sábado, 25 de dezembro de 2010

Uma grande alegria: nasceu o Salvador


Neste dia de Natal, é lido o Evangelho de Lucas (Lc 2,1-14), que descreve o nascimento de Jesus. Começa com o recenseamento, convocado por César Augusto, a viagem de José e Maria (grávida) para Belém, apresenta o nascimento de Jesus, numa manjedoura, e termina com os anjos proclamando: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados”.

 

História – Lucas é o evangelista mais preocupado com as referências históricas. O seu Evangelho está cheio de indicações, que procuram situar com precisão os acontecimentos. No que diz respeito ao nascimento de Jesus, Lucas apresenta também, algumas indicações, que pretendem situar o acontecimento numa época e num espaço concreto. Desta forma, Lucas dá a entender que não estamos diante de um fato lendário, mas de algo perfeitamente integrado na vida e na história dos homens.

 

Problemas – Há, no entanto, um problema… Lucas é um cristão de origem grega, que não conhece a Palestina e que tem noções muito básicas da história do Povo de Deus. Por isso, as suas indicações históricas e geográficas são, com alguma frequência, imprecisas e inexatas. De qualquer forma, convém ter em conta que Lucas não está escrevendo história, mas fazendo teologia e apresentando uma catequese sobre Jesus, o Filho de Deus, que veio ao encontro dos homens para lhes apresentar uma proposta de salvação.

 

Belém – A primeira indicação importante vem da referência a Belém, como o lugar do nascimento de Jesus. É uma indicação mais teológica do que geográfica: o objetivo do autor é sugerir que este Jesus é o Messias, da descendência de David (a família de David era natural de Belém), anunciado pelos profetas (Miq 5,1). Fica claro, que o nascimento de Jesus se integra no plano de salvação que Deus tem para os homens – plano que os profetas anunciaram e cuja realização o Povo de Deus aguardava ansiosamente.

 

Pobreza – Uma segunda indicação importante resulta do “quadro” do nascimento. Lucas descreve, com detalhes, a pobreza e a simplicidade que rodeiam a vinda ao mundo do libertador dos homens: a falta de lugar na hospedaria, a manjedoura dos animais como berço, os panos improvisados que envolvem o bebê, a visita dos pastores… É na pobreza, na simplicidade, na fragilidade, que Deus se manifesta aos homens e lhes oferece a salvação. Os esquemas de Deus não se impõem pela força das armas, pelo poder do dinheiro ou pela eficácia de uma boa campanha publicitária; Deus escolhe vir ao encontro dos homens na simplicidade, na fraqueza, na ternura de um menino nascido no meio de animais, na absoluta pobreza. É assim que Deus entra na nossa história… É assim a lógica de Deus.

 

Pastores – Uma terceira indicação é dada pela referência às “testemunhas” do nascimento: os pastores. Trata-se de pessoas consideradas rudes, violentas, marginais, que invadiam com os rebanhos as propriedades alheias e que tinham fama de se apropriar da lã, do leite e das crias do rebanho em benefício próprio. Os fariseus os consideravam – tal como os publicanos e cobradores de impostos – pecadores públicos, incapazes de reparar o mal que tinham feito, tantas eram as pessoas a quem tinham prejudicado.

 

Testemunhas – Ora, Lucas coloca esses marginais como as “testemunhas” que acolhem Jesus. O evangelista sugere, desta forma, que é para estes pecadores e marginalizados que Jesus vem; por isso, a chegada de tal “salvador” é uma “boa notícia”: a partir de agora, os pobres, os fracos, os marginalizados, os pecadores, são convidados a integrar a comunidade dos filhos amados de Deus. Eles vêm ao encontro dessa salvação que Deus lhes oferece em Jesus e são convidados a integrar a comunidade da nova aliança, a comunidade do “Reino”.

 

Salvador – Uma quarta indicação aparece nos títulos dados a Jesus pelos anjos que anunciam o nascimento: Ele é “o salvador, Cristo Senhor”. O título “salvador” era usado, na época de Lucas, para designar o imperador ou os deuses pagãos; Lucas, ao chamar Jesus desta forma, apresenta-O como a única alternativa possível a todos os absolutos que o homem cria… O título “Cristo” equivale a “Messias”: aplicava-se, no judaísmo da palestina do séc. I, a um rei da descendência de David, que viria restaurar o reino ideal de justiça e de paz da época do rei Davi; desta forma, Lucas sugere que o “menino de Belém” é esse rei esperado. O título “Senhor” expressa o caráter transcendente da pessoa de Jesus e o seu domínio sobre a humanidade. Com estes três títulos, a catequese de Lucas apresenta Jesus aos homens e define o seu papel e a sua missão.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Jesus nasceu em 25 de dezembro?


Na noite de 24 de dezembro milhões de pessoas em todo o mundo comemoram, com profunda emoção, o que aconteceu em outra noite, há mais de dois mil anos: o nascimento de Jesus Cristo. O dia 25 de dezembro parece ter um toque mágico.  Mas, Jesus nasceu realmente neste dia? Certamente que não. Então, qual seria a data exata?

 

O Ano – Segundo relatos históricos, o rei Herodes (que perseguiu Jesus, recebeu os magos, mandou matar as crianças de Belém etc.) morreu no final de março do ano 4 a.C. Como Jesus nasceu antes da morte de Herodes, a data mais aceita é o ano 7 a.C.

 

O mês – Quanto ao mês do nascimento de Jesus, a única informação está em Lc 2,8: "na mesma região havia uns pastores que estavam nos campos e que durante as vigílias montavam guarda a seu rebanho". Sabe-se que, em dezembro, quando comemoramos o Natal, a temperatura na região de Belém é abaixo de zero e normalmente há geadas. Portanto, certamente não haveria gado, no mês de dezembro, nos pastos próximos a Belém. Atualmente, naquela região, os rebanhos são levados para o campo em março e recolhidos no fim de outubro.

 

O dia – Desde os primeiros séculos, os cristãos sempre quiseram ter um dia para comemorar o nascimento de Jesus. Mas, não havia informações suficientes para fixar esse dia. O bispo Clemente de Alexandria (séc. III) dizia ser no dia 20 de abril; São Epifânio sugeria o dia 6 de janeiro, enquanto outros falavam em 25 de março ou 17 de novembro. Porém, não havia acordo. Assim, durante os três primeiros séculos, a festa do nascimento de Jesus não teve data certa.

