culpado, ‘se livram’ da criança antes do seu nascimento. ‘Livram-se’: mas a que preço?”

 

Pecado – Jesus não procura abrandar o pecado ou desculpabilizar o comportamento da mulher. Ele sabe que o pecado não é um caminho aceitável, pois gera infelicidade e rouba a paz… No entanto, também não aceita pactuar com uma Lei que, em nome de Deus, gera morte: os esquemas de Deus são diferentes dos esquemas da Lei. Convida os acusadores a tomar consciência de que o pecado é uma consequência dos nossos limites e fragilidades e que Deus entende isso: “quem de vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra”.

 

Caminho novo – Sua postura convida que os acusadores da mulher interiorizem a lógica de Deus – a lógica da tolerância e da compreensão. Quando os escribas e fariseus se retiram, Jesus nem sequer pergunta à mulher se ela está ou não arrependida: convida-a, apenas, a seguir um caminho novo, de liberdade e de paz (“vai e não tornes a pecar”). A lógica de Deus não é uma lógica de morte, mas uma lógica de vida; a proposta que Deus faz aos homens através de Jesus não passa pela eliminação dos que erram, mas por um convite à vida nova, à conversão, à transformação, à libertação de tudo o que oprime e escraviza; e destruir ou matar em nome de Deus ou em nome de qualquer moral é uma ofensa inqualificável a esse Deus da vida e do amor, que apenas quer a realização plena do homem.

 

Homem novo – O episódio põe em relevo, por outro lado, a intransigência e a hipocrisia do homem, sempre disposto a julgar e a condenar… os outros. Jesus denuncia aqui, a lógica daqueles que se sentem perfeitos e auto-suficientes, sem reconhecerem que estamos todos a caminho e que, enquanto caminhamos, somos imperfeitos e limitados. É preciso reconhecer, com humildade e simplicidade, que necessitamos todos da ajuda do amor e da misericórdia de Deus para chegar à vida plena do Homem Novo. A única atitude que faz sentido, neste esquema, é assumir para com os nossos irmãos a tolerância e a misericórdia que Deus tem para com todos os homens.

 

“O Senhor é bom, o Senhor é lento na cólera, o Senhor é misericordioso, mas o Senhor também é justo e cheio de verdade (Sl 85,15). Concede-te o tempo para te corrigires, mas preferes gozar esse tempo mais do que mudares de vida. Foste mau ontem, sê bom hoje; passaste este dia no mal, pelo menos amanhã muda a tua conduta” (Santo Agostinho).

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