sábado, 25 de fevereiro de 2023

Pilatos: obstinado, leviano, autoritário, covarde e ... santo?

 

Estamos na Quaresma. Durante os 6 domingos da Quaresma vamos detalhar os principais fatos e personagens que compõem a história da Paixão de Cristo.

 Pilatos: quem era? Pilatos foi governador da Judéia e Samaria do ano 26 a 36 d.C., em substituição a Arquelau (filho de Herodes, o Grande). Governava com base na cidade de Cesaréia, com 5600 soldados. Quando viajava para Jerusalém, residia na fortaleza Antonia, ao lado do Templo. Tinha aversão aos judeus e seus sacerdotes. O historiador Flavio Josefo (no livro Guerra dos Judeus) conta dois episódios entre Pilatos e os judeus: logo que chegou à Jerusalém, Pilatos distribuiu imagens (bustos) do imperador Tibério pela cidade, causando uma grande revolta; depois, Pilatos se apropriou (usando violência) dos tesouros do Templo para financiar um aqueduto (de 50 km) para trazer água para a cidade.

 Julgamento de Jesus – Na leitura da Paixão de Cristo, nos Evangelhos, Pilatos recebe a comitiva dos chefes dos sacerdotes judeus (do Sinédrio), pedindo a condenação à morte de Jesus. Fica clara a postura de Pilatos em absolver o condenado (não que nutria alguma admiração por Jesus), mas via uma boa oportunidade de se opor aos sacerdotes judaicos.

 Ainda o julgamento – Usou três estratégias na tentativa da absolvição: primeiro, enviou o prisioneiro a Herodes Antipas, o rei da Galiléia. Fracassou, pois Herodes mandou Jesus de volta. A segunda tentativa (já que nem ele nem Herodes não viam culpa em Jesus) foi dar como pena o açoite, para colocá-lo em liberdade. Também não deu certo, pois os judeus continuavam pedindo para crucificá-lo.  A terceira tentativa foi colocar Jesus junto com Barrabás, para o povo escolher quem teria a liberdade. Também não deu certo.

 Ameaça – Com o povo gritando: "Só temos um rei, que é César", Pilatos não tinha mais saída. A sua obediência (e temor) ao Imperador Tibério bloqueavam as suas ações. Num gesto inusitado (e até teatral), mostrando que conhecia as tradições judaicas, pediu uma bacia com água e lavou as mãos, livrando-se de qualquer responsabilidade do que viria a acontecer com Jesus. Cabe lembrar que “lavar as mãos” era uma maneira judaica (não romana) de expressar a não-participação em derramamento de sangue (Deuteronômio 21,6-7).

 Cristãos – O último evento registrado da carreira de Pilatos foi uma intervenção militar no Monte Garizim (ano 36), onde muitos Samaritanos foram mortos. Após este conflito, Pilatos foi chamado a Roma para explicar suas ações ao imperador (Tibério faleceu antes de ouvir Pilatos). Segundo os autores cristãos Tertuliano (autor cristão, padre apostólico, viveu entre 160 e 220 d.C) e Eusébio de Cesaréia (bispo de Cesaréia e pai da história da Igreja, viveu entre 263 e 339), o imperador Tibério, baseado no relatório de Pilatos sobre Jesus, apresentou ao Senado Romano os fatos que haviam acontecido na Palestina, que revelavam a divindade de Cristo, propondo o reconhecimento da religião cristã. O Senado rejeitou a proposta, adiando em 300 anos a proclamação, que viria com Constantino.

 

Santo? – Existem três hipóteses para a morte de Pilatos: foi punido e exilado pelo imperador Calígula; suicidou-se no exílio (na Gália); converteu-se, com a cumplicidade da esposa, ao cristianismo. Se essa história contada por Tertuliano e Eusébio for verdadeira, a figura do Governador da Judéia merece ser revisitada; aquela manhã de 7 de abril do ano 30 (julgamento de Jesus) realmente mudou a sua vida. Por estes fatos, as igrejas Ortodoxa e Ortodoxa Etíope promoveram a canonização de Pilatos e de sua esposa (Cláudia Prócula).

