sábado, 28 de setembro de 2013

Riqueza é pecado?


Nas missas deste domingo será lido o Evangelho de Lucas (Lc 16,19-31), no qual Jesus conta a história do homem rico e do pobre Lázaro. Enquanto o rico vestia roupas finas e fazia banquetes diários, o pobre ficava no portão comendo o que caia da mesa. Quando morreram, o pobre foi colocado junto a Abraão e o rico passou a sofrer tormentos. Vamos desenvolver o tema. 

Conteúdo – O trecho do Evangelho mostra os ensinamentos de Jesus sobre as riquezas ou, melhor, sobre a questão fundamental da partilha dos bens como necessidade absoluta para os seus discípulos. Os destinatários do Evangelho de Lucas eram as comunidades urbanas das cidades gregas do Império Romano. A imagem da parábola é típica da sociedade urbana – tanto a de então como a de hoje! De um lado, o rico que esbanja dinheiro e comida em banquetes e futilidades, e do outro lado o pobre miserável, faminto e doente. Ambos vivem lado ao lado, sem que o rico tome conhecimento da existência e dos sofrimento dos pobres! Quantos exemplos disso existem hoje – lado ao lado com a maior opulência, a mais desumana miséria, e entre as duas situações uma barreira de cegueira e indiferença? 

Insensibilidade que condena – É importante para a nossa compreensão da parábola, ter claro em mente que os versículos 22 a 26 não dizem que o rico foi para o inferno por que ele fazia algo moralmente repreensível; e nem que Lázaro foi para o céu porque ele era "santo". Por isso, por mais inconveniente que possa soar numa sociedade como a nossa, dá para entender que este trecho condena o rico simplesmente por ser insensível numa sociedade de empobrecimento, e abençoa o pobre pelo simples fato de estar sofrendo a miséria numa sociedade que esbanja os bens necessários para a vida.  

Pecado – A riqueza torna-se pecado diante da situação desumana dos pobres, pois é a negação da partilha e da solidariedade! O rico foi condenado por que ele simplesmente se fechou diante do sofrimento alheio. E este fechamento é a negação de todo o ensinamento do Antigo e do Novo Testamentos. O simples fato de existir lado a lado o rico opulento e o Lázaro sofrido, é a condenação de uma sociedade pecaminosa que permite esta situação antievangélica. 

Palavra tão atual! – Não é por falta de conhecimento da Palavra de Deus que o mundo se acha na sua situação atual. Não é por desconhecimento do ensinamento de Jesus sobre a fraternidade e a solidariedade que temos uma sociedade excludente hoje no Brasil! Não é por falta de celebrações litúrgicas e sacramentais que há tanto sofrimento nas nossas ruas e bairros!  

“Cristianismo” refratário? – É simplesmente porque a sociedade opta por se organizar conforme critérios antievangélicos, e porque tantos cristãos reduzem o cristianismo a uma série de leis e doutrinas – muitas vezes não ultrapassando muito uma simples lista de "boas maneiras". Optamos por diluir as exigências do Evangelho para que possamos continuar com os "ricos" e os "Lázaros" de hoje, lado a lado, sem que estes incomodem aqueles! Sabemos o que a Bíblia diz, conhecemos muito bem o ensinamento de Jesus – e continuamos na construção de uma sociedade injusta, fundamentada sobre a idolatria do lucro, com a consequência automática do sofrimento e exclusão. 

Ai dos que não ouvem a Palavra... – O rico e o pobre continuam morando hoje em nossas cidades. Jesus hoje nos desafia para que optemos por uma outra forma de sociedade, onde todos terão acesso aos bens necessários para uma vida digna. Se não queremos ouvir o que nos diz a Palavra de Deus, se nós queremos continuar surdos diante do grito dos excluídos, então o nosso destino será também aquele do rico da história.

domingo, 22 de setembro de 2013

Com quem se casou Caim, o filho de Adão e Eva?


O primeiro homicida – Conta a Bíblia que, pouco tempo antes de serem expulsos do Paraíso, Adão e Eva tiveram dois filhos chamados Caim e Abel (Gn 4). O mais velho dedicava-se à agricultura e o mais novo era pastor. Eram muito religiosos e ofereciam os frutos de seus trabalhos a Deus: Caim, o produto do campo e Abel, as primícias do rebanho. Como Deus só se comprazia com a oferenda de Abel, Caim começou a alimentar o ódio contra seu irmão. Até que um dia convidou-o a ir ao campo e aí o atacou e o matou. 

