sexta-feira, 27 de maio de 2022

A Ascensão de Jesus aconteceu no dia da Páscoa ou 40 dias depois?

 


Neste domingo celebramos a Festa da Ascensão de Jesus. Os textos bíblicos que serão lidos nas missas apresentam uma contradição nas datas: enquanto o Evangelho de Lucas apresenta a ressurreição e a ascensão próprio dia de Páscoa, o livro Atos dos Apóstolos descreve a ascensão 40 dias após. Vejamos os textos.

 Crise – A primeira leitura (At 1,1-11), das missas deste domingo tirada do livro dos “Atos dos Apóstolos” (escrito por Lucas), dirige-se a comunidades que vivem num certo contexto de crise. O texto foi escrito na década de 80, cerca de cinquenta anos após a morte de Jesus. Passou já a fase da expectativa pela vinda iminente do Cristo glorioso para instaurar o “Reino” e há certa desilusão. As questões doutrinais trazem alguma confusão; a monotonia favorece uma vida cristã pouco comprometida; falta o entusiasmo e o empenho… O quadro geral é o de certo sentimento de frustração, porque o mundo continua igual e a esperada intervenção vitoriosa de Deus continua adiada. Quando vai concretizar-se, de forma plena e inequívoca, o projeto salvador de Deus?

40 dias – No versículo 3 (At 1,3) Lucas descreve a ascensão de Jesus, fazendo referência aos “quarenta dias” que mediaram entre a ressurreição e a ascensão, durante os quais Jesus falou aos discípulos “a respeito do Reino de Deus”. O número quarenta é, certamente, um número simbólico: é o número que define o tempo necessário para que um discípulo possa aprender e repetir as lições do mestre. Aqui define, portanto, o tempo simbólico de iniciação ao ensinamento do Ressuscitado.

 Evangelho – No Evangelho das missas deste domingo (Lc 24,46-53) o mesmo autor (Lucas) situa-nos no dia de Páscoa. No capítulo 24, ele descreve que Jesus se manifestou aos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) e aos onze, reunidos no cenáculo (Lc 24,36-43). No texto que nos é proposto nas missas, apresentam-se as últimas instruções de Jesus (Lc 24,44-49), depois Jesus levou os discípulos até Betânia e, erguendo as mãos, abençoou-os. Enquanto os abençoava, afastou-Se deles e foi elevado ao Céu (Lc 24,50-53).

 Contradição – Notem que, o mesmo autor (Lucas), em seus dois livros (Evangelho e Atos dos Apóstolos) descreve a ascensão de Jesus com as mesmas instruções em datas diferentes: no Evangelho a ascensão aconteceu no dia da Páscoa e “mandou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai” (Lc 24,49); no livro Atos dos Apóstolos, a ascensão aconteceu 40 dias após a Páscoa, com a instrução "permanecei na cidade, até que sejais revestidos da força do alto” (Lc 1,3-4).

 Qual o correto? – Do ponto de vista teológico, o mais correto seria ressurreição, aparições de Jesus ressuscitado aos discípulos e ascensão colocados no mesmo dia, pois a ressurreição e ascensão não se podem diferenciar; são apenas formas humanas de falar da passagem da morte à vida definitiva junto de Deus.

sábado, 21 de maio de 2022

“Que desça teu Espírito e renove a face da terra”



 

No Evangelho das missas deste domingo (João 14,23-29), ainda encontramos Jesus na Última Ceia, na quinta-feira, dia 6 de abril do ano 30, no dia anterior a sua morte. Jesus, que acaba de fundar a sua comunidade, dando-lhe por estatuto o mandamento do amor, vai agora explicar como é que essa comunidade manterá, após a sua partida, a relação com Ele e com o Pai.

