Estamos na Quaresma, e daqui a três semanas estaremos lendo a
Paixão de Cristo. Todos devem se lembrar que, após a terceira negação de Pedro
o galo cantou: ‘“Homem, não sei de que estás falando!’ E, enquanto ainda
falava, o galo cantou” Lc 22,60). Como isto pode ter acontecido, se os judeus
eram proibidos de criar galos nas cidades?
Pedro? – Na leitura da Paixão, uma
das frases mais surpreendentes de Jesus é o anúncio das negações de Pedro: “Pedro,
eu te digo que hoje, antes que o galo cante, três vezes negarás que me
conheces” (Lc 22,34). Como poderia isso acontecer? Ainda mais com Pedro, o
apóstolo mais próximo de Jesus e o homem que mais demonstrou a sua fé no
Messias (Mt 16,16 - “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”). Mas, com certeza,
as negações de Pedro aconteceram, pois são relatadas nos quatro Evangelhos: nos
sinóticos em Mt 26,34, 69-75; em Mc 14,30, 66-72; e em Lc 22,34, 54-62 como
também Evangelho de João (Jo 13,38; 18,15-18).
Onde foi? – Uma pergunta importante
para esta história é “onde ocorreram as negações de Pedro?”. A resposta é
detalhada nos Evangelhos (Mateus 26,57; Marcos 14,53; Lucas 22,54): após a
Última Ceia, Jesus foi para uma propriedade chamada Getsêmani, onde foi preso e
levado para a casa do Sumo Sacerdote Anás. A casa do Sumo Sacerdote estava no
centro de Jerusalém, próxima à Fortaleza Antonia (onde estava Pilatos) e ao
Templo. Pedro acompanhou Jesus. Enquanto Jesus era interrogado no interior da
casa, Pedro ficou no pátio, junto com os soldados.
Galos em
Jerusalém? –
Um fato intrigante complica esta história. A Mishná (texto da tradição oral
judaica, considerada a obra mais importante do judaísmo rabínico, é chamada de
Torá Oral) é bem clara: os judeus não podem criar galos em Jerusalém por causa
das Coisas Santas, nem os sacerdotes podem criá-los em qualquer lugar na Terra
de Israel. O tratado Baba Kama (primeiro de uma série de três tratados talmúdicos,
que lidam com matéria civil, tais como danos e delitos) também proíbe a criação
de qualquer tipo de galináceo nas cidades.
Questão – Como poderia um galo ter
cantado, se Pedro estava com Jesus na casa de Anás, no centro de Jerusalém
onde, certamente, não haveria um galinheiro? Sendo assim, será que houve um
“galo” que literalmente, “cantou” no contexto da negação de Pedro?
Solução – A resposta está no
Evangelho de Marcos (Mc 13, 35-36): “Vigiai, portanto, porque não sabeis quando
o senhor da casa voltará: à tarde, à meia-noite, ao canto do galo, ou de manhã,
para que, vindo de repente, não vos encontre dormindo”. Para entender isso, é
importante ter em conta que os romanos dividiam os dias em períodos de três em
três horas. Lembrem que Jesus foi crucificado na sexta hora (meio dia) e morreu
na nona hora (três horas da tarde).
Vigília – À noite, os períodos de três horas eram chamados de vigílias. Essas
vigílias, por sua vez, demarcavam períodos de três horas, nos quais funcionava
cada turno do serviço de guarda. A primeira vigília da noite começava às 18h00
e ia até às 21h00; a segunda vigília começava às 21h00 e ia até à meia-noite; a
terceira vigília começava à meia-noite e ia até às 3h00 da madrugada; e a
quarta vigília ia das 3h00 da madrugada até às 6h00 da manhã. Cada período era
marcado pelo toque da trombeta.
Apelidos – Acontece que os judeus se
expressavam de forma abreviada quando se referiam a essas vigílias da noite.
Assim (como em Mc 13,35), a palavra “tarde” se referia ao fim da primeira
vigília (21h00); “meia-noite” indicava o fim da segunda vigília; “Canto do
galo” era o termo usado por eles para o fim da terceira vigília (3h00); e “de
manhã” era o modo como se referiam ao fim da quarta vigília (6h00).
Não era uma
ave – Quando
Jesus diz, em Lc 22,34, “Pedro, eu te digo que hoje, antes que o galo cante,
três vezes negarás que me conheces”, ele estava fazendo menção ao fim da
terceira vigília. Seria o mesmo de dizer: “Pedro, eu te digo que hoje, antes
das três horas da madrugada, três vezes negarás que me conheces”. Portanto,
este “cantar do galo” não era uma referência ao som emitido pela ave “galo”, mas
sim uma alusão ao toque da trombeta, conhecido em latim como gallicinium.
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