sábado, 30 de março de 2019

COMO QUE O GALO CANTOU, SE EM JERUSALÉM NÃO HAVIA GALOS?




Estamos na Quaresma, e daqui a duas semanas estaremos lendo a Paixão de Cristo. Todos devem se lembrar que, após a terceira negação de Pedro o galo cantou: ‘“Homem, não sei de que estás falando!’ E, enquanto ainda falava, o galo cantou” Lc 22,60). Como isto pode ter acontecido, se os judeus eram proibidos de criar galos nas cidades?

Pedro? – Na leitura da Paixão, uma das frases mais surpreendentes de Jesus é o anúncio das negações de Pedro: “Pedro, eu te digo que hoje, antes que o galo cante, três vezes negarás que me conheces” (Lc 22,34). Como poderia isso acontecer? Ainda mais com Pedro, o apóstolo mais próximo de Jesus e o homem que mais demonstrou a sua fé no Messias (Mt 16,16 - “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”). Mas, com certeza, as negações de Pedro aconteceram, pois são relatadas nos quatro Evangelhos: nos sinóticos em Mt 26,34, 69-75; em Mc 14,30, 66-72; e em Lc 22,34, 54-62 como também Evangelho de João (Jo 13,38; 18,15-18).

Onde foi? – Uma pergunta importante para esta história é “onde ocorreram as negações de Pedro?”. A resposta é detalhada nos Evangelhos (Mateus 26,57; Marcos 14,53; Lucas 22,54): após a Última Ceia, Jesus foi para uma propriedade chamada Getsêmani, onde foi preso e levado para a casa do Sumo Sacerdote Anás. A casa do Sumo Sacerdote estava no centro de Jerusalém, próxima à Fortaleza Antonia (onde estava Pilatos) e ao Templo. Pedro acompanhou Jesus. Enquanto Jesus era interrogado no interior da casa, Pedro ficou no pátio, junto com os soldados.

Galos em Jerusalém? – Um fato intrigante complica esta história. A Mishná (texto da tradição oral judaica, considerada a obra mais importante do judaísmo rabínico, é chamada de Torá Oral) é bem clara: os judeus não podem criar galos em Jerusalém por causa das Coisas Santas, nem os sacerdotes podem criá-los em qualquer lugar na Terra de Israel. O tratado Baba Kama (primeiro de uma série de três tratados talmúdicos, que lidam com matéria civil, tais como danos e delitos) também proíbe a criação de qualquer tipo de galináceo nas cidades.

Questão – Como poderia um galo ter cantado, se Pedro estava com Jesus na casa de Anás, no centro de Jerusalém onde, certamente, não haveria um galinheiro? Sendo assim, será que houve um “galo” que literalmente, “cantou” no contexto da negação de Pedro?

Solução – A resposta está no Evangelho de Marcos (Mc 13, 35-36): “Vigiai, portanto, porque não sabeis quando o senhor da casa voltará: à tarde, à meia-noite, ao canto do galo, ou de manhã, para que, vindo de repente, não vos encontre dormindo”. Para entender isso, é importante ter em conta que os romanos dividiam os dias em períodos de três em três horas. Lembrem que Jesus foi crucificado na sexta hora (meio dia) e morreu na nona hora (três horas da tarde).

Vigília – À noite, os períodos de três horas eram chamados de vigílias. Essas vigílias, por sua vez, demarcavam períodos de três horas, nos quais funcionava cada turno do serviço de guarda. A primeira vigília da noite começava às 18h00 e ia até às 21h00; a segunda vigília começava às 21h00 e ia até à meia-noite; a terceira vigília começava à meia-noite e ia até às 3h00 da madrugada; e a quarta vigília ia das 3h00 da madrugada até às 6h00 da manhã. Cada período era marcado pelo toque da trombeta.

Apelidos – Acontece que os judeus se expressavam de forma abreviada quando se referiam a essas vigílias da noite. Assim (como em Mc 13,35), a palavra “tarde” se referia ao fim da primeira vigília (21h00); “meia-noite” indicava o fim da segunda vigília; “Canto do galo” era o termo usado por eles para o fim da terceira vigília (3h00); e “de manhã” era o modo como se referiam ao fim da quarta vigília (6h00).

Não era uma ave – Quando Jesus diz, em Lc 22,34, “Pedro, eu te digo que hoje, antes que o galo cante, três vezes negarás que me conheces”, ele estava fazendo menção ao fim da terceira vigília. Seria o mesmo de dizer: “Pedro, eu te digo que hoje, antes das três horas da madrugada, três vezes negarás que me conheces”. Portanto, este “cantar do galo” não era uma referência ao som emitido pela ave “galo”, mas sim uma alusão ao toque da trombeta, conhecido em latim como gallicinium.