 

Igreja sacudida – No século IV aconteceria algo que abalaria a Igreja: um presbítero de Alexandria chamado Ário passou a discordar da Igreja quanto à natureza de Cristo. Ário dizia que existia um Deus eterno e não gerado e que Jesus foi criado por esse Deus; portanto, Cristo era criado e não eterno. As idéias de Ário se propagaram e ganharam boa parcela da Igreja. No ano de 325 foi convocado um Concílio Universal da Igreja para resolver a questão ariana. Este concílio aconteceu na cidade de Nicéia, vizinha de Constantinopla. Por grande maioria, as idéias de Ário foram rejeitadas. Para reforçar a idéia, foi criado o credo Niceno-constantinopolitano que rezamos até hoje: “creio em Jesus Cristo nascido do Pai antes de todos os séculos; (Jesus é) Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, da mesma substância do Pai ...”.

 

Pós-Ário – Apesar da derrota, os partidários de Ário não se deram por vencidos. Muitos bispos continuaram aceitando a doutrina ariana e se recusando a utilizar o credo proposto em Nicéia. Frente a essa situação, o Papa Julio I percebeu que era importante propagar a idéia da divindade de Cristo, combatendo as idéias de Ário. Propôs que fosse comemorada a festa do nascimento de Jesus como a celebração do nascimento do Filho de Deus.

 

Qual dia? – Foi proposto usar o dia de uma festa bastante popular do Império Romano: “o dia do Sol Invencível”. Era uma celebração pagã muito antiga, desde o tempo do Imperador Aureliano, no século III, em que se adorava o sol como um deus invencível. Como se sabe, no hemisfério norte, à medida que vai chegando dezembro (inverno), os dias vão diminuindo e as noites se prolongando. A escuridão aumenta e o sol fica cada vez mais fraco. No dia 21 de dezembro (dia mais curto do ano) as pessoas se perguntavam: o sol desaparecerá?  Mas, a partir de 22 de dezembro a luz do sol começa a ganhar da escuridão, aparecendo a primavera.  No dia 25 de dezembro era comemorado o sol que não morre, o Sol Invencível.

 

Luz de Natal – Desta forma, a Igreja do século IV batizou e “cristianizou” uma festa pagã, transformando o “dia de natal do Sol Invencível” para “Dia de Natal de Jesus”, o Sol de Justiça, muito mais brilhante que o astro rei.  Assim, o dia 25 de dezembro se converteu no dia de Natal cristão.

 

Natal – Jesus não nasceu em 25 de dezembro. É uma festa simbólica. Mas, quando vemos ao nosso redor os problemas, preocupações, dores, fracassos, enfermidades, injustiças, misérias, corrupção, mentiras, devemos lembrar e nos perguntar: o mal vencerá o bem? A escuridão ganhará da luz? Cristo desaparecerá? Será vencido pelo mal?  O dia 25 de dezembro é o anúncio que Jesus é o Sol Invencível; jamais será derrotado. O 25 de dezembro é o maior grito de esperança dos homens; todos os que se opuserem a Jesus desaparecerão, porque ele é o verdadeiro Sol Invencível.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Jesus é mesmo o Cristo?


No Evangelho das missas deste domingo (Mt 11, 2-11), o relato feito por Mateus acontece no ano 26 d.C., quando João Batista estava preso na prisão de Maqueronte, por ordem de Herodes Antipas. João permaneceu dez meses preso, até o dia em que Herodíades, por intermédio de sua filha Salomé, conseguiu convencer Herodes de matar João, pedindo como presente a cabeça dele em uma bandeja de prata.

 

Dúvida do Batista – João, ouvindo falar das obras de Jesus, mandou seus discípulos perguntarem: “És tu aquele que há de vir ou devemos esperar outro?”

 

Messias? – A pergunta não é feita à toa… João esperava um Messias que viesse lançar fogo a terra, castigar os maus e os pecadores, dar início ao “juízo de Deus” (Evangelho de domingo passado); e, ao contrário, Jesus aproximou-Se dos pecadores, dos marginais, dos impuros, estendeu-lhes a mão, mostrou-lhes o amor de Deus, ofereceu-lhes a salvação. João e os seus discípulos estão, portanto, desconcertados: Jesus será o Messias esperado ou é preciso esperar outro, que venha atuar de uma forma mais decidida, mais lógica e mais justiceira?

 

Vários Messias – O tempo de Jesus era uma época de expectativas. O povo era muito sofrido, dominado pelo Império Romano e reprimido pela elite dos judeus. Crescia muito a esperança na vinda de um Messias libertador, esperado há séculos. O primeiro século da nossa era foi marcado pelo aparecimento de muitos líderes populares, propondo-se como Messias. Cada grupo da Palestina tinha as suas expectativas sobre como seria a pessoa e a atuação desse Messias prometido.

 

Resposta – Jesus responde aos discípulos de João, mostrando ser o Messias esperado por seus atos. Usando textos do profeta Isaías, ele mostra que o Reino de Deus chegou nele, pois acontecem as obras de libertação que são características do Reino: com os mortos (Is 26,19), os surdos (Is 29,18-19), os cegos, surdos, coxos e pobres (Is 35,5-6), e o anúncio da Boa-Nova aos pobres (Is 61,1).

 

Relações – O messianismo de Jesus não se enquadrava nas expectativas de muita gente, que esperava a derrota dos opressores, mas não vislumbravam um mundo novo, baseado em solidariedade e justiça. Jesus veio estabelecer no meio dos homens o Reino de Deus, baseado no conceito de “justiça” – o restabelecimento de relações corretas de cada pessoa com Deus, consigo mesmo, com o outro e com a natureza. Veio realmente criar novas relações e não anunciar velhas relações com os papéis invertidos, em que o oprimido vira opressor.

