A
multiplicação dos pães é descrita duas vezes no Evangelho de Mateus (14,13-21 e
15, 29-39) e no Evangelho de Marcos (6, 34-44 e 8, 1-9). Os outros evangelistas
descrevem o milagre apenas uma vez (Lc 9, 10-17 e Jo 6, 1-14). Por que os
evangelistas repetirem a narração? Ou Jesus teria realizado dois milagres?
Mesmos detalhes – Nas duas narrações são descritos os mesmos detalhes: a) Jesus foi às
margens do lago da Galileia; b) uma grande multidão se reuniu em torno dele; c)
as pessoas ficaram com fome; d) Jesus perguntou onde encontrar comida; e)
disseram que era impossível de obter; f) alguém ofereceu alguns pães e peixes;
g) Jesus fez as pessoas se sentarem no chão; h) tomou o pão, abençoou-o e
distribuiu para a multidão; i) todos comeram e ficaram saciados; j) sobraram várias
cestas de pão.
Um ou dois milagres? – A pergunta dos apóstolos ("Como é que alguém poderia dar-lhes pão
suficiente aqui no deserto? em Mc 8, 4) seria tola, se os discípulos já tivessem
visto Jesus realizar a primeira multiplicação – como não lembrar de outra multidão
alimentada milagrosamente? Portanto, historicamente, deve ter havido um único
milagre dos pães, que se desdobrou em duas versões, como se fossem dois eventos
diferentes.
Por que um milagre e duas narrações? – Os primeiros cristãos viram que a multiplicação dos pães era um prenúncio
da Eucaristia que Jesus celebrou na Última Ceia. No Evangelho de João, depois
da multiplicação, Jesus pede para que as pessoas não fiquem apenas com o pão
que enche o estômago, mas que busquem outro pão, o que dá a vida eterna. Esse
fato, explica o “enigma” das duas narrativas. Vejamos:
Necessidade – O milagre narrado ocorreu em território judeu (Mc 6,32), o que poderia
parecer um convite exclusivo aos judeus para participar na Eucaristia. Assim,
quando os primeiros cristãos começaram a pregar aos pagãos, quiseram deixar
claro que eles também eram chamados a participar da Eucaristia. A maneira encontrada
foi criar uma narração paralela da multiplicação dos pães, realizada em
território pagão (Mc 7,31).
Os números – A primeira multiplicação (para os judeus), se fez com cinco pães (Mc
6,38), número simbólico que representava o Pentateuco, a Lei de Moisés, o
alimento da alma. Na segunda narração (para os pagãos), são sete pães (Mc 8,5),
pois de acordo com o Genesis, haveria 70 nações pagãs no mundo. Na primeira
multiplicação comeram 5.000 pessoas (Mc 6,44), ou seja, 5 (número sagrado
judeu) vezes 1000 (multidão, o povo judeu). Na segunda, comeram 4.000 pessoas
(Mc 8, 9), ou seja, 4 (pontos cardeais da Terra) vezes 1000 (multidão, povos da
Terra). Na primeira multiplicação sobraram 12 cestas (Mc 6,43), representando
as 12 tribos de Israel; na segunda, sobraram sete cestos (Mc 8,8), porque 70 eram
as nações pagãs.
Pessoas – Na primeira narrativa, as pessoas vieram de cidades vizinhas (Mc 6,33),
representando o povo judeu mais perto de Jesus. Na segunda, as pessoas vieram
"de longe" (Mc 8,3), ou seja, das nações pagãs longe do judaísmo. Na
primeira, as pessoas reuniram-se em grupos de 100 e 50 pessoas para comer (Mc
6,40), como fizera o povo de Israel, no deserto (Ex 18, 25, Dt 1,15). Na
segunda, as pessoas se organizaram espontaneamente, representando a liberdade das
nações pagãs.
Pastor esperado – Na primeira narrativa, Jesus sente pena "porque eram como ovelhas
sem pastor" (Mc 6, 34), referência à profecia de Ezequiel (Ez 34,5-6.13).
Na segunda, sente pena "porque estavam três dias sem comer" (Mc 8, 2),
indicando que até os pagãos são amados e cuidados por Deus. No primeiro
milagre, as pessoas se sentam "sobre a grama verde" (Mc 6,39), uma
alusão ao Salmo 22, bem conhecido dos judeus. No entanto, no segundo milagre as
pessoas se sentam "sobre a terra" (Mc 8,6), simbolizando o mundo inteiro,
de onde vieram os pagãos.
Palavras – No primeiro texto, as sobras foram coletadas em doze " kófinos " (Mc 6,43), cestos de
vime usados pelos judeus. No segundo, foram sete "spyrís" (Mc 8,8), vaso de cordas usados pelos pagãos. Nos dois
textos, Jesus tomou os pães e "deu graças" (Mc 6,41 e Mc 8,6), o que
significa bendizer a Deus pela comida antes de comer. No texto para os judeus é
usada a palavra euloguéin (usada no
círculo familiar judaico), enquanto no texto pagão usou-se eujaristéin (usada no ambiente grego).
Concluindo – Jesus realizou o milagre da multiplicação dos pães às margens do lago da Galileia,
após um longo dia de pregação com os judeus das regiões vizinhas. Com a
consciência de que Jesus era o Messias esperado, aquele milagre adquiriu enorme
importância, pois tornou-se uma antecipação da celebração da Eucaristia. A
necessidade de levar o Evangelho a outros povos gerou a segunda narração, uma
cena que não existiu historicamente, mas que reflete perfeitamente a vontade de
Jesus: que ninguém fique longe do Pão, do seu amor, de sua amizade. Hoje este
continua a ser o sonho de nossa Igreja: que aqueles que estão confusos,
alienados e desorientados venham para a comunidade cristã e se sintam
confortáveis nela, sem ser marginalizado ou rejeitado, para que Jesus possa ser
o Pão repartido.
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