sábado, 23 de fevereiro de 2008

A Samaritana Pecadora

 

No Evangelho deste domingo, o evangelista João descreve uma catequese usada no final do primeiro século. Ele conta o encontro de Jesus com uma mulher da Samaria, em um poço na cidade samaritana de Sicar. A Samaria era a região central da Palestina: uma região heterodoxa, habitada por uma raça de sangue misturado (de judeus e pagãos) e de uma religião que misturava ritos e crenças.

 Samaritanos – Na época de Jesus existia uma animosidade muito viva entre samaritanos e judeus. Historicamente, a divisão começou quando os assírios invadiram a Samaria e deportaram cerca de 4% da população samaritana. Os colonos assírios, então, se instalaram na região e se misturaram com a população local. Na visão dos judeus, os habitantes da Samaria começaram nesse momento a paganizar-se (2 Re 17,29). A relação entre as duas comunidades deteriorou-se ainda mais quando, passados quase trezentos anos, os judeus retornaram do exílio e recusaram a ajuda dos samaritanos (Esd 4,1-5) para reconstruir o Templo de Jerusalém e denunciaram os casamentos mistos.

 Templo – Assim, os judeus tiveram que enfrentar a oposição dos samaritanos na reconstrução da cidade (Ne 3,33-4,17). Cem anos depois, novo elemento de separação: os samaritanos construíram um Templo no monte Garizim, que foi destruído duzentos anos depois por João Hircano. Mais tarde, os desentendimentos continuaram: o mais famoso aconteceu por volta do ano 6 d.C., quando os samaritanos profanaram o Templo de Jerusalém durante a festa da Páscoa, espalhando ossos humanos nos átrios.

 Desprezo – Os judeus desprezavam os samaritanos por serem uma mistura de sangue israelita com estrangeiros e consideravam-nos hereges em relação à pureza da fé. Os samaritanos pagavam aos judeus com um desprezo semelhante.

 O poço – A cena que João descreve passa-se em volta do “poço de Jacob”, situado no vale entre os montes Ebal e Garizim, perto da cidade samaritana de Siquém (em aramaico, Sicara – a atual Askar). Trata-se de um poço estreito, aberto na rocha calcária, cuja profundidade ultrapassa os 30 metros. Segundo a tradição, ele teria sido aberto pelo patriarca Jacob. Os dados arqueológicos revelam que ele serviu os samaritanos entre o ano 1000 a.C. e o ano 500 d.C. (embora ainda hoje se possa extrair água dele).

 Os sinais – O evangelista utiliza “personagens” para compor a sua história. A mulher representa a Samaria, que procura desesperadamente a água capaz de matar a sua sede de vida plena. Jesus vai ao encontro da “mulher”.

 Mais sinais – O “poço” representa a Lei, o sistema religioso à volta do qual se conformava a experiência religiosa dos samaritanos. Era nesse “poço” que os samaritanos procuravam a água da vida plena. Mas, os próprios samaritanos tinham reconhecido a insuficiência do “poço” da Lei e haviam buscado a vida plena noutras propostas religiosas. Os “cinco maridos” que a mulher já teve representam os cinco deuses dos samaritanos (2 Re 17,29-41).

 Água Viva – Estamos, pois, diante de um quadro que representa a busca da vida plena. Onde encontrar essa vida? Na Lei? Noutros deuses? É aqui que entra a novidade de Jesus. Ele senta-se “junto do poço”, como se pretendesse ocupar o seu lugar; e propõe à mulher/Samaria uma “água viva”, que matará definitivamente a sua sede de vida eterna. Jesus passa a ser o “novo poço”, onde todos os que têm sede de vida plena encontrarão resposta para a sua sede.

 Proposta de vida – Jesus tem para oferecer a “água do Espírito”, que no Evangelho de João é o grande dom de Jesus. A mulher/Samaria fica confusa, não sabendo escolher entre o caminho dos samaritanos ou dos judeus. No entanto, Jesus nega que se trate de escolher entre um caminho ou outro: não é no Templo de pedra de Jerusalém ou no Templo de pedra do monte Garizim que Deus está… O que se trata é de acolher à novidade do próprio Jesus, aderir a Ele e aceitar a sua proposta de vida.

 Resposta – A mulher/Samaria responde à proposta de Jesus abandonando o cântaro (agora inútil), e corre a anunciar aos habitantes da cidade o desafio que Jesus lhe faz. O texto fala, ainda, sobre a adesão entusiástica de todos os que tomam conhecimento da proposta de Jesus e a “confissão da fé”: Jesus é reconhecido como “o salvador do mundo” – isto é, como Aquele que dá ao homem a vida plena e definitiva (vers. 28-41).