 

Pilatos – Há uma densa escuridão sobre o destino desse homem que veio a fazer parte inclusive do Credo. Como conclusão, podemos citar o personagem Pilatos no filme Jesus Cristo Superstar, que canta angustiado: "Sonhei que milhares de pessoas, por milhares de anos, repetirão todos os dias o meu nome. E também dirão que foi culpa minha".

 

Quer ler mais? – Gostou da história de Pilatos? Podemos lhe oferecer por E-mail os seguintes textos apócrifos: Cartas de Pilatos ao imperador; Cartas de Pilatos a Herodes; Relatório de Pilatos ao imperador sobre a morte de Jesus; Julgamento, condenação e morte de Pilatos; Sentença de condenação de Jesus emitida por Pilatos; Evangelho de Nicodemus. Outros textos: “Encontros com Jesus” de autoria de Stefano Zurlo (4 pág); “Diante de seus juízes” de autoria de Yann Le Bohec (4 pag); “Guerra Judaica” de Flavio Josefo (1627 pag). Todos os textos em Português.

sábado, 18 de fevereiro de 2023

JESUS ORDENOU AMAR OS INIMIGOS?

Nos seus ensinamentos no Sermão da Montanha, Jesus nos diz: “amem seus inimigos” (Mt 5,44). Diante dessa afirmação, surgem várias dúvidas: é possível mandar no amor? Alguém pode ordenar-nos sentir afeto por outro? A manifestação de carinho é espontânea? Como é possível amar alguém que é nosso inimigo?

 

Raiz do problema – Todo o problema dessa passagem está na tradução das palavras de Jesus. Na língua portuguesa usamos sempre o mesmo verbo “amar”, para qualquer sentimento amoroso a que queremos nos referir. Na língua grega (em que foram compostos os Evangelhos), existem quatro verbos distintos para indicar “amar”, cada um com sentidos diferentes.

 

Amor romântico – Em primeiro lugar temos o verbo erao (de onde vem a palavra eros e seu adjetivo erótico). Significa amar em seu sentido romântico, carnal, sexual. Emprega-se para a atração entre um homem e uma mulher, em seu aspecto espontâneo e instintivo. Na Bíblia, aparece o verbo “erao” várias vezes: “O rei amou (erao) a Éster mais que as outras mulheres de sua corte” (Est 2,17). “Vou reunir todos os que te amaram (erao)” (Ez 16,37).  

 

Amor familiar – Outro verbo grego que significa amar é stergo. Indica o amor familiar, o carinho do pai por seu filho e do filho pelo pai. É o amor doméstico, de família, que brota naturalmente dos laços do parentesco. São Paulo, em sua Carta aos Romanos escreve: “Tenham uma caridade sem fingimento: amem-se cordialmente (stergo) uns aos outros” (Rom 12,10).

 

Amor de amigos – O terceiro verbo grego usado para designar “amor” é fileo. Expressa o amor da amizade, o afeto que se sente pelos amigos. Quando Lázaro, o amigo de Jesus, estava doente, as suas irmãs mandaram dizer: “Senhor, aquele a quem tu amas (fileo) está enfermo” (Jo 11,3). Quando Maria Madalena não encontra o corpo de Jesus no sepulcro, sai correndo para encontrar Pedro “e o outro discípulo que Jesus amava (fileo)” (Jo 20,2). Na parábola do filho pródigo, o irmão reclama ao pai: “Faz tantos anos que te sirvo e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com meus amigos (filos)” (Lc 15,29).

