O texto, a seguir, é de autoria do Cardeal Odilo P. Scherer,
Arcebispo de São Paulo. Foi publicado no Jornal “O SÃO PAULO”, da Arquidiocese
de São Paulo, na edição do dia 20 de setembro de 2010.
A questão delicada do aborto não cessa de levantar
polêmicas. Há projetos de lei no Congresso Nacional para legalizar o aborto,
com nomes que escondem a verdade, como “despenalização” ou “descriminalização”
do aborto... Ora, se alguma ação não
devesse mais ser considerada um crime, ou não devesse receber mais nenhuma
pena, tal ação passaria a ser considerada normal e “legalizada”. No caso em
questão, trata-se da legalização do aborto.
Pode haver aborto espontâneo e aborto provocado. Não me
refiro aqui ao aborto espontâneo, que pode ocorrer por muitas causas e para o
qual não fica caracterizada a responsabilidade de ninguém. Trato do aborto
provocado e que envolve a intenção e a ação de alguém. Neste caso, existem
responsabilidades, quer de quem o procura ou provoca, quer de quem colabora
para realizá-lo. O aborto implica na supressão da vida de um ser humano ainda
não nascido. O agravante é que se trata de um ser humano inocente e indefeso.
Há teorias diversas sobre o início da vida humana e o
momento a partir do qual o embrião ou feto deva ser considerado um ser humano,
com direito à vida. Esta discussão, em geral, depende de visões culturais e de
interpretações filosóficas divergentes sobre o ser humano e podiam ser
justificadas, de certa maneira, enquanto a ciência e a antropologia não tinham
conhecimentos tão amplos sobre o ser humano como tem hoje. Atualmente, porém,
não creio que possa ser levantada alguma dúvida razoável de que a existência de
um novo ser humano tem início no momento da concepção. Esta é também a posição
da Igreja Católica. Portanto, a partir daquele momento, o ser humano tem o
direito a que sua vida seja respeitada, ainda que esta esteja apenas no início
do seu desenvolvimento; e não importa a condição em que ele se encontra: com
saúde ou não, perfeito ou não, desejado pelos outros ou indesejado. A vida de
um ser humano inocente e indefeso deve ser respeitada sempre.
Para confundir as coisas, o aborto muitas vezes é tratado
apenas como assunto de religião. Isso é equivocado e um jeito cômodo para não
tratar seriamente o assunto com outros argumentos, que não sejam religiosos.
Por acaso, quem não aceita determinada religião, ou não tem nenhuma, está livre
para praticar o aborto, ou para não ter ética? Claro que não. Embora as
religiões, sobretudo o Cristianismo, tenham posição clara sobre o assunto, o
aborto é, em primeiro lugar, questão de direitos humanos, e não de religião.
O direito à vida é o primeiro e mais fundamental direito
humano. Alguém poderia alegar que o embrião ou o feto ainda não têm “direitos
cidadãos”, uma vez que estes existem apenas a partir do nascimento. Mais uma
confusão. O raciocínio não vale, pois o direito do ser humano à vida é primeiro
e vem antes dos direitos civis. Imaginemos que haja pessoas adultas vivendo
entre nós como ilegais, clandestinas ou estrangeiras: Seus direitos humanos
fundamentais, como o direito à vida, à alimentação e à integridade física
poderiam ser desrespeitados? Por certo que não. Vale o mesmo para os seres
humanos ainda não nascidos, embora não sejam “cidadãos” no sentido estrito da
palavra. E, mesmo assim, pelo Código Civil, bebês ainda não nascidos já são
considerados filhos, podem receber títulos de herança e outros benefícios
assegurados pela lei (cf Art.542; 1.609; 1.779). Como negar-lhes, então, o
direito primeiro, o direito à vida?!
A alegação de que a mulher tem o direito de dispor de seu
corpo também não vale, uma vez que o feto ou bebê, que ela está gerando, não é
parte de seu corpo, mas um outro corpo, ou melhor, um outro ser humano. Embora
totalmente dependente dela, o nascituro não é parte do corpo da mãe e ela não
pode fazer dele o que bem entender. A mulher, ajudada pelo pai da criança e
pela sociedade, tem a nobre missão de amparar e proteger a vida do ser humano,
ainda frágil, que ela está gerando. Existem certamente situações de maternidade
com risco, para as quais a medicina tem enormes possibilidades de socorro.
Existem casos de maternidade indesejada, para as quais existem variadas formas
de ajuda, para não deixar no desamparo a mulher e para não causar danos à
criança por nascer. Existe, sobretudo, a necessidade de encarar o sexo com
respeito e responsabilidade, sabendo que as relações sexuais podem dar a origem
a uma nova vida humana. A banalização do sexo, sua exploração comercial e a
promiscuidade na vida sexual estão entre as principais causas de abortos.
Divulga-se mais e mais um movimento internacional, bem
financiado, presente também entre nós, que luta pela legalização do aborto e
até que sua possibilidade seja reconhecida como um direito humano. Isso é muito
estranho, uma verdadeira subversão dos direitos humanos. É inegável que o
aborto provocado implica na supressão voluntária de uma vida humana; ora,
pretender que o aborto seja um direito humano é o mesmo que dizer: matar o
próximo (indefeso e inocente) é um direito humano. Isso é absolutamente contra
toda lógica dos direitos humanos.
Há também certa confusão na opinião pública sobre a posição
da Igreja Católica a respeito do aborto, como se a Igreja tivesse opinião
dividida sobre o assunto. Em boa parte, isso acontece porque alguns se dizem
“católicos” e manifestam opinião favorável ao aborto provocado. É preciso que
fique bem claro: a posição da Igreja Católica é uma só e ela está empenhada em
promover o pleno respeito pela vida humana; por isso, ela é contrária ao aborto
provocado. E quem, unicamente, representa a posição da Igreja Católica sobre
alguma questão de fé ou de moral é o Magistério da Igreja, representado pelo
Papa e pelos seus legítimos Bispos, unidos ao Papa. E aqui se trata de uma
questão séria de moral, que tem implicação direta com o 5º Mandamento da Lei de
Deus: “Não matarás”. Opiniões particulares, ou de grupos, ainda que fossem da
maioria, não refletem por si a posição oficial da Igreja.
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