 

Desafio – Jesus sempre é questionador, desafia as nossas expectativas. Para muitos, a proposta de Jesus era difícil demais, pois mexia com o próprio comodismo. Ele era uma novidade total que não se enquadrava nos velhos esquemas. Por isso diz: “E feliz de quem não se escandalizar por minha causa”. Hoje também, a pessoa e o projeto de Jesus desafiam a todos – especialmente nós cristãos.

 

Jesus ‘Light’ – Muitos cristãos têm uma idéia de como deve ser a figura do Messias – triunfal, poderoso, milagreiro, que não mexe com as estruturas sociais, políticas, econômicas da sociedade, que não nos desafia a criar novas relações, na contramão da sociedade materialista, individualista e consumista. Muitos hoje preferem um Jesus “light” – que funciona como analgésico, que nos apazigua a consciência, que nos dá emoções fortes, mas que não nos joga na luta dura da criação de uma nova sociedade, baseada nos princípios do Reino!

 

E onde existe esse Reino? – O Reino existe onde se faz o que Jesus fazia – onde os mais excluídos estão integrados, os rejeitados estão acolhidos, a Boa-Nova de libertação total é pregada e vivenciada – e onde se faz a vontade de Jesus, que veio “para que todos tenham a vida e a tenham em abundância”. É este Jesus que aguardamos no Natal.

 

Advento – Que o Advento seja também, tempo de purificação das falsas imagens a respeito de Jesus, que talvez permeiem as nossas mentes. Ele só renasce onde as pessoas, sejam elas cristãs ou não, se comprometem com as mesmas metas Dele, conforme o texto nos demonstra. Somos felizes, se essas exigências não forem escândalo para nós. A novidade perene do Evangelho e de Jesus nos desafia a rompermos com os nossos velhos esquemas, para que concretizemos, nas nossas vidas, a vinda do Reino.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Uma voz no deserto

Estamos no segundo domingo do Advento. O texto do Evangelho das missas (Mt 3,1-12) é dedicado a João Batista. A reflexão de hoje é baseada num texto do Pe. Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia do Vaticano.

 

Uma voz – O Evangelho do segundo domingo de Advento, não é Jesus que nos fala diretamente, mas seu precursor, João Batista. O coração da pregação do Batista está contido nessa frase de Isaías, que João repete a seus contemporâneos com grande força: “Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas!”. Isaías, para dizer a verdade, expressava: “Uma voz clama: no deserto, abri caminho ao Senhor” (Is 40, 3). Não é, portanto, uma voz no deserto, mas um caminho no deserto. Os evangelistas, aplicando o texto ao Batista que pregava no deserto da Judéia, modificaram a pontuação, mas sem mudar o sentido da mensagem.

 

Deserto – Jerusalém era uma cidade rodeada pelo deserto: ao Oriente, os caminhos de acesso na areia eram facilmente apagados pelo vento, enquanto ao Ocidente se perdiam entre as asperezas do terreno para o mar. Quando uma comitiva ou um personagem importante devia chegar à cidade, era necessário sair e caminhar pelo deserto para abrir uma via menos provisória; cortavam as sarças, aplainavam os obstáculos, reparavam a ponte ou uma passagem. Assim se fazia, por exemplo, por ocasião da Páscoa, para acolher os peregrinos que chegavam da Diáspora. Neste dado, de fato, inspira-se João Batista. Está a ponto de chegar, clama, aquele que está acima de todos, “aquele que deve vir”, o esperado os povos: é necessário traçar um caminho no deserto para que possa chegar.

 

Caminhos do Senhor – Mas eis aqui o salto da metáfora à realidade: este caminho não se traça no terreno, mas no coração de cada homem: não se traça no deserto, mas na própria vida. Para fazê-lo, não é necessário pôr-se materialmente ao trabalho, mas converter-se: “Endireitai os caminhos do Senhor”: este mandato pressupõe uma amarga realidade: o homem é como uma cidade invadida pelo deserto; está fechado em si mesmo, em seu egoísmo; é como um castelo com um fosso ao redor e as pontes levantadas. Pior: o homem complicou seus caminhos com o pecado e aí permaneceu, seduzido, como em um labirinto. Isaías e João Batista falam metaforicamente de precipícios, de montes, de passagens tortuosas, de lugares impraticáveis.

 

Verdadeiros nomes – Basta chamar estas coisas por seus verdadeiros nomes, que são orgulho, humilhações, violências, cobiças, mentiras, hipocrisia, imundices, superficialidades, embriaguez de todo tipo (pode-se estar ébrio não só de vinho ou de drogas, mas também da própria beleza, da própria inteligência, de si mesmo, que é a pior embriaguez!). Então se percebe imediatamente que o discurso também é para nós, é para cada homem que nesta situação deseja e espera a salvação de Deus.

 

Significa – Endireitar um caminho para o Senhor, portanto, tem um significado bastante concreto: significa empreender a reforma da nossa vida, converter-se. Em sentido moral, o que se deve aplanar e os obstáculos que se deve retirar são o orgulho – que leva a ser impiedoso, sem amor para com os demais – a injustiça – que engana o próximo – além de rancores, vinganças, traições no amor. São vales cheios de preguiça, incapacidade de impor-se um mínimo de esforço, todo pecado de omissão.

 

Montes – A palavra de Deus jamais nos esmaga sob um monte de deveres sem dar-nos ao mesmo tempo a segurança. O profeta Baruc diz que Deus “dispôs que sejam abaixados os montes e as colinas, e enchidos os vales para que se una o solo, para que Israel caminhe com segurança sob a glória divina". Deus abaixa, Deus enche, Deus traça o caminho; é tarefa nossa corresponder à sua ação, recordando que “quem nos criou sem nós, não nos salva sem nos”.

sábado, 27 de novembro de 2010

Fiquem atentos


Estamos iniciando o ano litúrgico, com o primeiro domingo do Advento. O texto do Evangelho das missas (Mt 24,37-44) é tirado do último grande discurso de Jesus antes de sua Paixão e morte.

 

Composição – Para compô-lo, Mateus reescreveu o chamado “discurso escatológico” do capítulo 13 de Marcos (lembre-se que o Evangelho de Mateus tem como fonte o Evangelho de Marcos), ampliando-o e mudando substancialmente o tema central: se no discurso transmitido por Marcos, a questão principal é a dos sinais que precederão a destruição de Jerusalém e do Templo, no discurso reelaborado por Mateus a questão central é a da vinda do Filho do homem e das atitudes com que os discípulos devem preparar essa vinda.

