O trecho do Evangelho lido neste domingo
(Lc 4,1-13) apresenta-nos uma catequese sobre as tentações de Jesus.
Desonra? – Muitos têm dificuldade em aceitar que
Jesus foi tentado pelo Diabo. No fundo é porque consideram a tentação como algo
desonroso para a pessoa, como uma fraqueza, uma deficiência. Mas não é assim. A
tentação não é nem boa e nem má. É simplesmente inevitável. Passa a ser boa ou
má segundo a decisão que cada indivíduo toma diante dela.
Coisas estranhas – Como podemos dizer que as tentações de
Jesus são as mesmas que as nossas? A primeira
tentação acontece no deserto. Mas, na segunda, o Diabo aparece transportando-o
pessoalmente ao Templo de Jerusalém. Como o transportou? Levantando-o? Voando?
Isto seria aceitar que o Diabo realizou um impressionante prodígio. De onde
tirou poder para fazer milagres, quando a tradição bíblica sustenta que só Javé
pode fazê-los? Na terceira tentação, o Diabo aparece levando-o a um alto monte,
de onde lhe mostra todos os reinos e países do mundo. Existe na Terra esta
extraordinária montanha, de onde se pode contemplar semelhante espetáculo?
Criação literária – E como pôde Jesus permanecer quarenta
dias no deserto sem comer e, principalmente, sem beber? A desidratação não
perdoa ninguém. Tudo isso nos leva a supor que, embora Jesus tivesse tido
tentações durante sua vida, o modo como elas estão aqui contadas não é
histórico. Trata-se mais de uma criação literária dos evangelistas, com a
finalidade de deixar um ensinamento religioso, uma idéia válida para a vida dos
cristãos. Nenhum exegeta sustenta que Jesus foi realmente levado ao deserto,
que ali teve fome e foi tentado, que depois foi levado ao Templo de Jerusalém e
terminou em cima de um monte. Toda esta coreografia é uma criação dos evangelistas
para deixar-nos um ensinamento.
Por que os evangelistas escolheram essas três tentações?
Aqui está a chave e o segredo de todo o relato! Escolheram-nas para traçar um
paralelo com aquilo que aconteceu com o povo de Israel, logo após a saída do Egito,
quando os israelitas entraram no deserto, conduzidos por Deus. Ali permaneceram
durante quarenta anos e sofreram especialmente três tentações. Levando em conta
esses detalhes, os autores bíblicos apresentam Jesus como o novo povo de
Israel, que veio substituir o antigo, pois o povo de Israel, toda vez que fora
tentado, tinha sido derrotado. Jesus, ao contrário, sai vitorioso das mesmas
tentações e agora forma o novo povo, a nova herança de homens e pode realizar o
programa libertador encomendado por Deus ao antigo Israel que, por sua infidelidade,
não o pôde levar avante.
No deserto – O cenário da primeira tentação de Jesus
é o deserto: durante quarenta dias sem comer, Ele sente fome e o Tentador o provoca
para converter as pedras em pão. O povo de Israel teve a mesma experiência: depois
de sair da opressão do Egito, durante
quarenta anos experimentou uma fome parecida, caindo em tentação. Rebelou-se
contra Moisés, desejou poderes especiais para fazer aparecer alimento e até
chegou a desejar voltar para a escravidão do Egito. Muitos anos depois Moisés
lhes jogaria na cara essa fraqueza, dizendo que deviam ter pensado que nem só
de pão vive o homem, mas também de tudo o que sai da boca de Javé (Dt 8,3). Mas
quando sobreveio a mesma tentação a Jesus, ele negou-se a usar seus poderes,
derrotando o Diabo com as mesmas palavras de Moisés.
No Templo – O segundo encontro entre Jesus e o
Diabo se deu no Templo, sobre um precipício de mais de cem metros. Ele é
convidado a jogar-se dali, para provar que Deus sempre cuida dele. Também o
povo de Israel havia passado por semelhante situação: em Masá, no deserto,
houve falta d’água e embora soubessem que Javé nunca os havia abandonado, os
israelitas exigiram de Moisés que fizesse aparecer água. Caíram na tentação de
usá-lo para Deus. E mesmo assim, Deus lhes fez o milagre. Moisés, porém, os
censurou: “Não tenteis o Senhor vosso Deus como tentastes em Masá” (Dt 6,16). Essa
mesma tentação assaltava agora Jesus. Mas o Senhor, lembrando-se de Moisés,
voltou a citá-lo ao Diabo, para vencê-lo.
Na montanha – A terceira tentação se dá numa montanha
altíssima, de onde Jesus contempla todos os reinos. Dessa vez Satanás lhe propõe
que abandona o serviço exclusivo do Pai e converta-se em um adorador seu. O
povo de Israel, igualmente, teve essa tentação no deserto: abandonar Javé e
fazer para si um ídolo, um bezerro de ouro para adorá-lo (Êx 32). Moisés
dirigiu um discurso ao povo antes de entrar na Terra Prometida, pedindo-lhe que
não se deixasse tentar por outros deuses, pois “só se deve adorar e prestar
culto a Deus” (Dt 6,13). Jesus viveu essa mesma tentação de adorar a outro fora
de Deus Pai. E superou-a novamente com as palavras de Moisés que lhe serviram
de arma vencedora.
Em substituição ao perdedor – Israel havia sido
derrotado em todas as provas do deserto, por isso os profetas acreditaram que
Deus mandaria um Messias, com força suficiente para vencer todas as tentações e
converter em realidade as antigas esperanças do povo. Com o advento do Senhor,
os evangelistas sugerem que se inaugura um “novo povo de Israel”, formado por
Jesus Cristo e pelos seus seguidores, os cristãos. E dessa vez conseguirá, sim,
pois Jesus saiu triunfante das tentações e todo aquele que viver unido a Ele poderá
vencer igualmente as tentações. Para isso, os autores colocaram as tentações só
no início de sua vida pública, mostrando que, se alguém se esforça em
vencê-las, logo tem desimpedido o caminho para o êxito e assegura o triunfo
final, como Jesus.
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