sábado, 26 de novembro de 2022

Fiquem atentos

  


Estamos iniciando o ano litúrgico, com o primeiro domingo do Advento. O texto do Evangelho das missas (Mt 24,37-44) é tirado do último grande discurso de Jesus antes de sua Paixão e morte.

 Composição – Para compô-lo, Mateus reescreveu o chamado “discurso escatológico” do capítulo 13 de Marcos (lembre-se que o Evangelho de Mateus tem como fonte o Evangelho de Marcos), ampliando-o e mudando substancialmente o tema central: se no discurso transmitido por Marcos, a questão principal é a dos sinais que precederão a destruição de Jerusalém e do Templo, no discurso reelaborado por Mateus a questão central é a da vinda do Filho do homem e das atitudes com que os discípulos devem preparar essa vinda.

 Qual a razão? – A mudança do tema do discurso pode ser explicada pela situação em que vivia a comunidade de Mateus e suas necessidades. Estamos na década de 80. Passaram dez anos sobre a destruição de Jerusalém e ainda não aconteceu a segunda vinda de Jesus. Os crentes estão desanimados e desiludidos… O evangelista contempla com preocupação os sinais de abandono, de desleixo, de rotina, de esfriamento que começam a aparecer na comunidade e sente que é preciso renovar a esperança e levar os crentes a comprometer-se na história, construindo o “Reino”.

 Exortação – Nesta situação, Mateus descobre que as palavras de Jesus encerram um profundo ensinamento e compõe com elas um conselho dirigido aos cristãos. Esta exortação fundamenta-se numa profunda convicção: a vinda do “Filho do homem” é um fato certo, ainda que não aconteça logo; enquanto não chega o momento, é preciso preparar este grande acontecimento, vivendo de acordo com os ensinamentos de Jesus.

 Linguagem – A linguagem destes capítulos é estranha e enigmática… Trata-se, no entanto, de um gênero usado com alguma frequência por alguns grupos judeus e cristãos da época de Jesus. É a linguagem “apocalíptica”, porque o seu objetivo é “revelar algo escondido” (“apocaliptô). Em muitas ocasiões, esta revelação é dirigida a comunidades que vivem numa situação de sofrimento, de desespero, de perseguição; o objetivo é animá-las, dar-lhes esperança, mostrar-lhes que a vitória final será de Deus e daqueles que forem fiéis.

 Vigilantes – Para Mateus, a vinda do Senhor é certa, embora ninguém saiba o dia nem a hora (Mt 24,36); aos crentes resta estar vigilantes, preparados e ativos… Para transmitir esta mensagem, Mateus usa três quadros… O primeiro é o quadro da humanidade na época de Noé: os homens viviam, então, numa alegre inconsciência, preocupados apenas em gozar a sua “vidinha” descomprometida; quando o dilúvio chegou, apanhou-os de surpresa e despreparados… Se o “aproveitar a vida” ao máximo for para o homem uma prioridade fundamental, ele arrisca-se a deixar de lado o que é importante e a não cumprir o seu papel no mundo.

 Trabalho – O segundo quadro coloca-nos diante de duas situações da vida cotidiana: o trabalho agrícola e a moagem do trigo… Os compromissos e trabalhos necessários à subsistência do homem também não podem ocupá-lo de tal forma que o levem a negligenciar o essencial: a preparação da vinda do Senhor.

 Alerta – O terceiro quadro apresenta o exemplo do dono de uma casa que adormece e deixa que a sua casa seja saqueada pelo ladrão… Os crentes não podem, nunca, deixar-se adormecer, pois o seu sono pode levá-los a perder a oportunidade de encontrar o Senhor que vem.

 Prioridade – A questão fundamental é, portanto, esta: o crente ideal é aquele que está sempre vigilante, atento, preparado, para acolher o Senhor que vem. Não perde oportunidades, porque não se deixa distrair com os bens deste mundo, não vive obcecado com eles e não faz deles a sua prioridade fundamental… Mas, dia a dia, cumpre o papel que Deus lhe confiou, com empenho e com sentido de responsabilidade.

sábado, 19 de novembro de 2022

“Tudo passa, só Deus basta”

  


Estamos iniciando o ano litúrgico, com o primeiro domingo do Advento. O texto do Evangelho das missas (Mt 24,37-44) é tirado do último grande discurso de Jesus antes de sua Paixão e morte. Para a reflexão deste Evangelho transcrevemos o texto do Pe. Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia do Vaticano.