 

Qual a razão? – A mudança do tema do discurso pode ser explicada pela situação em que vivia a comunidade de Mateus e suas necessidades. Estamos na década de 80. Passaram dez anos sobre a destruição de Jerusalém e ainda não aconteceu a segunda vinda de Jesus. Os crentes estão desanimados e desiludidos… O evangelista contempla com preocupação os sinais de abandono, de desleixo, de rotina, de esfriamento que começam a aparecer na comunidade e sente que é preciso renovar a esperança e levar os crentes a comprometer-se na história, construindo o “Reino”.

 

Exortação – Nesta situação, Mateus descobre que as palavras de Jesus encerram um profundo ensinamento e compõe com elas um conselho dirigido aos cristãos. Esta exortação fundamenta-se numa profunda convicção: a vinda do “Filho do homem” é um fato certo, ainda que não aconteça logo; enquanto não chega o momento, é preciso preparar este grande acontecimento, vivendo de acordo com os ensinamentos de Jesus.

 

Linguagem – A linguagem destes capítulos é estranha e enigmática… Trata-se, no entanto, de um gênero usado com alguma frequência por alguns grupos judeus e cristãos da época de Jesus. É a linguagem “apocalíptica”, porque o seu objetivo é “revelar algo escondido” (“apocaliptô). Em muitas ocasiões, esta revelação é dirigida a comunidades que vivem numa situação de sofrimento, de desespero, de perseguição; o objetivo é animá-las, dar-lhes esperança, mostrar-lhes que a vitória final será de Deus e daqueles que forem fiéis.

 

Vigilantes – Para Mateus, a vinda do Senhor é certa, embora ninguém saiba o dia nem a hora (Mt 24,36); aos crentes resta estar vigilantes, preparados e ativos… Para transmitir esta mensagem, Mateus usa três quadros… O primeiro é o quadro da humanidade na época de Noé: os homens viviam, então, numa alegre inconsciência, preocupados apenas em gozar a sua “vidinha” descomprometida; quando o dilúvio chegou, apanhou-os de surpresa e despreparados… Se o “aproveitar a vida” ao máximo for para o homem uma prioridade fundamental, ele arrisca-se a deixar de lado o que é importante e a não cumprir o seu papel no mundo.

 

Trabalho – O segundo quadro coloca-nos diante de duas situações da vida cotidiana: o trabalho agrícola e a moagem do trigo… Os compromissos e trabalhos necessários à subsistência do homem também não podem ocupá-lo de tal forma que o levem a negligenciar o essencial: a preparação da vinda do Senhor.

 

Alerta – O terceiro quadro apresenta o exemplo do dono de uma casa que adormece e deixa que a sua casa seja saqueada pelo ladrão… Os crentes não podem, nunca, deixar-se adormecer, pois o seu sono pode levá-los a perder a oportunidade de encontrar o Senhor que vem.

 

Prioridade – A questão fundamental é, portanto, esta: o crente ideal é aquele que está sempre vigilante, atento, preparado, para acolher o Senhor que vem. Não perde oportunidades, porque não se deixa distrair com os bens deste mundo, não vive obcecado com eles e não faz deles a sua prioridade fundamental… Mas, dia a dia, cumpre o papel que Deus lhe confiou, com empenho e com sentido de responsabilidade.

sábado, 20 de novembro de 2010

Hoje mesmo estarás comigo no paraíso


O Evangelho das missas deste domingo situa-nos no Calvário (lugar do crânio), diante de uma cruz. A cena apresenta-nos Jesus crucificado, dois “malfeitores” crucificados também, os chefes dos judeus que “zombavam de Jesus”, os soldados que faziam piada dos condenados e o povo silencioso, perplexo, em expectativa. Por cima da cruz de Jesus, havia uma inscrição: “Jesus Nazareno, rei dos judeus”.

 

INRI – À primeira vista, está a famosa inscrição que define Jesus como “rei dos judeus”. É uma indicação que, naquela situação em que Jesus se encontrava, parece irônica: Ele não está sentado num trono, mas pregado numa cruz; não aparece rodeado de seguidores fiéis que O incensam e adulam, mas dos chefes dos judeus que O insultam e dos soldados que zombam Dele; Ele não exerce autoridade de vida ou de morte sobre milhões de homens, mas está pregado numa cruz, indefeso, condenado a uma morte infamante… Não há aqui, qualquer sinal que identifique Jesus com poder, com autoridade, com realeza terrena.

 

Rei? – Contudo, a inscrição da cruz – irônica aos olhos dos homens – descreve com precisão a situação de Jesus, na perspectiva de Deus: Ele é o “rei” que, da cruz, preside a um “Reino” de serviço, de amor, de entrega, de dom da vida. Neste quadro, explica-se a lógica desse “Reino de Deus” que Jesus veio propor aos homens.

 

Malfeitores – O quadro é completado por uma cena bem significativa, para entender o sentido da realeza de Jesus… Ao lado de Jesus estão dois “malfeitores”, crucificados como Ele. Enquanto um O insulta (este representa aqueles que recusam a proposta do “Reino”) e outro que pede: “Jesus, lembra-Te de mim quando vieres com a tua realeza”. A resposta de Jesus a este pedido é: “hoje mesmo estarás comigo no paraíso”.

 

Hoje no paraíso – Jesus é o Rei que apresenta aos homens uma proposta de salvação e que, da cruz, oferece a vida. O “estarás hoje no paraíso” não expressa um dado cronológico, mas indica que a salvação definitiva (o “Reino”) torna-se realidade a partir da cruz. Na cruz, manifesta-se plenamente a realeza de Jesus que é perdão, renovação do homem, vida plena; e essa realeza abarca todos os homens – mesmo os condenados – que acolhem a salvação.

 

No Paraíso – A Tradição afirma que o agraciado com a promessa do paraíso foi São Dimas. O “Bom Ladrão”, com sua atitude de humildade, reconhecendo-se criminoso, e com sua profissão de fé (“Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”), “roubou” o Paraíso, tornando-se o primeiro herdeiro dos que sofrem e choram.

