sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Amarás a teu próximo


No Evangelho das missas deste domingo, Mateus (22,34-40) descreve mais uma discussão entre Jesus e os fariseus. Para testá-lo perguntam: "Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?". Jesus responde: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento e amarás teu próximo como a ti mesmo”. Para reflexão deste Evangelho, reproduzimos o comentário do padre Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia de Roma.

Espelho – “Amarás teu próximo como a ti mesmo”. Acrescentando as palavras “como a ti mesmo”, Jesus nos pôs diante de um espelho ao que não podemos mentir; deu-nos uma medida infalível para descobrir se amamos ou não o próximo. Sabemos muito bem, em cada circunstância, o que significa amar-nos a nós mesmos e o que queríamos que os outros fizessem por nós. Jesus não diz, se se presta bem atenção: “o que o outro faz a ti, faça a ele”. Isto seria a lei do talião: “Olho por olho, dente por dente”. Diz: o que tu queres que o outro te faça, faça tu a ele (Mt 7, 12), que é bem diferente.

Mandamento – Jesus considerava o amor ao próximo como “seu mandamento”, aquele no qual se resume toda a Lei. “Este é meu mandamento: que vos ameis uns aos outros assim como eu vos amei” (Jo 15, 12). Muitos identificam todo o cristianismo com o preceito do amor ao próximo, e não carecem de razão. Mas devemos tentar ir um pouco mais além da superfície das coisas. Quando se fala de amor ao próximo, a mente vai em seguida às “obras” de caridade, às coisas que há que fazer pelo próximo: dar-lhe de comer, de beber, visitá-lo; em resumo, ajudar o próximo. Mas isto é um efeito do amor, não é ainda o amor. Antes da beneficência vem a benevolência, antes que fazer o bem, vem o querer bem.

Pureza – A caridade deve ser “sem fingimento”, isto é, sincera (literalmente “sem hipocrisia”, Rm 12, 9); deve-se amar “com coração puro” (1 Pd 1,22). Pode-se de fato fazer a caridade e a esmola por muitos motivos que nada têm a ver com o amor: para admoestar-se, para passar por benfeitor, para ganhar o paraíso, até por remorsos de consciência.

Caridade – Muita caridade que fazemos a países do Terceiro Mundo não está ditada pelo amor, mas por remorso. Damo-nos conta da escandalosa diferença que existe entre nós e eles e nos sentimos em parte responsáveis por sua miséria. Pode-se carecer de caridade inclusive ao “fazer caridade”! Seria um erro fatal contrapor entre si o amor do coração e da caridade dos fatos, ou refugiar-se nas boas disposições interiores para os demais para encontrar nisso uma desculpa à própria falta de caridade ativa e concreta.

Obras – Se encontras um pobre faminto e tremendo de frio, dizia São Tiago, de que lhe serve se lhe diz: “Pobrezinho, vê, acalenta-te, coma algo!”, mas não lhe dás nada do que necessita? “Filhos”, acrescenta São João, “não amemos de palavra nem de boca, mas com obras e segundo a verdade” (1 Jo 3, 18). Não se trata, portanto, de desvalorizar as obras exteriores de caridade, mas fazer que estas tenham o fundamento em um genuíno sentimento de amor e de benevolência.

Olhar – A caridade do coração ou interior é a caridade que todos podemos exercitar, é universal. Não é uma caridade que alguns – os ricos e os sãos – só podem dar e os outros – os pobres e os enfermos – só receber. Todos podem dá-la e recebê-la. Também é concreta. Trata-se de começar a olhar com olhos novos as situações e as pessoas com as quais vivemos. Que olhos? É simples: os olhos com os quais queríamos que Deus nos olhasse! Olhos de desculpa, de benevolência, de compreensão, de perdão...