 

O texto – Jesus ensina aos discípulos: “A pessoa que me ama obedecerá à minha mensagem, e o meu Pai a amará. Tenho dito isso enquanto estou com vocês. Mas o Auxiliador, o Espírito Santo, que o Pai vai enviar em meu nome, ensinará a vocês todas as coisas e fará com que se lembrem de tudo o que eu disse a vocês. Deixo com vocês a paz. É a minha paz que eu lhes dou; não lhes dou a paz como o mundo a dá. Eu vou, mas voltarei para ficar com vocês."

 

Caminho – Nos versículos anteriores ao texto que nos é proposto, Jesus apresentou-Se como “o caminho” (Jo 14,6) e convidou os discípulos a percorrer esse mesmo “caminho” (Jo 14,4-5). O que é que isso significa? Jesus, enquanto esteve no mundo, percorreu um “caminho” – o da entrega ao homem, o do serviço, o do amor total; é nesse “caminho” que o Homem Novo, que Jesus veio criar, se realiza. A comunidade de Jesus tem, portanto, que percorrer esse “caminho”. A metáfora do “caminho” expressa o dinamismo da vida que é progressão; percorrê-lo, é alcançar a plena maturidade do Homem Novo, do homem que desenvolveu todas as suas potencialidades, do homem recriado para a vida definitiva. O final desse “caminho” é o amor radical, a solidariedade total com o homem. Nesse “caminho”, encontra-se o Pai.

 

Como? – Os discípulos, no entanto, estão inquietos e desconcertados. Será possível percorrer esse “caminho” se Jesus não caminhar ao lado deles? Como é que eles manterão a comunhão com Jesus e como receberão dele a força para doar, dia a dia, a própria vida?

 

Palavra – Para seguir esse “caminho” é preciso amar Jesus e guardar a sua Palavra (Jo 14,23). Quem ama Jesus e O escuta, identifica-se com Ele, isto é, vive como Ele, na entrega da própria vida em favor do homem… Ora, viver nesta dinâmica é estar continuamente em comunhão com Jesus e com o Pai. O Pai e Jesus, que são um, estabelecerão a sua morada no discípulo; viverão juntos, na intimidade de uma nova família.

 

Paráclito – Para que os discípulos possam continuar a percorrer esse “caminho” no tempo da Igreja, o Pai enviará o “Paráclito”, isto é, o Espírito Santo. A palavra “paráclito” pode traduzir-se como “advogado”, “auxiliador”, “consolador”, “intercessor”. A função do “Paráclito” é “ensinar” e “recordar” tudo o que Jesus propôs. Trata-se, portanto, de uma presença dinâmica, que auxiliará os discípulos trazendo-lhes continuamente à memória os ensinamentos de Jesus e ajudando-os a ler as propostas de Jesus à luz dos novos desafios que o mundo lhes colocar.

 

Espírito – Assim, os crentes poderão continuar a percorrer, na história, o “caminho” de Jesus, numa fidelidade dinâmica às suas propostas. O Espírito garante, dessa forma, que o crente possa continuar a percorrer esse “caminho” de amor e de entrega, unido a Jesus e ao Pai. A comunidade cristã e cada homem tornam-se a morada de Deus: na ação dos crentes revela-se o Deus libertador, que reside na comunidade e no coração de cada crente e que tem um projeto de salvação para o homem.

 

Paz – A última parte do texto que nos é proposto contém a promessa da “paz”. Desejar a “paz” (“shalom”) era a saudação habitual à chegada e à partida. No entanto, neste contexto, a saudação não é uma despedida trivial, pois Jesus não vai estar ausente. O que Jesus pretende é inculcar nos discípulos apreensivos a serenidade e evitar-lhes o temor. São palavras destinadas a tranquilizar os discípulos e a assegurar-lhes que os acontecimentos que se aproximam não porão fim à relação entre Jesus e a sua comunidade. As últimas palavras referidas por este texto (v. 28-29) sublinham que a ausência de Jesus não é definitiva, nem sequer prolongada. De resto, os discípulos devem alegrar-se, pois a morte não é uma tragédia sem sentido, mas a manifestação suprema do amor de Jesus pelo Pai e pelos homens.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

“O Pai e eu somos um”


No Evangelho das missas deste domingo (Jo 10,27-30) Jesus discute com as autoridades judaicas. Estamos nas proximidades do Templo de Jerusalém, em outubro do ano 29 (em abril do ano 30, Jesus será condenado e morto).