 

Apócrifo – O Evangelho de Lucas cita apenas que eram dois ladrões, não indicando os seus nomes. Os nomes aparecem somente no livro apócrifo chamado “Evangelho de Nicodemos” (9,5): Dimas e Gestas. Os livros apócrifos são textos (criados a partir do 2º século), escritos por pessoas devotas, ou simplesmente curiosas, sobre tradições, histórias ou qualquer coisa que se relacionasse com Jesus. Por serem textos sem muito critério, não foram incluídos na Bíblia.

 

Da cruz ao paraíso – Jesus quer realizar o seu reino numa sociedade de irmãos e filhos de Deus. Até o momento de sua morte, vemos o que foi a constante de Sua vida: a preferência pelos pecadores, marginalizados e pobres. Por isso mesmo, até no último momento, oferece o Paraíso ao Bom Ladrão, que se arrependeu e acreditou nele. Da humilhação e fraqueza suprema da cruz, Cristo Jesus aparece como rei vencedor do pecado e da morte.

 

Ressurreição – A promessa que faz a Dimas revela esta vitória e é a garantia de nossa esperança cristã. A partir da morte e ressurreição de Jesus, que é também a sua glorificação, estão abertas as portas do Paraíso, que Adão nos tinha fechado. Fica inaugurado o reino da Ressurreição dos mortos. Jesus quer reinar a partir da cruz e não a partir do poder, e quer realizar seu reino numa sociedade de irmãos entre si e de filhos de Deus.

 

Dimas em Bauru – Em nossa cidade existe uma paróquia que tem Dimas como padroeiro. É a Paróquia de São Judas Tadeu e São Dimas, localizada nos altos da cidade.  São Dimas é comemorado no dia 25 de março.

sábado, 13 de novembro de 2010

Quem não quer trabalhar, também não deve comer

O Evangelho das missas deste domingo apresenta o texto de Lucas (21, 5-19) em que Jesus profetiza a destruição do Templo. Esse trecho faz parte dos famosos discursos sobre o fim do mundo, característicos dos últimos domingos do ano litúrgico. E, na segunda leitura, vemos a Carta de Paulo, dirigida aos cristãos de Tessalônica, que haviam deixado de trabalhar, a espera do fim do mundo anunciado por Jesus. Sobre este comportamento, Paulo escreve sua segunda carta aos Tessalonicenses.

 

Trabalhar para que? – Em Tessalônica, uma das primeiras comunidades cristãs, havia crentes que tiravam desses discursos de Cristo uma conclusão errônea: é inútil agitar-se, trabalhar e produzir, já que tudo está a ponto de acabar; é melhor viver cada dia, sem assumir compromissos no longo prazo, talvez vivendo um pouco de brisa.

 

Quem não trabalha não deve comer – A estes, São Paulo responde: “Ora, ouvimos dizer que entre vós há alguns que vivem à toa, muito ocupados em não fazer nada. Em nome do Senhor Jesus Cristo, ordenamos e exortamos a estas pessoas que, trabalhando, comam na tranquilidade o seu próprio pão”. No começo da passagem, São Paulo lembra a regra dada aos cristãos de Tessalônica: “Quem não quer trabalhar, também não deve comer”.

 

O trabalho na origem da criação – Esta era uma novidade para os homens da época. A cultura à qual pertenciam desprezava o trabalho manual; considerado degradante para a pessoa, como se fosse exclusivo de escravos e incultos. Mas a Bíblia tem uma visão diferente. Desde a primeira página, ela apresenta Deus trabalhando durante seis dias e descansando no sétimo. Tudo isso, antes ainda que se fale do pecado na Bíblia. Podemos concluir, portanto, que o trabalho faz parte da natureza original do homem; não é resultado da culpa nem do castigo. O trabalho manual é tão digno como o intelectual e o espiritual. O próprio Jesus dedicou vinte anos ao trabalho manual (supondo que tenha começado a trabalhar por volta dos 13 anos) e somente dois anos ao intelectual.

 

Quer valor tem o trabalho para Deus? – Conta um padre, que um leigo lhe escreveu perguntando: “Que sentido e que valor tem nosso trabalho de leigos diante de Deus? É verdade que nós, leigos, nos dedicamos também a muitas obras de bem (caridade, apostolado, voluntariado); mas a maior parte do tempo e das energias da nossa vida é dedicada ao trabalho. Assim, se o trabalho não vale para o céu, teremos bem pouco para a eternidade. Todas as pessoas às quais perguntamos sobre isso não souberam nos dar respostas satisfatórias. Elas nos dizem: ‘Ofereçam tudo a Deus!’. Mas isso é suficiente?”.

 

Trabalho como participação na obra de Deus – Respondendo ao leigo, assim se pronunciou o padre: “Não, o trabalho não vale somente pela “boa intenção” que temos ao realizá-lo, ou pelo oferecimento que se faz dele a Deus pela manhã; vale também por si mesmo, como participação da obra criadora e redentora de Deus e como serviço aos irmãos. É através do trabalho humano – diz um texto do Concílio – ‘que o homem sustenta de ordinário a própria vida e a dos seus; por meio dele se une e serve aos seus irmãos, pode exercitar uma caridade autêntica e colaborar no acabamento da criação divina. Mais ainda: sabemos que, oferecendo a Deus o seu trabalho, o homem se associa à obra redentora de Cristo’ (Gaudium et spes, 67).”

 

Colocar o coração no que as mãos fazem – Vemos, portanto, que não importa tanto que trabalho a pessoa realiza, mas como o realiza. Isso restabelece certa igualdade, deixando de lado todas as diferenças (às vezes injustas e escandalosas) de categoria e remuneração. Uma pessoa que desempenhou tarefas muito humildes pode “valer” muito mais que quem ocupou cargos de grande prestígio. O trabalho, como foi dito, é participação na ação criadora de Deus e na ação redentora de Cristo, e é fonte de crescimento pessoal e social, mas também, sabemos, é fadiga, suor, dor. Pode enobrecer, mas igualmente pode esvaziar e consumir. O segredo é colocar o coração no que as mãos fazem. O que cansa não é tanto a quantidade ou o tipo de trabalho que se faz, mas a falta de entusiasmo ou de motivação. Como nos diz o Apocalipse (14, 13), “nossas obras nos acompanharão” Que essa fé possa ser nossa motivação terrena para o trabalho.

sábado, 6 de novembro de 2010

A riqueza dos pobres de espírito


O Evangelho deste domingo (Mt 5,1-12) propõe a passagem das Bem-aventuranças.  Propomos, a seguir, uma reflexão do padre Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia de Roma.