Máscara – Quando isto sucede, todas as relações mudam. Caem, como por milagre, todos os motivos de prevenção e hostilidade que impediam de amar a certa pessoa e esta nos começa a aparecer pelo que é na realidade: uma pobre criatura que sofre por suas fraquezas e suas limitações, como tu, como todos. É como se a máscara que os homens e as coisas se puseram caísse e a pessoa aparecesse pelo que verdadeiramente é.

sábado, 18 de outubro de 2014

Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus


No Evangelho das missas deste domingo, Mateus (22,15-21) descreve mais uma discussão entre Jesus e os fariseus.

Pegadinha – Os fariseus se reuniram para criar uma maneira de surpreender Jesus. Foram até Ele e perguntaram se era correto pagar o tributo a César (o Imperador de Roma). Percebendo a malícia, Jesus pediu que lhe mostrassem a moeda. Ao apresentarem uma moeda de um denário, perguntou: “De quem é esta imagem e esta inscrição?” Ao lhe responderem que era de César, Jesus disse: “Então, dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

O texto – Com esse texto, entramos em um bloco de quatro unidades, que apresentam diversas controvérsias entre Jesus e lideranças judaicas diferentes: os fariseus, os herodianos e os saduceus. A discussão do trecho deste domingo talvez seja a mais conhecida, mas muitas vezes tem sido interpretada de maneira errada, projetando sobre Jesus os nossos preconceitos políticos e sociais.

Herodianos – É necessário entender que não se tratava de uma pergunta sincera feita a Jesus, mas, de uma armadilha preparada por membros de dois grupos politicamente opostos e antagônicos: os herodianos (submissos à dominação romana) e os fariseus (muitos dos quais olhavam os herodianos como impuros, pela sua colaboração com o poder estrangeiro).

Cilada – Se Jesus respondesse que era lícito pagar o imposto, correria o risco de ser apresentado pelos fariseus como um opressor do povo. Se Ele negasse, poderia ser denunciado pelos herodianos como subversivo político. Era uma situação semelhante àquela que aparece em João 8, 1-11 (a mulher adúltera), pois qualquer resposta deixaria Jesus em maus lençóis. Como naquela ocasião, Jesus se mostrou verdadeiro Mestre, escapando da cilada e, ainda por cima, oferecendo um ensinamento importante.

A Moeda – Primeiro Ele deixa claro que entendeu a “jogada”: “Hipócritas, por que me armais uma cilada?” Depois, coloca os seus interlocutores contra a parede, pedindo uma moeda do imposto e perguntando: “De quem são esta efígie e esta inscrição?” A inscrição seria “Tibério César Filho do Divino Augusto, Sumo Pontífice” - demonstrando as pretensões de divinização do Império Romano. Com a resposta: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, Jesus joga para os seus ouvintes uma questão essencial: o que é que pertence a César e o que é que pertence a Deus?

Império – A divindade pertence a Deus, não ao Império Romano nem a César. Assim, Ele evita confirmar o projeto nacionalista violento de muitos judeus da sua época e condena também qualquer projeto que divinizasse o poder civil. Uma advertência muito atual para os nossos dias, quando o único poder imperial hegemônico (muito semelhante à situação do Império Romano do tempo de Jesus) reivindica para si o direito de impor as suas decisões sobre todas as nações, taxando de “terrorista” quem discorda da sua dominação ideológica, econômica e militar. O poder civil existe para cuidar do povo – que é de Deus – e não para explorá-lo. Desta forma, Jesus nega as aspirações imperialistas e, evitando uma resposta direta à pergunta, enfatiza e relativiza todo e qualquer poder, pois o verdadeiro poder só pertence a Deus.

Neoliberalismo – Nos nossos dias, ainda existem poderes com as mesmas aspirações dos romanos. Embora não digam abertamente, os defensores do neoliberalismo desenfreado divinizam um sistema ganancioso que só visa o lucro e explora o povo sofrido. As palavras de Jesus nos lembram de que nenhum cristão pode compactuar com qualquer sistema – seja político, econômico ou religioso – que atribua a si o que pertence a Deus.


