sábado, 2 de novembro de 2019

A riqueza dos pobres de espírito



O Evangelho deste domingo (Mt 5,1-12) propõe a passagem das Bem-aventuranças.  Propomos, a seguir, uma reflexão do padre Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia de Roma.

Compaixão pelos ingênuos? - O Evangelho deste domingo começa com a célebre frase: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”. A afirmação “bem-aventurados os pobres de espírito”, com frequência, é mal-entendida hoje ou, inclusive, se cita com algum sentimento de compaixão, como se fosse uma expressão que faz referência à credulidade dos ingênuos.

Frase completa – Mas Jesus jamais disse simplesmente: “Bem-aventurados os pobres de espírito!”; nunca sonhou pronunciar algo assim. Disse: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”, que é muito distinto. Deturpa-se completamente o pensamento de Jesus, banalizando-o, quando se cita sua frase pela metade, pois, assim, separa-se a bem-aventurança de seu motivo. Seria, suponhamos, o mesmo que dizer: “O que semeia...”. O que se entende disso? Nada! Mas se acrescentarmos: “colhe”, imediatamente tudo se esclarece. Se Jesus tivesse dito apenas: “Bem-aventurados os pobres!”, isso também soaria absurdo, mas quando acrescenta: “porque deles é o Reino dos Céus”, tudo se faz compreensível.

Reino que subverte – Mas que bendito Reino dos Céus é este, que realizou uma verdadeira “inversão de todos os valores?” É a riqueza que não passa, que os ladrões não podem roubar nem a traça consumir. É a riqueza que não se deve deixar para outros com a morte, mas que se leva consigo. É o “tesouro escondido” e a “pérola preciosa”, aquilo que, para se possuir, vale a pena deixar tudo, – diz o Evangelho. O Reino de Deus, em outras palavras, é o próprio Deus.

Que Reino é esse? – A chegada do Reino de Deus produziu uma espécie de “crise de governo” de alcance mundial, uma mudança radical. Abriu horizontes novos, em alguma medida, como no século XV, quando, se descobriu que existia um outro mundo, a América, e as potências que ostentavam o monopólio do comércio com o Oriente, como Veneza, se viram surpreendidas de repente e entraram em crise.

Quem é rico hoje? – Os velhos valores do mundo – dinheiro, poder, prestígio – mudaram, ficaram relativos e inclusive foram rejeitados por causa da chegada do Reino. E agora, quem é o rico? Talvez um homem tenha uma enorme soma em dinheiro; durante a noite ocorre uma desvalorização total; pela manhã se levanta sem nada ter, mesmo que não saiba ainda.

O “investimento” do pobre – Os pobres, pelo contrário, estão em vantagem com a vinda do Reino de Deus, porque ao não terem nada que perder estão mais dispostos a acolher a novidade e não temem a mudança. Podem investir tudo na nova moeda. Estão mais preparados para crer.

Mudança social ou de fé? – Acredita-se, hoje, que as mudanças que contam são aquelas visíveis e sociais e não as que ocorrem na fé. Mas quem tem razão? No século passado, vimos acontecer muitas revoluções sociais; contudo, também vimos depois de algum tempo, que tais mudanças acabam por reproduzir, com outros protagonistas, a mesma situação de injustiça que pretendiam eliminar.

Vendo com o Evangelho – Há planos e aspectos da realidade que não se percebem à primeira vista, só com a ajuda de uma luz especial. Atualmente, com os satélites artificiais, são feitas inúmeras fotografias, com raios infra-vermelhos, de regiões inteiras da Terra, e podemos ver quão diferente é o panorama com esta luz! O Evangelho e, em particular, nossa bem-aventurança dos pobres, nos dá uma imagem do mundo “com raios infra-vermelhos”. Permite captar o que está por baixo ou mais além da aparência. Permite distinguir o que passa e o que fica. A riqueza do pobre é o Reino de Deus.

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