 

Amor caritativo – O quarto verbo grego para “amar” é agapao. É utilizado para o amor de caridade, de benevolência, de boa vontade, o amor capaz de dar sem esperar nada em troca. É o amor totalmente desinteressado, completamente abnegado, o amor com sacrifício. O evangelista João usa o verbo “agapao” na descrição da Última Ceia: “Sabendo Jesus que havia chegado a hora de passar deste mundo ao Pai, tendo amado (agapao) aos seus, os amou até o fim” (Jo 13,1).  Ou ainda: “Como o Pai me amou, eu também os amo (agapao)” (Jo 15,9). E quando encontra os apóstolos: “Nada tem maior amor (agápe) do que dar a vida por seus amigos” (Jo 15,13).

 

Jogo de Palavras – Um exemplo interessante é o episódio em que Jesus ressuscitado aparece aos apóstolos no lago de Tiberíades (Jo 21,15s) e pergunta três vezes a Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais que estes?”. Jesus usa o verbo agapao: ”Simon, agapás me?”. Pedro lhe responde com fileo: “Filo se”. Jesus pergunta a Pedro se ele o ama com amor total, amor de entrega de serviço, e Pedro lhe responde humildemente com fileo, menos pretensioso. Na segunda vez, Jesus volta a perguntar: “Simon, agapás me? E Pedro novamente responde com fileo. Na terceira vez, Jesus sabendo esperar com paciência o processo de maturidade de cada um, usa o verbo fileo: “Simon, fileis me? Então Pedro se entristece ao identificar o sentido da pergunta.

 

Amar os inimigos? – Voltando agora à frase de Jesus, ordenando que se ame os inimigos, Jesus não utilizou o verbo erao, nem stergo nem fileo. Usou o verbo agapao. Jesus nunca pediu que amássemos os inimigos do mesmo modo que amamos nossos entes queridos. Nem pretendeu que sentíssemos o mesmo afeto que sentimos por nosso cônjuge (erao), nossos familiares (stergo) ou nossos amigos (fileo). Se quisesse isso, teria usado os outros verbos.

 

Amor ágape O que Jesus exige é o amor ágape. Este não consiste em um sentimento, nem afeto, nem algo de coração (senão seria impossível cumprir). O ágape que Jesus pede é uma decisão, uma atitude, uma determinação que depende da vontade. Não nos obriga a sentir apreço ou estima, nem devolver a amizade por quem nos tenha ofendido. O que Jesus pede é a capacidade de ajudar e prestar um serviço de caridade, se algum dia aquele que nos ofendeu necessitar.

 

QUER SABER MAIS – Gostou dos termos em grego? Se você quer conhecer o Novo Testamento em grego (na forma original em que foi escrito), solicite por E-mail.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Mc 6, 45: o versículo inexplicável

  


Os leitores da Coluna Ser Católico do Jornal da Cidade já devem estar familiarizados com os nomes das cidades nas quais Jesus desenvolveu a sua pregação. As cidades de Tiberíades, Magdala, Cafarnaum, Betsaida margeavam o lago de Genesaré (Mar da Galileia) e pertenciam à província da Galileia, na parte ocidental do lago (mapa).

 



 Betsaida – A cidade Betsaida (que significa “casa de pescadores”) é uma das cidades mais mencionadas nos Evangelhos: lar de Filipe, André e Pedro (Jo 1,44), local de curas (Mc 8,22), de viagens de Jesus (Lc 9,10) e da multiplicação dos pães (Lc 9,12s).

 Problema – No capítulo 6 do Evangelho de São Marcos, Jesus está com seus apóstolos na cidade de Cafarnaum. Quando Jesus soube que João Batista havia sido morto por Herodes Antipas (Mc 6,14–29) e com o objetivo de proteger a todos e a si próprio (Jesus sabia que também corria perigo, ver Mc 6, 14-16), o Mestre manda que os discípulos se dirijam para a outra margem do lago, saindo da Galiléia (governada por Herodes) e indo para a Traconítide, governada por Filipe.