Dualismo – O texto de forma alguma justifica um dualismo entre o espiritual (de Deus) e o material (de César). Pelo contrário, mostra que o poder político, econômico e religioso deve estar a serviço do bem comum, pois, se não for assim, está roubando o que é de Deus: o seu povo. Não se pode entregar às garras de um poder opressor, seja ele estrangeiro ou nacional, o que pertence ao Pai. O poder é legítimo quando está a serviço da vida e do bem-estar comum; é ilegítimo quando está a serviço somente de uns poucos privilegiados. “Dar a Deus o que é de Deus” não se resume em rituais religiosos; refere-se à construção de uma sociedade solidária, justa e fraterna, na qual todos possam “ter a vida e a vida em abundância” (Jo 10, 10). À medida que lutamos por esse objetivo, estamos dando “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Banquete do Reino


No Evangelho das missas deste domingo (Mt 22,1-14), o evangelista Mateus apresenta a parábola dos convidados para o banquete nupcial.

O Evangelho – Jesus se dirige aos sacerdotes e anciãos do povo e conta a parábola do rei que preparou um banquete nupcial para o seu filho. Mandou chamar os convidados, mas eles não quiseram vir. Chamou todas as pessoas que encontrou, maus e bons, e a sala do banquete encheu-se de convidados. Ao entrar na sala, o rei viu um homem que não estava vestido com o traje nupcial e mandou retira-lo da festa. No final conclui: “Na verdade, muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos”.

Situação – Continuamos em Jerusalém, nos dias que antecedem a Páscoa. Os dirigentes religiosos judeus aumentam a pressão sobre Jesus. Instalados nas suas certezas e seguranças, já decidiram que a proposta de Jesus não vem de Deus; por isso, rejeitam de forma absoluta o Reino que ele anuncia.

Banquete – O “banquete” era, na cultura semita, o lugar do encontro, da comunhão, do estreitamento de laços familiares entre os convivas. Além disso, o “banquete” era também a cerimônia através da qual se confirmava o “status” das pessoas e o seu lugar dentro da escala social. Quem organizava um “banquete” procurava fazer uma seleção cuidadosa dos convidados: a presença de gente “desclassificada” faria descer consideravelmente, aos olhos de toda a comunidade, o “status” da família; e, por outro lado, a presença à mesa de pessoas importantes realçava a importância e a honra da família.

Reino – O sentido da parábola é óbvio… Deus é o rei que convidou Israel para o “banquete” do encontro, da comunhão, da chegada dos tempos messiânicos (as bodas do “filho”). Os sacerdotes, os escribas, os doutores da Lei recusaram o convite e preferiram continuar agarrados aos seus esquemas, aos seus preconceitos, aos seus sistemas de autossalvação. Então, Deus convidou para o “banquete” do Messias esses pecadores e desclassificados que, na perspectiva da teologia oficial, estavam excluídos da comunhão com Deus e do Reino.

Pecadores – Esta parábola explicita bem o cenário em que o próprio Jesus se move… Ele aparece, com frequência, participando de “banquetes” ao lado de gente duvidosa e desclassificada. Os líderes de Israel, no entanto, sempre reprovaram que Jesus mantivesse esse contato com essas pessoas… Para eles, os publicanos e as prostitutas, por exemplo, estavam definitivamente excluídas da comunidade, da salvação. Sentá-los à mesa do “banquete” do Reino era algo que os líderes de Israel achavam absolutamente inapropriado.

Traje – A segunda parte da parábola fala do convidado que se apresentou na festa sem o traje nupcial. O rei que organizou o “banquete” mandou, então, lançá-lo fora da sala onde se realizava a festa. A parábola constitui uma advertência àqueles que aceitaram o convite de Deus para a festa do Reino, aderiram à proposta de Jesus e receberam o Batismo.