 

Compaixão pelos ingênuos? - O Evangelho deste domingo começa com a célebre frase: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”. A afirmação “bem-aventurados os pobres de espírito”, com frequência, é mal entendida hoje ou, inclusive, se cita com algum sentimento de compaixão, como se fosse uma expressão que faz referência à credulidade dos ingênuos.

 

Frase completa – Mas Jesus jamais disse simplesmente: “Bem-aventurados os pobres de espírito!”; nunca sonhou pronunciar algo assim. Disse: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”, que é muito distinto. Deturpa-se completamente o pensamento de Jesus, banalizando-o, quando se cita sua frase pela metade, pois, assim, separa-se a bem-aventurança de seu motivo. Seria, suponhamos, o mesmo que dizer: “O que semeia...”. O que se entende disso? Nada! Mas se acrescentarmos: “colhe”, imediatamente tudo se esclarece. Se Jesus tivesse dito apenas: “Bem-aventurados os pobres!”, isso também soaria absurdo, mas quando acrescenta: “porque deles é o Reino dos Céus”, tudo se faz compreensível.

 

Reino que subverte – Mas que bendito Reino dos Céus é este, que realizou uma verdadeira “inversão de todos os valores?” É a riqueza que não passa, que os ladrões não podem roubar nem a traça consumir. É a riqueza que não se deve deixar para outros com a morte, mas que se leva consigo. É o “tesouro escondido” e a “pérola preciosa”, aquilo que, para se possuir, vale a pena deixar tudo, – diz o Evangelho. O Reino de Deus, em outras palavras, é o próprio Deus.

 

Que Reino é esse? –A chegada do Reino de Deus produziu uma espécie de “crise de governo” de alcance mundial, uma mudança radical. Abriu horizontes novos, Em alguma medida, abriu novos horizontes, como no século XV, quando,se descobriu que existia um outro mundo, a América, e as potências que ostentavam o monopólio do comércio com o Oriente, como Veneza, se viram surpreendidas de repente e entraram em crise.

 

Quem é rico hoje? – Os velhos valores do mundo – dinheiro, poder, prestígio – mudaram, ficaram relativos e inclusive foram rejeitados por causa da chegada do Reino. E agora, quem é o rico? Talvez um homem tenha uma enorme soma em dinheiro; durante a noite ocorre uma desvalorização total; pela manhã se levanta sem nada ter, mesmo que não saiba ainda.

 

O “investimento” do pobre – Os pobres, pelo contrário, estão em vantagem com a vinda do Reino de Deus, porque ao não terem nada que perder estão mais dispostos a acolher a novidade e não temem a mudança. Podem investir tudo na nova moeda. Estão mais preparados para crer.

 

Mudança social ou de fé? –Acredita-se, hoje, que as mudanças que contam são aquelas visíveis e sociais e não as que ocorrem na fé. Mas quem tem razão? No século passado, vimos acontecer muitas revoluções sociais; contudo, também vimos depois de algum tempo, que tais mudanças acabam por reproduzir, com outros protagonistas, a mesma situação de injustiça que pretendiam eliminar.

 

Vendo com o Evangelho – Há planos e aspectos da realidade que não se percebem à primeira vista, só com a ajuda de uma luz especial. Atualmente, com os satélites artificiais, são feitas inúmeras fotografias, com raios infra-vermelhos, de regiões inteiras da Terra, e podemos ver quão diferente é o panorama com esta luz! O Evangelho e, em particular, nossa bem-aventurança dos pobres, nos dá uma imagem do mundo “com raios infra-vermelhos”. Permite captar o que está por baixo ou mais além da aparência. Permite distinguir o que passa e o que fica. A riqueza do pobre é o Reino de Deus.

sábado, 30 de outubro de 2010

O encontro de Zaqueu com Jesus


No Evangelho das missas deste domingo (Lc 19,1-10) Jesus está atravessando a cidade de Jericó (25 quilômetros de Jerusalém) quando se encontra com Zaqueu. Ele era chefe dos cobradores de impostos e muito rico.

 

Baixinho – Quando Jesus atravessava a cidade, acompanhado pela multidão, Zaqueu queria ver Jesus, mas não conseguia porque era baixinho. Então, de maneira ousada e desinibida, correu mais adiante, para um lugar onde ele iria passar e, antes que outro chegasse, subiu em uma árvore, para vê-lo. Levantando os olhos, Jesus o percebe e lhe propõe ficar em sua casa, naquele dia.

 

Pecador – Como no judaísmo havia forte discriminação contra os cobradores de impostos (considerado um pecador público), as pessoas começaram a murmurar pelo fato de Jesus hospedar-se na casa de Zaqueu. Recebendo Jesus, Zaqueu, prontamente, manifestou sua conversão, declarando-se disposto a restabelecer a justiça e partilhar sua riqueza com os pobres e restituir a quem havia prejudicado.

 

Jericó – No tempo de Jesus, Jericó era uma cidade próspera (sobretudo devido à produção de bálsamo), dotada de grandes e belos jardins e palácios (por ação de Herodes, o Grande, que fez de Jericó a sua residência de inverno). Situada num lugar privilegiado, uma importante rota comercial, era um lugar de oportunidades, que devia proporcionar grandes negócios (e também duvidosos).

 

O texto – Zaqueu era um homem que colaborava com os opressores romanos e que se servia do seu cargo para enriquecer de forma imoral (exigindo impostos muito acima do que tinha sido fixado pelos romanos e guardando para si a diferença, como era prática corrente entre os publicanos). Era, portanto, um pecador público sem hipóteses de perdão, excluído do convívio com pessoas decentes e sérias. Era um marginal, considerado amaldiçoado por Deus e desprezado pelos homens.