 Mateus – Neste domingo começa o primeiro ano do ciclo litúrgico trienal, chamado ano “A”. Nele nos acompanha o Evangelho de Mateus. Algumas características deste Evangelho são: a amplitude com a qual se referem aos ensinamentos de Jesus (os famosos sermões, como o da montanha), a atenção à relação Lei-Evangelho (o Evangelho é a “nova Lei”). Ele é considerado como o Evangelho mais “eclesiástico” pelo relato do primado de Pedro e pelo uso do termo “Ecclesia” (Igreja), que não se encontra nos outros três Evangelhos.

 Velai – A palavra que destaca sobre todas, no Evangelho deste primeiro domingo do Advento, é: “Velai, pois, porque não sabeis que dia virá o vosso Senhor... Estai preparados, porque no momento que não penseis, virá o Filho do homem”. Pergunta-se às vezes por que Deus nos esconde algo tão importante como a hora de sua vinda, que para cada um de nós, considerado singularmente, coincide com a hora da morte.

 A resposta tradicional é: “Para que estivéssemos alerta, sabendo cada um que isso pode acontecer em seus dias” (Santo Efrém). Mas o principal motivo é que Deus nos conhece; sabe que terrível angústia teria sido para nós conhecer com antecipação a hora exata e assistir à sua lenta e inexorável aproximação. Isso é o que mais atemoriza em certas doenças. São mais numerosos hoje os que morrem de afecções imprevistas de coração do que os que morrem de “penosas doenças”. No entanto, dão mais medo estas últimas, porque nos parece que privam dessa incerteza que nos permite esperar. A incerteza da hora não deve levar-nos a viver despreocupados, mas como pessoas vigilantes.

 O ano litúrgico está em seu início, enquanto o ano civil chega a seu fim. Uma ocasião ótima para fazer espaço para uma reflexão sábia sobre o sentido de nossa existência. A própria natureza no outono nos convida a refletir sobre o tempo que passa. O que o poeta Giuseppe Ungaretti dizia dos soldados na trincheira do Carso, durante a primeira guerra mundial, vale para todos os homens: “Estão / como no outono / nas árvores / nas folhas”. Isto é, a ponto de cair, de um momento a outro. “O tempo passa e o homem não percebe isso”, dizia Dante.

 Tudo passa – Um antigo filósofo expressou esta experiência fundamental com uma frase que se tornou célebre: «panta rei», ou seja, tudo passa. Ocorre na vida como na televisão: os programas se sucedem rapidamente e cada um anula o precedente. A tela continua sendo a mesma, mas as imagens mudam. É igual conosco: o mundo permanece, mas nós passamos, um após o outro.

 Nada – De todos os nomes, os rostos, as notícias que enchem os jornais e os noticiários do dia – de mim, de você, de todos nós – o que permanecerá daqui a um ano ou década? Nada de nada. O homem não é mais que “um traço criado pela onda na areia do mar e que a onda seguinte apaga”.

 Só Deus basta – Vejamos o que a fé tem a dizer-nos a propósito deste fato de que tudo passa. “O mundo passa, mas quem cumpre a vontade de Deus permanece para sempre” (1Jo 2, 17). Assim, existe alguém que não passa, Deus, e existe uma forma de que nós não passemos totalmente: fazer a vontade de Deus, ou seja, crer, aderir a Deus. Nesta vida somos como pessoas em uma balsa que um rio leva ao mar aberto, sem retorno. Em certo momento, a balsa passa perto da margem. O náufrago diz: “Agora ou nunca!”, e salta até a terra firme. Que suspiro de alívio quando sente a rocha sob seus pés! É a sensação experimentada frequentemente por quem chega à fé. Poderíamos recordar, como conclusão desta reflexão, as palavras que Santa Teresa de Ávila deixou como uma espécie de testamento espiritual: “Nada te perturbe, nada te espante. Tudo passa, só Deus basta”.

sábado, 12 de novembro de 2022

Não ficará pedra sobre pedra

 

 


No Evangelho deste domingo (Lc 21,5–9), Jesus está no pátio do Templo de Jerusalém conversando com algumas pessoas sobre as belas pedras usadas na construção do Templo. Durante a conversa, Jesus faz a previsão de que tudo será destruído: “Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído.”