QUER LER MAIS – Se você gostou do assunto e quer conhecer detalhes sobre o “canto do galo”, podemos lhe enviar um estudo completo (19 páginas em português). Solicite por E-mail.

domingo, 24 de março de 2019

Pilatos: obstinado, leviano, autoritário, covarde e ... santo?


                     
 
Quem era? Pilatos foi governador da Judéia e Samaria do ano 26 a 36 d.C., em substituição a Arquelau (filho de Herodes, o Grande). Governava com base na cidade de Cesaréia, com 5600 soldados. Quando viajava para Jerusalém, residia na fortaleza Antonia, ao lado do Templo. Tinha aversão aos judeus e seus sacerdotes. O historiador Flavio Josefo (no livro Guerra dos Judeus) conta dois episódios entre Pilatos e os judeus: logo que chegou à Jerusalém, Pilatos distribuiu imagens (bustos) do imperador Tibério pela cidade, causando uma grande revolta; depois, Pilatos se apropriou (usando violência) dos tesouros do Templo para financiar um aqueduto (de 50 km) para trazer água para a cidade.

Julgamento de Jesus – Na leitura da Paixão de Cristo, nos Evangelhos, Pilatos recebe a comitiva dos chefes dos sacerdotes judeus (do Sinédrio), pedindo a condenação à morte de Jesus. Fica clara a postura de Pilatos em absolver o condenado (não que nutria alguma admiração por Jesus), mas via uma boa oportunidade de se opor aos sacerdotes judaicos.

Ainda o julgamento – Usou três estratégias na tentativa da absolvição: primeiro, enviou o prisioneiro a Herodes Antipas, o rei da Galiléia. Fracassou, pois Herodes mandou Jesus de volta. A segunda tentativa (já que nem ele nem Herodes não viam culpa em Jesus) foi dar como pena o açoite, para colocá-lo em liberdade. Também não deu certo, pois os judeus continuavam pedindo para crucificá-lo.  A terceira tentativa foi colocar Jesus junto com Barrabás, para o povo escolher quem teria a liberdade. Também não deu certo.

Ameaça – Com o povo gritando: "Só temos um rei, que é César", Pilatos não tinha mais saída. A sua obediência (e temor) ao Imperador Tibério bloqueavam as suas ações. Num gesto inusitado (e até teatral), mostrando que conhecia as tradições judaicas, pediu uma bacia com água e lavou as mãos, livrando-se de qualquer responsabilidade do que viria a acontecer com Jesus. Cabe lembrar que “lavar as mãos” era uma maneira judaica (não romana) de expressar a não-participação em derramamento de sangue (Deuteronômio 21,6-7).

Cristãos – O último evento registrado da carreira de Pilatos foi uma intervenção militar no Monte Garizim (ano 36), onde muitos Samaritanos foram mortos. Após este conflito, Pilatos foi chamado a Roma para explicar suas ações ao imperador (Tibério faleceu antes de ouvir Pilatos). Segundo os autores cristãos Tertuliano (autor cristão, padre apostólico, viveu entre 160 e 220 d.C) e Eusébio de Cesaréia (bispo de Cesaréia e pai da história da Igreja, viveu entre 263 e 339), o imperador Tibério, baseado no relatório de Pilatos sobre Jesus, apresentou ao Senado Romano os fatos que haviam acontecido na Palestina, que revelavam a divindade de Cristo, propondo o reconhecimento da religião cristã. O Senado rejeitou a proposta, adiando em 300 anos a proclamação, que viria com Constantino.

Santo? – Existem três hipóteses para a morte de Pilatos: foi punido e exilado pelo imperador Calígula; suicidou-se no exílio (na Gália); converteu-se, com a cumplicidade da esposa, ao cristianismo. Se essa história contada por Tertuliano e Eusébio for verdadeira, a figura do Governador da Judéia merece ser revisitada; aquela manhã de 7 de abril do ano 30 (julgamento de Jesus) realmente mudou a sua vida. Por estes fatos, as igrejas Ortodoxa e Ortodoxa Etíope promoveram a canonização de Pilatos e de sua esposa (Cláudia Prócula).

Pilatos – Há uma densa escuridão sobre o destino desse homem que veio a fazer parte inclusive do Credo. Como conclusão, podemos citar o personagem Pilatos no filme Jesus Cristo Superstar, que canta angustiado: "Sonhei que milhares de pessoas, por milhares de anos, repetirão todos os dias o meu nome. E também dirão que foi culpa minha".