 

Ver – Este homem procurava “ver” Jesus. O “ver” indica aqui, provavelmente, mais do que curiosidade: indica uma procura intensa, uma vontade firme de encontro com algo novo, uma ânsia de descobrir o “Reino”, um desejo de fazer parte dessa comunidade de salvação que Jesus anunciava. No entanto, o “mestre” devia parecer-lhe distante e inacessível, rodeado desses “puros” e “santos” que desprezavam os marginais como Zaqueu. O fato de subir a um sicômoro (tipo de figueira) indica que o desejo de encontro com Jesus foi muito mais forte do que o medo do ridículo ou das vaias da multidão.

 

Encontro – Como é que Jesus vai lidar com este excluído, que sente um desejo intenso de conhecer a salvação que Deus oferece? Jesus começa por provocar o encontro; depois, sugere a Zaqueu que está interessado em entrar em comunhão com Ele, em estabelecer com Ele laços de familiaridade (“Zaqueu, desce depressa, que Eu hoje devo ficar em tua casa”). Preste atenção neste quadro “escandaloso”: Jesus, rodeado pelos “puros” que escutam atentamente a sua Palavra, deixa todos estáticos no meio da rua para estabelecer contacto com um marginal e para entrar na sua casa.

 

Reação – Como é que a multidão que rodeia Jesus reage a isto? Naturalmente, manifestando a sua desaprovação às atitudes incompreensíveis de Jesus (“ao verem isto, todos murmuravam, dizendo: «foi hospedar-se em casa de um pecador»”). É a atitude de quem se considera “justo” e despreza os outros; de quem está instalado nas suas certezas, de quem está convencido de que a lógica de Deus é uma lógica de castigo, de marginalização, de exclusão. No entanto, Jesus demonstra-lhes que a lógica de Deus é diferente da lógica dos homens e que a oferta de salvação que Deus faz não exclui nem marginaliza ninguém.

 

Como termina? O texto termina com um banquete, que simboliza o “banquete do Reino”. Ao aceitar sentar-Se à mesa com Zaqueu, Jesus mostra que os pecadores têm lugar no “banquete do Reino”; diz-lhes, também, que Deus os ama, que aceita sentar-Se à mesa com eles – isto é, quer integrá-los na sua família e estabelecer com eles laços de comunhão e de amor. Jesus mostra, dessa forma, que Deus não exclui nem marginaliza nenhum dos seus filhos – mesmo os pecadores – mas a todos oferece a salvação.

sábado, 23 de outubro de 2010

Modos de rezar


O Evangelho das missas deste domingo (Lc 18,9-14) propõe uma parábola “para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros”. Os protagonistas da história são um fariseu e um publicano.

 

Formas de orar – O fariseu, um observante escrupuloso da Lei, de pé, com os braços levantados e a cabeça erguida, agradece por ser diferente dos demais, considerados pecadores. É a forma tradicional da oração no Antigo Testamento: o louvor e o agradecimento a Deus. Porém, trata-se de agradecer pela prosperidade e pelos privilégios (atribuídos à intervenção divina), bem como pela destruição dos inimigos. Tal tipo de oração é característica da tradição do "povo eleito", presente no Antigo Testamento, podendo ser encontrada, particularmente, entre os Salmos. O publicano é alguém que, trabalhando como cobrador de impostos, a serviço das autoridades locais estabelecidas pela ocupação romana, é discriminado e humilhado pelo sistema religioso oficial, sendo considerado pecador. Entretanto, com humildade, coloca sua confiança em Deus.

 

Os fariseus – O primeiro homem pertencia a um dos grupos mais interessantes e de mais impacto na sociedade palestina do tempo de Jesus: eram os defensores intransigentes da “Torah” (“a Lei”) – os cinco primeiros livros do Antigo Testamento, o Pentateuco. No dia a dia, procuravam cumprir a Lei nos mínimos detalhes e esforçavam-se por ensiná-la ao povo: só assim – pensavam eles – o Povo chegaria a ser santo e o Messias poderia vir trazer a salvação a Israel. Tratava-se de um grupo sério, verdadeiramente empenhado na santificação do Povo de Deus. No entanto, o seu fundamentalismo em relação à “Torah” será, várias vezes, criticado por Jesus: ao afirmarem a superioridade da Lei, desprezavam muitas vezes o homem e criavam no povo um sentimento constante de pecado e de indignidade, que oprimia as consciências.

 

Os publicanos – O segundo homem pertence à classe dos cobradores de impostos, que prestava o serviço às forças romanas de ocupação. Os publicanos tinham fama de utilizar o seu cargo para enriquecer de modo imoral e, é preciso dizer, no geral, essa fama era bem merecida. De acordo com ensinamento oral aos judeus (Mishna), estavam permanentemente impuros e não podiam sequer fazer penitência, pois eram incapazes de conhecer todos aqueles a quem tinham prejudicado e a quem deviam uma reparação. Se um publicano, antes de aceitar o cargo, fazia parte de uma comunidade farisaica, era imediatamente expulso dela e não podia ser reabilitado, a não ser depois de abandonar esse cargo. Quem exercia tal ofício, perdia certos direitos cívicos, políticos e religiosos; por exemplo, não podia ser juiz nem prestar testemunho em tribunal, sendo equiparado ao escravo.

 

Parábola – No fariseu e no publicano da parábola, Lucas põe em confronto dois tipos de atitude diante de Deus. O fariseu é o modelo de um homem irrepreensível diante da Lei, que cumpre todas as regras e leva uma vida íntegra. Ele está consciente de que ninguém pode acusá-lo de cometer ações injustas, nem contra Deus nem contra os irmãos (e, aparentemente, é verdade, pois a parábola não conta que ele estava mentindo). Evidentemente, está contente por não ser como o publicano que também está no Templo: os fariseus tinham consciência da sua superioridade moral e religiosa, sobretudo em relação aos pecadores. O publicano é o modelo do pecador. Explora os pobres, pratica injustiças e não cumpre as obras da Lei. Ele tem consciência da sua indignidade, pois a sua oração consiste apenas em pedir: “Meu Deus, tende compaixão de mim, que sou pecador”.