 Mc 6,45 – “Logo em seguida, Jesus mandou que os discípulos entrassem no barco e fossem na frente para Betsaida, na outra margem, enquanto ele mesmo despediria a multidão”. Vejam no mapa o “erro geográfico” em Mc 6, 45: a cidade de Betsaida fica na mesma margem do lago, na Galiléia.

 O evangelista errou? – Se Cafarnaum está na Galileia, por que Marcos refere-se a Betsaida como sendo “do outro lado”? Seria incompreensível, portanto, que tivesse ido para Betsaida, do mesmo lado do lago e na província da Galileia. O evangelista errou?

 Erro de localização – Durante muitos séculos, os historiadores indicaram a localização da cidade de Betsaida na margem ocidental do Mar da Galiléia, causando esta dificuldade de interpretação do versículo Mc 6, 45. Nos últimos 20 anos, pesquisadores de várias universidades fazem escavações em um local chamado El Araj (ver no mapa). No local, foram encontrados casas e materiais de pescadores. A confirmação desta nova localização para a cidade de Betsaida (algumas Bíblias já trazem esta localização), corroboraria o versículo Mc 6, 45.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

"Vós sois o sal da terra"

  


O texto do Evangelho das missas deste domingo (Mt 5, 13-16) faz parte do Sermão da Montanha, cujos princípios foram resumidos nas Bem-aventuranças (Mt 5,1-12).

 Bem-aventuranças – Os versículos de hoje se dirigiam às comunidades dos pobres em espírito, cuja proposta de vida era a vivência do espírito das bem-aventuranças. Mateus usa as metáforas de sal e luz para aplicá-las aos ouvintes do Sermão da Montanha.

 Sal – O sal era de suma importância no Oriente Médio. Era usado como tempero para dar sabor à comida e também para conservá-la. Também a imagem do sal era usada para simbolizar a Sabedoria e a Lei. Mateus afirma que os discípulos devem fazer com que o mundo se torne saboroso em sua aliança com Deus, através da vivência que nasce da sabedoria de Jesus e a nova Lei, do Sermão da Montanha.

 Justiça – Se não assumirem essa missão, servem para nada e merecem ser jogados fora como sal insosso. Essa missão se realiza através da vivência da plena justiça, muito mais do que uma prática externa de leis: “Se a vossa justiça não for maior do que a dos doutores da Lei e dos fariseus, vocês não entrarão no Reino do Céu” (Mt 5,20).

 Imagens – As outras imagens também são tiradas da experiência da Palestina do tempo de Jesus. Se a imagem da “cidade situada sobre um monte" foi tirada de Galiléia, talvez se refira à cidade de Hippos, se não, poderia ser Jerusalém. A imagem da lâmpada que ilumina todos na casa, vem do fato de que a casa normal de um pobre na Palestina consistia de uma sala só. Através da prática dos discípulos, a luz de Deus deve iluminar a sociedade, desmascarando as injustiças e apontada para a justiça do Reino do Céu.

 Equilíbrio – O versículo 16 mantém um equilíbrio entre praticar as boas-obras e evitar o orgulho ou a vaidade por causa delas. A vida do discipulato descrita no Sermão não deve levar à arrogância, tão típica de alguns “piedosos” ou “justos”, mas à conversão de muitos ao Pai. Mateus se refere a Is 42,6 e 49,6 que mostram que o Servo de Deus traz luz e salvação para todos os povos.

 Missão – Mais uma vez, o Evangelho de Mateus enfatiza a missão da comunidade cristã. Somos chamados a dilatar o Reino de Deus no mundo. Não é possível ser discípulo e manter uma vida individualista, fechada em si própria. A nossa maior pregação deve ser a nossa luta em prol do mundo que Deus quer, para que “todos tenham a vida e a vida em abundância” (Jo 10,10).

 Ser discípulo – Uma vida cristã que não se engaja nisso, se torna como sal insosso, luz apagada, e serve para nada. Mas a motivação é clara nada em benefício próprio, mas tudo para que as pessoas cheguem a conhecer o nosso Pai Amoroso.