Contradições do texto – O relato começa dizendo que Caim era lavrador e Abel pastor de ovelhas (Gn 4,2). Mas, se ambos são filhos dos primeiros homens, isso é impossível. Segundo a paleontologia, os primeiros seres humanos que surgiram sobre a terra, há dois milhões de anos, viviam da caça, da pesca e dos frutos naturais do solo. A domesticação de animais só apareceu 10.000 anos a.C. e a agricultura mais tarde ainda, uns 8.000 a.C. Como poderia Caim conhecer a agricultura e Abel ser pastor? Em Gn 4,4 conta-se que Abel oferecia a Deus as primícias do rebanho e a gordura dos animais. Mas a ordem de Deus para a oferta dos primogênitos dos rebanhos aconteceu séculos depois, a Moisés, no Monte Sinai (Ex 34,19). Como poderia Abel oferecer o que ainda não estava mandado? 

Mais contradições – Mais adiante, Caim convida seu irmão a ir para o campo com ele (Gn 4,8). Mas, por acaso, eles viviam na cidade, quando existiam apenas quatro pessoas no mundo? Depois de seu crime, Caim exclama: “Quem me encontrar, matar-me-á” (Gn 4,14). Quem poderia matá-lo, senão Adão ou Eva? Mas, talvez, o que mais assombre os leitores seja a leitura de Gn 4,17, onde se afirma que Caim se casou e sua mulher ficou grávida. De onde apareceu essa mulher? A única mulher que existia era Eva!  

A origem da história – Quando os hebreus se estabeleceram na Palestina (depois do êxodo do Egito) havia uma lenda sobre um antigo herói chamado Caim, fundador de uma famosa tribo beduína, chamada “cainita”, que habitava o deserto, ao sul de Israel. A história incluía também seu casamento e o nascimento de seu filho Henoc (Gn 4,17). A história não tinha nenhuma relação com Adão e Eva. 

O homicida Caim – Chamava a atenção dos hebreus o fato de os cainitas viverem em pleno deserto, isolados das terras cultivadas. Perguntavam então: por que os cainitas levam vida tão penosa e errante, longe da terra prometida e abençoada por Deus? Diziam que se tratava de um castigo de Deus, que os havia condenado a viver errantes por causa de algum delito cometido pelo seu fundador. Que tipo de delito? Não sabiam, mas, como os cainitas destruíam as terras cultivadas de suas tribos irmãs de raça, imaginaram que o delito de Caim era contra seu irmão. Com o tempo, foi acrescentada a história do irmão assassinado. Assim imaginaram a lenda da morte de Abel. 

O irmão que faltava – Assim foi que esta história entrou numa segunda etapa. Aquele legendário herói, chamado Caim, fundador dos cainitas, a tradição hebréia o converteu, pouco a pouco, num fratricida condenado por Deus a viver uma vida errante. 

Plágio em nome de Deus – Mais tarde, na época do rei Salomão, a história de Caim passou para uma terceira etapa. Quando foi escrito o livro do Gênesis, o autor se deu conta que a lenda oferecia muitas possibilidades. Caim se prestava perfeitamente para aprofundar a explicação da presença do mal no mundo. E, com alguns retoques, Caim se tornou filho de Adão e Eva (apesar das incoerências). Diante da angustiante pergunta sobre a razão do mal, o autor teria respondido com a história de Adão e Eva: porque o homem desobedeceu a Deus. Contudo, esse diagnóstico ainda era insatisfatório. Dizer que só quando o homem peca contra Deus é que se produz uma desordem no mundo, era dizer a metade. Com a história de Caim, pode completar seu ensinamento, dizendo que o mal também vai crescendo no mundo pelos delitos contra os demais homens. 

A ampliação de Jesus – A lenda de Caim fomentou o ensinamento do respeito ao irmão da mesma forma com que se respeitava a Deus. Os judeus, porém, consideravam irmão apenas os outros judeus, excluindo o resto das nações. Por isso Jesus, muitos séculos mais tarde, voltaria a atualizar este mesmo ensinamento: amar a Deus de todo o coração e amar o próximo como se ama a si mesmo. E quando lhe perguntaram quem era o próximo, ampliou a interpretação desta palavra e a estendeu a todos os homens com os quais nos encontramos nos caminhos da vida (Lc 10,25-37). Lá nos começos da pré-história bíblica, o relato de Caim ensina-nos que, para encontrar o equilíbrio da vida é necessário o respeito ao próximo e a Deus.

sábado, 14 de setembro de 2013

A Bíblia proíbe fazer imagens?