 Missão de Jesus – O texto deixa claro que Jesus quer comunicar ao homem o Espírito que dá vida. O Espírito que Jesus tem para oferecer desenvolve e fecunda o coração do homem, dando-lhe a capacidade de amar sem medida. Eleva, assim, os que buscam a vida plena e definitiva à categoria de Homens Novos, filhos de Deus que fazem as obras de Deus. Do dom de Jesus nasce a nova comunidade.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A Transfiguração


 

O Evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos apresenta a Transfiguração de Jesus e nos ensina o caminho da escuta atenta de Deus e dos seus projetos, da obediência total e radical aos planos do Pai.

 

Os desanimados – O relato da transfiguração de Jesus é antecedido do primeiro anúncio da paixão (cf. Mt 16,21-23) e de uma instrução sobre as atitudes próprias do discípulo (convidado a renunciar a si mesmo, a tomar a sua cruz e a seguir Jesus no seu caminho de amor e de entrega da vida – cf. Mt 16,24-28). Depois de terem ouvido falar do “caminho da cruz” e de terem constatado aquilo que Jesus pede aos que o querem seguir, os discípulos estão desanimados e frustrados, pois a aventura em que apostaram parece encaminhar-se para um fracasso; eles vêem desaparecer, pouco a pouco – nessa cruz que irá ser plantada numa colina de Jerusalém – os seus sonhos de glória, de honras, de triunfos e perguntam-se se vale a pena seguir um mestre que nada mais tem para oferecer do que a morte na cruz.

 

Projeto – É neste contexto que Mateus coloca o episódio da transfiguração. A cena constitui uma palavra de ânimo para os discípulos (e para os crentes em geral), pois nela manifesta-se a glória de Jesus e atesta-se que Ele é – apesar da cruz que se aproxima – o Filho amado de Deus. Os discípulos recebem, assim, a garantia de que o projeto que Jesus apresenta é um projeto que vem de Deus; e, apesar das suas próprias dúvidas, recebem um complemento de esperança que lhes permite “embarcar” e apostar nesse projeto.

Simbologia – Literariamente, a narração da transfiguração é uma teofania – quer dizer, uma manifestação de Deus. Portanto, o autor do relato vai colocar no quadro que descreve todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus (e que encontramos quase sempre presentes nos relatos teofânicos do Antigo Testamento): o monte, a voz do céu, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem e mesmo o medo e a perturbação daqueles que presenciam o encontro com o divino. Isto quer dizer o seguinte: não estamos diante de um relato fotográfico de acontecimentos, mas de uma catequese (construída de acordo com o imaginário judaico) destinada a ensinar que Jesus é o Filho amado de Deus, que traz aos homens um projeto que vem de Deus.

 

Elementos – Esta página de catequese, destinada a ensinar que Jesus é o Filho de Deus e que o projeto que Ele propõe vem de Deus, está construída sobre elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento. Que elementos são esses?

 

O monte situa-nos num contexto de revelação: é sempre num monte que Deus Se revela; e, em especial, é no cimo de um monte que Ele faz uma aliança com o seu Povo. A mudança do rosto e as vestes de brancura resplandecente recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf. Ex 34,29), depois de se encontrar com Deus e de ter as tábuas da Lei. A nuvem, por sua vez, indica a presença de Deus: era na nuvem que Deus manifestava a sua presença, quando conduzia o seu Povo através do deserto.

 

Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); além disso, são personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva. O temor e a perturbação dos discípulos são a reação lógica de qualquer homem ou mulher diante da manifestação da grandeza, da onipotência e da majestade de Deus. As tendas parecem aludir à “festa das tendas”, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em “tendas”, no deserto.

 

Novo Moisés – A mensagem fundamental, moldada com todos estes elementos, pretende dizer quem é Jesus. Recorrendo a simbologias do Antigo Testamento, o autor deixa claro que Jesus é o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele é, também, esse Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Mais ainda: ele é um novo Moisés – isto é, aquele através de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a nova lei e através de quem Deus propõe aos homens uma nova aliança.

 

Novo Povo de Deus – Da ação libertadora de Jesus (o novo Moisés), irá nascer um novo Povo de Deus. Com esse novo Povo, Deus vai fazer uma nova aliança; e vai percorrer com ele os caminhos da história, conduzindo-o através do “deserto” que leva da escravidão à liberdade.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

As bem-aventuranças

  

O Evangelho deste domingo proclama os “bem-aventurados” e recomenda, aos crentes, a misericórdia, a sinceridade de coração, a luta pela paz, a perseverança diante das perseguições: essas são as atitudes que correspondem ao compromisso pelo “Reino”. Enquanto que no primeiro grupo de “bem-aventuranças” se constatam situações, no segundo grupo propõem-se atitudes que os discípulos devem assumir.

 

A nova Lei – Ao longo do seu texto, Mateus apresenta cinco longos discursos, nos quais agrupa “ditos” e ensinamentos, provavelmente proferidos por Jesus em várias ocasiões e contextos. Na visão de Mateus, esses cinco discursos traziam uma nova Lei, destinada a substituir a antiga Lei dada ao Povo por meio de Moisés e escrita nos cinco livros do Pentateuco.