 

O Templo – O Templo de Jerusalém era o principal centro de culto da religião do povo de Israel, onde se realizavam as diversas ofertas e sacrifícios. De acordo com a tradição judaico-cristã, o Primeiro Templo foi iniciada a sua construção no terceiro ano do reinado de Salomão e concluído sete anos depois. Foi saqueado várias vezes e acabou por ser totalmente incendiado e destruído por Nabucodonosor II, em 587 A.C. Segundo o relato bíblico, o templo foi mandado reconstruir por decreto de Ciro II da Pérsia no ano 539 a.C., com a volta dos judeus mantidos em cativeiro na Babilônia.

 Remodelação de Herodes – No século I a.C., Herodes, o Grande, ordenou uma remodelação ao templo (considerada por muitos judeus como uma profanação) com o propósito de agradar a César, mandando construir num dos vértices da muralha a Torre Antonia, uma guarnição romana que dava acesso direto ao interior do pátio do Templo.

 Guerra Judaica – Grande Revolta Judaica foi a guerra travada pelos judeus contra o Império romano de 66 a 73 d.C. Teve início em 66, como reação a ataques contra locais de culto judaicos. Em 70, as legiões do general Titus cercaram e destruiram Jerusalém (cada legião era formada de 4 a 8 mil soldados, além de escravos e ajudantes). O Templo foi então saqueado e incendiado pelos romanos. Conforme historiadores da época, morreram um milhão e cem mil judeus e noventa e sete mil foram levados presos. A cidade de Jerusalém foi totalmente destruída e incendiada. Deste templo, só restou o que conhecemos como o Muro das Lamentações.

 Diáspora Judaica – A explulsão dos judeus da Terra Santa é um evento central na história da Diáspora Judaica. Os judeus se dispersaram pelo mundo, formando um povo sem território. Apenas em 1948 (quase dois mil anos após a Guerra Judaica) foi criado o Estado de Israel, um país para abrigar os judeus.

 Após a queda – Depois de anuncia a destruição de Jerusalém, Jesus faz uma reflexão sobre o “tempo da Igreja”, que culminará com a Sua segunda vinda. Como será esse tempo? Como vivê-lo?

 Não será o fim – Em primeiro lugar, Lucas sugere que, após a destruição de Jerusalém, surgirão falsos messias e visionários que anunciarão o fim. Lucas avisa: “não será logo o fim”. A destruição de Jerusalém no ano 70 deve ter parecido aos cristãos o prenúncio da segunda vinda de Jesus e alguns pregadores populares deviam alimentar essas ilusões… Mas Lucas (que escreveu o Evangelho nos anos 80) quer eliminar essa febre escatológica que crescia em certos setores cristãos: em lugar de viverem obcecados com o fim, os cristãos deviam preocupar-se em viver uma vida cristã cada vez mais comprometida com a transformação “deste” mundo.

 Tempo de espera – Em segundo lugar, Lucas diz aos cristãos que, paulatinamente, irá surgindo um mundo novo. Para dizer isso, Lucas recorre a imagens apocalípticas (um povo se erguerá contra outro povo e reino contra reino; haverá grandes terremotos e, em diversos lugares, fome e epidemias; haverá fenômenos espantosos e grandes sinais no céu), muito usadas pelos pregadores populares da época para falar da queda do mundo velho – o mundo do pecado, do egoísmo, da exploração – e do surgimento de um mundo novo… A questão, portanto, é esta: no tempo entre a queda de Jerusalém e a segunda vinda de Jesus, o “Reino de Deus” estará se manifestando; o mundo velho desaparecerá e nascerá um mundo novo. É claro que a libertação plena e definitiva só acontecerá com a segunda vinda de Jesus.

 Dificuldades – Em terceiro lugar, Lucas põe os cristãos de sobreaviso para as dificuldades e perseguições que marcarão a caminhada histórica da Igreja, até à segunda vinda de Jesus. Lucas lembra-lhes, contudo, que não estarão sós, pois Deus estará sempre presente; será com a força de Deus que eles enfrentarão os adversários e que resistirão à tortura, à prisão e à morte; será com a ajuda de Deus que eles poderão, até, resistir à dor de ser atraiçoados pelos próprios familiares e amigos…

 Missão da Igreja – O discurso escatológico define, portanto, a missão da Igreja na História (até à segunda vinda de Jesus): dar testemunho da Boa Nova e construir o Reino. Os discípulos nada deverão temer: haverá dificuldades, mas eles terão sempre a ajuda e a força de Deus.