 

A salvação vem por méritos próprios? - O comentário final de Jesus sugere que o publicano se reconciliou com Deus. Por quê? O problema do fariseu é que achava que ia ganhar a salvação com o seu próprio esforço. Para ele, a salvação não é um dom de Deus, mas uma conquista do homem; se o homem levar uma vida irrepreensível, Deus não terá outro remédio senão salvá-lo. Ele está convencido de que Deus lhe deve a salvação pelo seu bom comportamento, como se Deus fosse apenas um contabilista que toma nota das ações do homem e, no fim, lhe paga em consequência. Ele está cheio de si: não espera nada de Deus, pois – pensa ele – os seus créditos são suficientes para se salvar. Por outro lado, essa exagerada autoconfiança leva-o também, ao desprezo por aqueles que não são como ele; considera-se “separado”, como se entre ele e o pecador existisse uma barreira… É meio caminho andado para, em nome de Deus, criar segregação e exclusão: é a isso que a religião dos “méritos” leva.

 

A salvação que vem de Deus – O publicano, ao contrário, apóia-se apenas em Deus e não nos seus méritos. Ele apresenta-se diante de Deus de mãos vazias e sem quaisquer pretensões; entrega-se apenas nas mãos de Deus e pede-Lhe compaixão… E Deus “justifica-o” – isto é, derrama sobre ele a sua graça e o salva – precisamente porque ele não tem um coração presunçoso e está disposto a aceitar a salvação que Deus quer oferecer a todos os homens. Esta parábola, destinada a “alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros”, sugere que esses que se presumem justos estão, às vezes, muito longe de Deus e da salvação.

sábado, 16 de outubro de 2010

A viúva e o juiz


O Evangelho deste domingo (Lc 18,1-8) apresenta-nos a parábola do juiz e da viúva.  A viúva, pobre e injustiçada (na Bíblia, é o protótipo do pobre sem defesa, vítima da prepotência dos ricos e dos poderosos), passava a vida queixando-se do seu adversário e exigindo justiça; mas o juiz, “que não temia Deus nem os homens”, não lhe prestava qualquer atenção… No entanto, o juiz – apesar da sua dureza e insensibilidade – acabou por fazer justiça à viúva, a fim de se livrar definitivamente da sua insistência importuna.

 

O texto – Este é um texto que não tem paralelo em outro evangelista, mas é similar à parábola do amigo importuno, que vem pedir pão no meio da noite e que é atendido por causa da sua insistência (Lc 11,5-8). É preciso lembrar que Lucas escreveu o terceiro Evangelho durante a década de 80, uma época em que as comunidades cristãs sofriam por causa da hostilidade dos judeus e dos pagãos e que já se anunciavam as grandes perseguições que dizimaram as comunidades cristãs no final do século I. Os cristãos estavam inquietos, desanimados e ansiavam pela segunda vinda de Cristo – isto é, pela intervenção definitiva de Deus na história, para derrotar os maus e salvar o seu Povo.

 

Explicação – O próprio autor dá a sua aplicação teológica, após apresentar a parábola: se um juiz prepotente e insensível é capaz de resolver o problema da viúva, por causa da sua insistência, Deus (que não é, nem de perto nem de longe, um juiz prepotente e sem coração) não iria escutar os “seus eleitos, que por Ele clamam dia e noite, e iria fazê-los esperar muito tempo?”

 

Insistência – É evidente que, se até um juiz insensível acaba por fazer justiça a quem lhe pede com insistência, com muito mais motivo Deus – que é rico em misericórdia e que defende sempre os fracos – estará atento às súplicas dos seus filhos. Dado o contexto em que a parábola aparece, é certo que Lucas pretende dirigir-se a uma comunidade cristã cercada pela hostilidade do mundo, que começava a ver no horizonte próximo a ameaça das perseguições e que estava desanimada, pois, aparentemente, Deus não escutava as súplicas dos crentes e não intervinha no mundo para salvar a sua Igreja.

 

Um tempo próprio para intervir - A resposta que Lucas deixa aos seus destinatários é a seguinte: ao contrário do que parece, Deus não abandonou o seu Povo, nem é insensível aos seus apelos; Ele tem o seu projeto, o seu plano e o seu tempo próprio para intervir… Aos crentes resta exercitar a paciência e confiar que Ele agirá para libertá-los.

 

Oração – Que é que tudo isso tem a ver com a oração? Porque é que esta é uma parábola sobre a necessidade de rezar? Lucas pede aos cristãos que, apesar do aparente silêncio de Deus, não deixem nunca de dialogar com Ele. É nesse diálogo que entendemos os projetos e os ritmos de Deus; é nesse diálogo que Deus transforma os nossos corações; é nesse diálogo que aprendemos a nos entregar nas mãos de Deus e a confiar n’Ele. Sobretudo, que nada (nem o desânimo, nem a desconfiança perante o silêncio de Deus) nos leve a desistir de uma verdadeira comunhão e de um profundo diálogo com Ele.

 

Reflexão – Por que é que Deus permite que tantos milhões de homens sobrevivam em condições tão degradantes? Por que é que os maus e injustos praticam arbitrariedades sem conta sobre os mais fracos e nenhum mal lhes acontece? Como é que Deus aceita que 2.800 milhões de pessoas (metade da humanidade) vivam com menos de R$ 10,00 por dia? Como é que Deus não intervém quando certas doenças incuráveis ameaçam dizimar os pobres dos países do quarto mundo, perante a indiferença da comunidade internacional? Onde está Deus quando as ditaduras ou os imperialismos maltratam povos inteiros? Deus não intervém porque não quer saber dos homens e é insensível em relação àquilo que lhes acontece?

 

Lógica de Deus – É a isto que esse trecho do Evangelho procura responder… Lucas está convicto de que Deus não é indiferente aos gritos de sofrimento dos pobres e que não desistiu de intervir no mundo, a fim de construir o novo céu e a nova terra de justiça, de paz e de felicidade para todos… Simplesmente, Deus tem projetos e planos que nós, em nossa ânsia e impaciência, não conseguimos perceber. Deus tem o seu ritmo – um ritmo que passa por não forçar as coisas, por respeitar a liberdade do homem… Cabe-nos confiar e respeitar a lógica de Deus, entregando-nos em Suas mãos.