O primeiro
homicida – Conta a Bíblia que,
pouco tempo antes de serem expulsos do Paraíso, Adão e Eva tiveram dois filhos
chamados Caim e Abel (Gn 4). O mais velho dedicava-se à agricultura e o mais
novo era pastor. Eram muito religiosos e ofereciam os frutos de seus trabalhos
a Deus: Caim, o produto do campo e Abel, as primícias do rebanho. Como Deus só
se comprazia com a oferenda de Abel, Caim começou a alimentar o ódio contra seu
irmão. Até que um dia convidou-o a ir ao campo e aí o atacou e o matou.
Contradições do
texto – O relato começa dizendo
que Caim era lavrador e Abel pastor de ovelhas (Gn 4,2). Mas, se ambos são
filhos dos primeiros homens, isso é impossível. Segundo a paleontologia, os
primeiros seres humanos que surgiram sobre a terra, há dois milhões de anos, viviam
da caça, da pesca e dos frutos naturais do solo. A domesticação de animais só
apareceu 10.000 anos a.C. e a agricultura mais tarde ainda, uns 8.000 a.C. Como
poderia Caim conhecer a agricultura e Abel ser pastor? Em Gn 4,4 conta-se que
Abel oferecia a Deus as primícias do rebanho e a gordura dos animais. Mas a
ordem de Deus para a oferta dos primogênitos dos rebanhos aconteceu séculos
depois, a Moisés, no Monte Sinai (Ex 34,19). Como poderia Abel oferecer o que
ainda não estava mandado?
Mais
contradições – Mais adiante, Caim
convida seu irmão a ir para o campo com ele (Gn 4,8). Mas, por acaso, eles
viviam na cidade, quando existiam apenas quatro pessoas no mundo? Depois de seu
crime, Caim exclama: “Quem me encontrar, matar-me-á” (Gn 4,14). Quem poderia
matá-lo, senão Adão ou Eva? Mas, talvez, o que mais assombre os leitores seja a
leitura de Gn 4,17, onde se afirma que Caim se casou e sua mulher ficou
grávida. De onde apareceu essa mulher? A única mulher que existia era Eva!
A origem da
história – Quando os hebreus se
estabeleceram na Palestina (depois do êxodo do Egito) havia uma lenda sobre um
antigo herói chamado Caim, fundador de uma famosa tribo beduína, chamada
“cainita”, que habitava o deserto, ao sul de Israel. A história incluía também
seu casamento e o nascimento de seu filho Henoc (Gn 4,17). A história não tinha
nenhuma relação com Adão e Eva.
O homicida Caim
– Chamava a atenção dos hebreus
o fato de os cainitas viverem em pleno deserto, isolados das terras cultivadas.
Perguntavam então: por que os cainitas levam vida tão penosa e errante, longe
da terra prometida e abençoada por Deus? Diziam que se tratava de um castigo de
Deus, que os havia condenado a viver errantes por causa de algum delito
cometido pelo seu fundador. Que tipo de delito? Não sabiam, mas, como os
cainitas destruíam as terras cultivadas de suas tribos irmãs de raça,
imaginaram que o delito de Caim era contra seu irmão. Com o tempo, foi
acrescentada a história do irmão assassinado. Assim imaginaram a lenda da morte
de Abel.
O irmão que
faltava – Assim foi que esta
história entrou numa segunda etapa. Aquele legendário herói, chamado Caim,
fundador dos cainitas, a tradição hebréia o converteu, pouco a pouco, num fratricida
condenado por Deus a viver uma vida errante.
Plágio em nome
de Deus – Mais tarde, na época
do rei Salomão, a história de Caim passou para uma terceira etapa. Quando foi
escrito o livro do Gênesis, o autor se deu conta que a lenda oferecia muitas
possibilidades. Caim se prestava perfeitamente para aprofundar a explicação da
presença do mal no mundo. E, com alguns retoques, Caim se tornou filho de Adão
e Eva (apesar das incoerências). Diante da angustiante pergunta sobre a razão
do mal, o autor teria respondido com a história de Adão e Eva: porque o homem
desobedeceu a Deus. Contudo, esse diagnóstico ainda era insatisfatório. Dizer
que só quando o homem peca contra Deus é que se produz uma desordem no mundo,
era dizer a metade. Com a história de Caim, pode completar seu ensinamento,
dizendo que o mal também vai crescendo no mundo pelos delitos contra os demais homens.
A ampliação de
Jesus – A lenda de Caim fomentou
o ensinamento do respeito ao irmão da mesma forma com que se respeitava a Deus.
Os judeus, porém, consideravam irmão apenas os outros judeus, excluindo o resto
das nações. Por isso Jesus, muitos séculos mais tarde, voltaria a atualizar
este mesmo ensinamento: amar a Deus de todo o coração e amar o próximo como se
ama a si mesmo. E quando lhe perguntaram quem era o próximo, ampliou a
interpretação desta palavra e a estendeu a todos os homens com os quais nos
encontramos nos caminhos da vida (Lc 10,25-37). Lá nos começos da pré-história
bíblica, o relato de Caim ensina-nos que, para encontrar o equilíbrio da vida é
necessário o respeito ao próximo e a Deus.
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