Na primeira leitura das missas deste domingo (Ex 32,7-11), o Senhor fala a Moisés que o povo se corrompeu, prostrando-se e oferecendo sacrifícios a um bezerro de metal. Deus realmente condena fazer imagens? Está proibido na Bíblia? 

O mandamento que falta – Se verificarmos a lista dos Dez Mandamentos contida em Êxodo 20, iremos ver que o segundo mandamento tem o seguinte texto “Não farás para ti ídolos, nem figura alguma do que existe em cima, nos céus, nem embaixo, na terra, nem do que existe nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles, nem lhes prestarás culto, pois eu sou o Senhor teu Deus, um Deus ciumento...” (Ex 20,4-5). 

Que dizia a Lei – Se continuamos lendo a Bíblia, isso parece confirmar-se: o Levítico ordena que não se façam ídolos, imagens, nem pedras esculpidas para ajoelhar-se diante delas (Lv 26,1); Deuteronômio (4, 16-18) alerta sobre o mesmo tema e isso era tão grave que se penalizava com uma maldição aquele que o fizesse (Dt 27,15). 

Ordens de Deus – No entanto, em várias passagens bíblicas do Antigo Testamento as imagens eram permitidas. Em alguns casos, Deus mesmo ordenou a construção de imagens sagradas: mandou fabricar a arca da aliança com um querubim de ouro de cada lado (Ex 25,18); o candelabro de sete braços, no interior da Tenda Sagrada, tinha gravadas flores de amendoeira (Ex 31,1-5). Gedeão fabricou uma figura de Javé, a quem os israelitas prestavam culto (Jz 8,24-27). Micas construiu uma efígie de prata de Javé e um santuário para prestar-lhe culto (Jz 18,31). Até o próprio rei Davi tinha imagens divinas em casa (1Sm 19,11-13). 

Um templo sem preconceitos – E que dizer do majestoso templo de Jerusalém, construído por Salomão? Pelas descrições bíblicas, parece que estava abarrotado de representações e esculturas (1Rs 6,23). O interior estava totalmente decorado com imagens de querubins, vegetais (1Rs 6,29) e doze magníficos touros de metal (1Rs 7,25). Os recipientes para as abluções litúrgicas estavam revestidos com imagens de leões, bois e querubins (1Rs 7,29). Tudo com o consentimento do próprio Deus. 

Nem uma só voz - E apesar daquele segundo mandamento, nunca encontramos na Bíblia um só profeta antigo que censure as imagens. Eles, que eram os sentinelas de Deus, que erguiam a voz diante de todo pecado do povo, que não permitiam o menor desvio, guardaram silêncio durante séculos. 

Plenitude dos tempos - Então chegou o tempo em que o próprio Deus, que se mantivera invisível, quis fazer-se imagem, para que todos pudessem contemplá-lo. E se, na antiga Aliança tinha se revelado ao povo sem imagem, na nova Aliança considerou ser imprescindível ter uma e ser visto. Por isso, quis achegar-se aos homens através de uma figura, a de Cristo, para que o ouvissem, o tocassem e o sentissem. 

Novo Testamento – São Paulo, que vivera durante algum tempo cumprindo a lei antiga, compreendeu muito bem isso, ao falar de “Cristo, a imagem de Deus” (2Cor 4,4). E, num belo hino, canta que Cristo é a imagem do Deus invisível (Cl 1,15). Falando, um dia, com o apóstolo Felipe, Jesus já o antecipara: “Quem me viu a mim, viu o Pai” (Jo 14,8). Portanto, se o próprio Deus quis deixar de permanecer oculto e fazer-se ver numa imagem, quem somos nós para proibir de representá-lo?  

E o Mandamento? – Como se vê, o mandamento (Ex 20, 4-5) sobre as imagens no Antigo Testamento tinha uma função pedagógica e, portanto, temporal. Assim entenderam os cristãos, desde tempos antigos: quando enumeravam os mandamentos, pulavam sempre o segundo, ao passo que desdobravam o último em dois para que continuassem sendo dez. As listas de mandamentos que nos chegaram escritas, do século IV, já não incluem a proibição das imagens. Por isso chama a atenção que as seitas modernas tentem conservá-la. 