 

O texto – Naquele tempo, disse Jesus: "As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem. Eu dou-lhes a vida eterna e elas jamais se perderão. E ninguém vai arrancá-las de minha mão. Meu Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatá-las da mão do Pai. Eu e o Pai somos um".

 

Imagem – Estas palavras de Jesus ocorrem em um discurso mais longo, pronunciado durante a Festa da Dedicação, em Jerusalém. Na festa anterior, das Tendas, Jesus já fizera uma proclamação semelhante: "Eu sou o Bom Pastor". A imagem é bela e permanece guardada nos corações através dos séculos. Embora seja uma imagem rural e mais específica de determinadas regiões, é facilmente compreendida por todos, pois exprimem uma relação de diálogo e acolhida, algo já existente entre Jesus e os discípulos: o proclamar/falar e o conhecer, ouvir e seguir. É a palavra e a escuta que estabelecem o diálogo. É o diálogo que leva ao conhecimento e à união de amor, o seguimento.

 

Conhecer – Assim, fica claro que as ovelhas são os discípulos (pois o verdadeiro discípulo ouve a palavra do Senhor e o segue), e eles são conhecidos pelo Pastor – aqui cumpre lembrar que, na linguagem bíblica, a palavra “conhecer” tem conotações mais profundas do que no nosso uso comum: significa não tanto um saber intelectual, mas uma intimidade profunda do amor. Assim, a linguagem bíblica muitas vezes até usa o verbo “conhecer” para significar relação sexual. Maria, por exemplo, questiona o anjo, pois ela “não conhece” homem (Lc 1,34). O verdadeiro discípulo é aquele que realmente tem um relacionamento de intimidade com Deus e que põe em prática a sua Palavra. E quem conhece Jesus, conhece o Pai, pois “o Pai e eu somos um”, como diz Jesus no nosso texto.

 

Conhecer mais – O versículo 28 afirma que Jesus dá a vida eterna aos seus seguidores. Este é um tema típico de João e outros textos do evangelho podem nos ajudar a aprofundá-lo. No Último Discurso, Jesus explica o que consiste a vida eterna: “A vida eterna é esta: que eles conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que tu enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3). Mais uma vez, liga o conceito da vida eterna com o de “conhecer”. Mas em que consiste “conhecer” a Deus?

 

Conhecer Deus – O profeta Jeremias pode esclarecer. Num trecho contundente, onde ele enfrenta o Rei Joaquim e o condena por não pagar os salários dos seus operários na construção do seu palácio, Jeremias diz o seguinte, referindo-se ao falecido rei justo, Josias: "Ele julgava com justiça a causa do pobre e do indigente; e tudo corria bem para ele! Isso não é conhecer-me? – oráculo de Javé” (Jr 22,16). Conhecer Deus não é em primeiro lugar um exercício intelectual, mas uma atitude de vida – a prática da justiça, especialmente em favor do oprimido e fraco. Segundo João, então, a vida eterna é o prêmio de quem pratica a justiça de Deus – proposta dos discípulos de Jesus – e não dos que “sabem” muita coisa sobre Deus, mas que não praticam a justiça – representados no texto de hoje pelas autoridades do templo.

 

Coragem, fé e obras – O nosso texto nos traz motivo de muita coragem, pois afirma que ninguém vai arrancar o verdadeiro discípulo da mão de Jesus (v 28). Mas também nos desafia para que verifiquemos se somos realmente discípulos verdadeiros, se conhecemos Jesus e o Pai, isto é, se praticamos a justiça do seu Projeto. A prova de ser verdadeiro discípulo está na prática das obras do Pai e não no conhecimento teórico de religião.