Batizados – Mateus escreve no final do século I (anos 80), quando os cristãos já tinham esquecido o entusiasmo inicial e viviam instalados numa fé pouco exigente. Consideravam que já tinham feito uma opção definitiva, ao serem batizados, e que já tinham assegurado a salvação. Mateus diz-lhes: cuidado, porque não basta entrar na sala do “banquete”; é preciso, além disso, vestir um estilo de vida que ponha em prática os ensinamentos de Jesus. Quem foi batizado e aderiu ao “banquete” do Reino, mas recusou o traje do amor, da partilha, do serviço, da misericórdia, do dom da vida e continua vestido de egoísmo, de arrogância, de orgulho, de injustiça, não pode participar na festa do encontro e da comunhão com Deus. Deus chamou todos os homens e mulheres para participarem no “banquete”; mas só serão admitidos aqueles que responderem ao convite e mudarem completamente a sua vida.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O Reino de Deus será entregue a uma nação que produzirá seus frutos


No Evangelho das missas deste domingo (Mateus 21,33-43), Jesus reuniu os sacerdotes e anciãos do povo e contou a parábola da vinha:

Parábola – “Um proprietário plantou uma vinha, arrendou-a a vinhateiros e viajou para o estrangeiro. Quando chegou o tempo da colheita, o proprietário mandou seus empregados aos vinhateiros para receber seus frutos, que foram espancados e mortos. O proprietário mandou mais empregados, que foram mortos da mesma forma. Finalmente, o proprietário enviou-lhes o seu filho (herdeiro), que também foi morto.

Pergunta – Pois bem, quando o dono da vinha voltar, o que fará com esses vinhateiros? Os sumos sacerdotes e os anciãos do povo responderam: ‘Com certeza mandará matar de modo violento esses perversos e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entregarão os frutos no tempo certo’. Então Jesus lhes disse: ‘Por isso, eu vos digo: o Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos’.”

Julgamento final – A parábola de hoje é a segunda numa série de três, referentes ao julgamento final de Deus sobre o seu povo (na semana passada tivemos a parábola dos dois irmãos e, no próximo domingo, a da festa de casamento).

O texto – Com certeza, o texto que lemos nas bíblias atuais é resultado de uma longa história de transmissão oral e redação. Da boca de Jesus, a história visava à sorte da Vinha, terminando no versículo 41; a transmissão oral pré-sinótica concentrou a atenção na sorte do Filho, acrescentando os versículos 42, 43 e 44, tirados do Salmo 117; finalmente, Mateus transforma a parábola numa alegoria da História da Salvação: deixa claro que o advento do novo povo (versículo 41) está ligado ao destino Daquele que fala e que deve ser condenado e morto, para depois ressuscitar.

Alegoria – "Os mensageiros" são os profetas que foram mortos pelo povo de Israel, culminando com Jesus, como o Filho. "O Reino" provavelmente se refere à promessa da benção em plenitude, dos últimos tempos. "O Povo" se refere à Igreja, no caso de Mateus composta principalmente de judeu-cristãos, mas também de gentios convertidos, que juntos formam o Novo Povo de Deus, o verdadeiro Israel. Essa conclusão do versículo 43 é a principal contribuição de Mateus à interpretação da parábola, e é mais suave do que a própria parábola, pois os maus vinhateiros não serão destruídos, mas perderão a promessa.

Promessa – Como o texto de Mateus foi escrito num contexto de polêmica entre a sua comunidade e o judaísmo formativo do fim do primeiro século, ele queria ensinar para a sua comunidade que a promessa antiga feita ao Povo de Deus foi retirada das autoridades farisaicas e das suas comunidades, e dada à comunidade da Igreja.


Frutos – Mas isso não nos dá motivo para comodismo. Como o povo original perdeu a promessa porque "não deu fruto" também a Igreja não a possui de modo incondicional. Também as comunidades cristãs têm que "dar fruto"- os frutos de justiça, fraternidade, solidariedade e partilha. A História da Salvação nos mostra que Deus não se deixa manipular, nem permite que qualquer comunidade ou religião se torne "dona" Dele, e que o seu verdadeiro povo é aquele que se dedica à construção dos valores do Reino de Deus. O texto convida a um sério exame e revisão das nossas práticas e estruturas eclesiais e eclesiásticas, para que a nossa Igreja cristã não chegue a merecer o destino dos vinhateiros, que por não terem correspondido à Aliança, viram a promessa retirada deles e dada a outro povo "que produzirá os seus frutos" (v43).