Lutero – Os protestantes, quando se separaram da Igreja Católica, no século XVI, reagiram contra os excessos no culto das imagens e provocaram a destruição de muitas delas. No entanto, Lutero não foi tão intolerante. Ao contrário, reconheceu a importância que elas tinham. Numa carta, datada de 1528, escreveu: “Penso que, no que diz respeito às imagens, símbolos e vestes litúrgicas... e coisas semelhantes, deixe-se à livre escolha. Quem não quiser essas coisas, deixe-as de lado. Se bem que as imagens inspiradas na Bíblia ou em histórias edificantes, parecem-me ser muito úteis”. Lutero percebeu muito bem a essência da questão: não se trata de adorar uma imagem, mas sim de adorar a Deus. 

Quer ler mais – O artigo acima é baseado no texto “A Bíblia proíbe fazer imagens? de autoria do teólogo Ariel Álvares Valdés. Se você se interessou pelo assunto, podemos lhe enviar o texto original (10 páginas em português) e a carta de Martinho Lutero (2 páginas em português) sobre imagens, escrita em 1528. Também disponibilizamos o texto “Os católicos adoram imagens?”, de autoria do Pe. Milton Carraschi, publicado nesta coluna no ano 2000. Solicite por E-mail.

sábado, 7 de setembro de 2013

As condições para ser seguidor de Jesus


No Evangelho das missas deste domingo (Lc 14, 25-33) Jesus se dirige às multidões com palavras bastante duras: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo”. 

Caminho – Com estas palavras Ele traça as coordenadas do “caminho do discípulo”: é um caminho em que o “Reino” deve ter a primazia sobre as pessoas que amamos, sobre os nossos bens, sobre os nossos próprios interesses e esquemas pessoais. Quais são então, na perspectiva de Jesus, as exigências fundamentais para quem quer seguir o “caminho do discípulo” e chegar a sentar-se à mesa do “Reino”? Jesus põe três exigências, todas elas subordinadas ao tema da renúncia. 

A primeira – Exige o preferir Jesus à própria família.  A este propósito, Lucas põe na boca de Jesus uma expressão muito forte. Literalmente, podemos traduzir o verbo “misséô” como “odiar” (“quem não odeia o pai, a mãe… não pode ser meu discípulo”). À primeira vista, a leitura pode nos chocar! Pode até parecer que Jesus esteja ensinando algo que não condiz muito com os ensinamentos cristãos. Para ser discípulo, é preciso odiar alguém? Não. Segundo a maneira semita de falar (no caso de Jesus, ele falava o aramaico), “odiar” significa “pôr em segundo lugar algo porque, entretanto, apareceu na vida da pessoa um valor que ainda é mais importante”. É evidente que Jesus não está pedindo o ódio a ninguém, muito menos a esses a quem nos ligam laços de amor… Está, sim, exigindo que as relações familiares não nos impeçam de aderir ao “Reino”. Se for necessário escolher, a prioridade deve ser do “Reino”. 

A segunda – Exige a renúncia à própria vida. O discípulo de Jesus não pode viver fazendo opções egoístas, colocando em primeiro lugar os seus interesses, os seus esquemas, aquilo que é melhor para ele; mas tem de colocar a sua vida ao serviço do “Reino” e fazer da sua vida um dom de amor aos irmãos, se necessário até a morte. Foi esse, de fato, o caminho de Jesus e o discípulo é convidado a imitar o mestre. 

A terceira – Exige a renúncia aos bens. Jesus sabe que os bens podem facilmente transformar-se em deuses, tornando-se uma prioridade, escravizando o homem e levando-o a viver em função deles; assim sendo, que espaço fica para o “Reino”? Por outro lado, dar prioridade aos bens significa viver de forma egoísta, esquecendo as necessidades dos irmãos. Ora, viver na dinâmica do “Reino” implica viver no amor e deixar que a vida seja dirigida por uma lógica de amor e de partilha… Pode-se, então, viver no “Reino” sem renunciar aos bens?
 
Exigências – Com este rol de exigências, fica claro que a opção pelo “Reino” não é um caminho de facilidade e, por isso, talvez não seja um caminho que todos aceitem seguir. É por isso que Jesus recomenda que as implicações e as consequências da opção pelo “Reino” sejam bem pesadas. A parábola do homem que, antes de construir uma torre, pensa se tem com que terminar a construção e a parábola do rei que, antes de partir para a guerra, pensa se pode opor-se a outro rei com forças superiores, convidam os candidatos a discípulos a tomar consciência da sua força, da sua vontade, da sua decisão em corresponder aos desafios do Evangelho e em assumir, com radicalidade, as exigências do “Reino”.