 

As bem-aventuranças – As “bem-aventuranças” que Mateus coloca na boca de Jesus, são consideravelmente diferentes das “bem-aventuranças” propostas por Lucas (cf. Lc 6,20-26). Mateus tem nove “bem-aventuranças”, enquanto que Lucas só apresenta quatro; além disso, Lucas prossegue com quatro “maldições”, que estão ausentes do texto mateano; outras notas características da versão de Mateus são a espiritualização (os “pobres” de Lucas são, para Mateus, os “pobres em espírito”) e a aplicação dos “ditos” originais de Jesus à vida da comunidade e ao comportamento dos cristãos. É muito provável que o texto de Lucas seja mais fiel à tradição original e que o texto de Mateus tenha sido mais trabalhado.

 

O Reino – As “bem-aventuranças” são fórmulas freqüentes na tradição bíblica e definem sempre uma alegria oferecida por Deus. Devem ser entendidas no contexto da pregação sobre o “Reino”: Jesus proclama “bem-aventurados” aqueles que estão numa situação de debilidade, de pobreza, porque Deus está a ponto de instaurar o “Reino” e a situação destes “pobres” vai mudar radicalmente; além disso, são “bem-aventurados” porque, na sua fragilidade, debilidade e dependência, estão de espírito aberto e coração disponível para acolher a proposta de salvação e libertação que Deus lhes oferece em Jesus (a proposta do “Reino”).

Os pobres – As quatro primeiras “bem-aventuranças” referidas por Mateus (vers. 3-6) dirigem-se aos “pobres” (as segunda, terceira e quarta “bem-aventuranças” são apenas desenvolvimentos da primeira, que proclama: “bem-aventurados os pobres em espírito”). Saúdam a felicidade daqueles que se entregam confiadamente nas mãos de Deus e procuram fazer sempre a sua vontade; daqueles que, de forma consciente, deixam de colocar a sua confiança e a sua esperança nos bens, no poder, no êxito, nos homens, para esperar e confiar em Deus; daqueles que aceitam renunciar ao egoísmo, que aceitam despojar-se de si próprios e estar disponíveis para Deus e para os outros.

Os “mansos” – Não são os fracos, os que suportam passivamente as injustiças, os que se conformam com as violências orquestradas pelos poderosos; mas, são aqueles que recusam a violência, que são tolerantes e pacíficos, embora sejam, muitas vezes, vítimas dos abusos e prepotências dos injustos… A sua atitude pacífica e tolerante os torna membros de pleno direito do “Reino”.

Os que choram - São aqueles que vivem na aflição, na dor, no sofrimento provocados pela injustiça, pela miséria, pelo egoísmo; a chegada do “Reino” vai fazer com que a sua triste situação se mude em consolação e alegria…

Os que têm fome e sede de justiça – Provavelmente, a justiça deve entender-se, aqui, em sentido bíblico – isto é, no sentido da fidelidade total aos compromissos assumidos para com Deus e para com os irmãos. Jesus dá-lhes a esperança de verem essa sede de fidelidade saciada, no Reino que vai chegar.

Misericordiosos e puros de coração – Os “misericordiosos” são aqueles que têm um coração capaz de compadecer-se, de amar sem limites, que se deixam tocar pelos sofrimentos e alegrias dos outros homens e mulheres, que são capazes de ir ao encontro dos irmãos e estender-lhes a mão, mesmo quando eles falharam. Os “puros de coração” são aqueles que têm um coração honesto e leal, que não pactua com a duplicidade e o engano.

Os “que constroem a paz” – São aqueles que se recusam a aceitar que a violência e a lei do mais forte dirijam as relações humanas; e são aqueles que procuram ser – às vezes com o risco da própria vida – instrumentos de reconciliação entre os homens.

Os perseguidos por causa da justiça – São aqueles que lutam pela instauração do “Reino” e são desautorizados, humilhados, agredidos, marginalizados por parte daqueles que praticam a injustiça, que fomentam a opressão, que constroem a morte… Jesus garante-lhes: o mal não poderá vencer; e, no final do caminho, espera o triunfo, a vida plena.

Os perseguidos por causa de Jesus – Na última “bem-aventurança” (vers. 11), o evangelista dirige-se, em jeito de exortação, aos membros da sua comunidade que têm a experiência de serem perseguidos por causa de Jesus e convida-os a resistir ao sofrimento e à adversidade. Esta última exortação é, na prática, uma aplicação concreta da oitava “bem-aventurança”.

No seu conjunto, as “bem-aventuranças” deixam uma mensagem de esperança e de alento para os pobres e débeis. Anunciam que Deus os ama e que está do lado deles; confirmam que a libertação está para chegar e que a sua situação vai mudar; asseguram que eles vivem já na dinâmica desse “Reino” onde vão encontrar a felicidade e a vida plena.