Quer ler mais? – Gostou da história de Pilatos? Podemos lhe oferecer por E-mail os seguintes textos apócrifos: Cartas de Pilatos ao imperador, com as respostas; Cartas de Pilatos a Herodes, com respostas; Relatório de Pilatos ao imperador sobre a morte de Jesus; Julgamento, condenação e morte de Pilatos; Sentença de condenação de Jesus emitida por Pilatos; Evangelho de Nicodemus. Outros textos: “Encontros com Jesus” de autoria de Stefano Zurlo (4 pág); “Diante de seus juízes” de autoria de Yann Le Bohec (4 pag); “Guerra Judaica” de Flavio Josefo (1627 pag). Todos os textos em Português.

sábado, 2 de março de 2019

O cisco e a trave



No Evangelho das missas deste domingo (Lc 6,39-45), Jesus diz aos discípulos a seguinte parábola: “Poderá um cego guiar outro cego? Não cairão os dois em alguma cova? O discípulo não é superior ao mestre, mas todo o discípulo perfeito deverá ser como o seu mestre. Porque vês o cisco que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua?”. E ainda: Não há árvore boa que dê mau fruto, nem árvore má que dê bom fruto”.

Continuamos ainda no ambiente do “discurso da planície”, onde Jesus apresenta os elementos fundamentais da existência cristã. Provavelmente, Lucas concentrou aqui um conjunto de frases ou de ditos de Jesus que, originalmente, tinham um contexto diverso e foram pronunciados em alturas diversas.

Dois contextos – O texto de hoje começa com um provérbio (“poderá um cego guiar outro cego?”) que Mateus coloca num contexto completamente diferente do de Lucas: enquanto que em Mateus (Mt 15,14) ele aparece num contexto de crítica aos fariseus, aqui é uma advertência contra os falsos mestres na comunidade cristã. Provavelmente, Lucas quer pôr a comunidade de sobreaviso em relação a esses mestres pouco ortodoxos que, na década de 80, começam a aparecer nas comunidades e cujas doutrinas apresentam desvios sérios em relação ao essencial da mensagem de Jesus Cristo.

Mestre – O verdadeiro mestre será sempre um discípulo de Jesus, o mestre por excelência; e a doutrina apresentada não poderá afastar-se daquilo que Jesus disse e ensinou. Quando alguém apresenta a própria doutrina, e não as propostas de Jesus, está desorientando os irmãos. A comunidade deve ter isto presente, a fim de não se deixar conduzir por caminhos que a afastem do verdadeiro caminho que é Jesus.

Julgamento – Um segundo desenvolvimento, diz respeito ao julgamento dos irmãos. Há na comunidade cristã pessoas que se consideram iluminadas, que “nunca se enganam e raramente têm dúvidas”, muito exigentes para com os outros, que não reparam nos seus telhados de vidro quando criticam os irmãos... Apresentam-se muito seguros de si, às vezes com atitudes de autoridade, de orgulho e de prepotência e são incapazes de aplicar a si próprios os mesmos critérios de exigência que aplicam aos outros.

Hipócritas – Esses são (a palavra é dura, mas não a podemos evitar) “hipócritas”: o termo não designa só o homem dissimulado, falso, cujos atos não correspondem ao seu pensamento e às suas palavras, mas equivale ao termo aramaico “hanefa” que, no Antigo Testamento, significa, ordinariamente, “perverso”, “ímpio”. Pode o verdadeiro discípulo de Jesus ser “perverso” e “ímpio”? Na comunidade de Jesus não há lugar para esses “juízes”, intolerantes e intransigentes, que estão sempre à procura da mais pequena falha dos outros para condenar, mas que não estão preocupados com os erros e as falhas – às vezes bem mais graves – que eles próprios cometem. Quem não está numa permanente atitude de conversão e de transformação de si próprio não tem qualquer autoridade para criticar os irmãos.

Critério – Lucas apresenta o critério para discernir quem é o verdadeiro discípulo de Jesus: é aquele que dá bons frutos. Neste contexto, parece dever ligar-se os “bons frutos” com a verdadeira proposta de Jesus: dá bons frutos quem tem o coração cheio da mensagem de Jesus e a anuncia fielmente; e essa mensagem não pode gerar senão união, fraternidade, partilha, amor, reconciliação. Quando as palavras de um “mestre” geram divisão, tensão, desorientação, confrontação na comunidade, elas revelam um coração cheio de egoísmo, de orgulho, de amor próprio, de autossuficiência: cuidado com esses “mestres”, pois eles não são verdadeiros.