Muitas pessoas têm dificuldade em aceitar que Jesus tenha sido tentado pelo diabo. No fundo, é porque consideram a tentação como algo desonroso para a pessoa, como uma fraqueza, uma deficiência. Mas não é assim. A tentação não é nem boa e nem má. É simplesmente inevitável. Todo homem tem tentações, uma vez que, ao ter sido criado livre, sempre fica diante de dois caminhos, duas possibilidades de agir, uma das quais é boa e a outra má. Essa dualidade de horizontes constitui a tentação. Se o homem escolhe o caminho certo, cresce e amadurece; se opta pela via equivocada, se corrompe.
No Evangelho – Em primeiro lugar, estranhamente, o diabo aparece de modo frontal, sem camuflagens. Além disso, Jesus aparece mudando extravagantemente de cenário. A primeira tentação, por exemplo, acontece no deserto. Mas, na segunda, o diabo aparece transportando-o pessoalmente ao Templo de Jerusalém (Mt 4,5). Como o transportou? Levantando-o? Voando? Isto seria aceitar que o diabo realizou um impressionante prodígio. De onde tirou poder para fazer milagres, quando a tradição bíblica sustenta que só Javé pode fazê-los? (Sl 72,18; 86,10; 136,4). Na terceira tentação, o diabo aparece levando-o desta vez a um alto monte, de onde lhe mostra todos os reinos e países do mundo (Mt 4,8). Existe na Terra esta extraordinária montanha, de onde se pode contemplar semelhante espetáculo? E como pôde Jesus permanecer quarenta dias no deserto sem comer e, principalmente, sem beber? A desidratação não perdoa ninguém. A menos que Jesus tenha feito um milagre para não sofrê-la. Mas que sentido teria então seu jejum?
Criação literária – O modo como as tentações são descritas no texto do Evangelho não é histórico. Trata-se mais de uma criação literária dos evangelistas, com a finalidade de deixar um ensinamento religioso, uma idéia válida para a vida dos crentes que tropeçam com suas tentações no deserto da vida. Nenhum exegeta sustenta que Jesus foi realmente levado ao deserto, que ali teve fome e foi tentado, que depois foi levado ao Templo de Jerusalém e terminou em cima de um monte. Toda esta coreografia é uma criação dos evangelistas para deixar-nos um ensinamento.
O número três – A vida de Jesus, como se vê, esteve repleta de tentações, mas os autores bíblicos quiseram resumi-las somente em três, porque este é um número simbólico que aparece muitas vezes na Bíblia, com o sentido de totalidade. Escolheram-nas para traçar um paralelo com aquilo que aconteceu com o povo de Israel, logo após a saída do Egito. Segundo o Antigo Testamento, depois de atravessar de forma prodigiosa o mar Vermelho (Êx 14,15-31), os israelitas entraram no deserto (Êx 15,22), conduzidos pelo Espírito de Javé (Is 63,13-14). Ali permaneceram durante quarenta anos (Nm 31,13) e sofreram principalmente três tentações. Levando em conta esses detalhes, os autores bíblicos apresentam Jesus como o novo povo de Israel, que veio substituir o antigo.
No deserto – Assim, conforme os evangelistas, a primeira tentação de Jesus tem como cenário o deserto. Os escritores pensam que ali, durante quarenta dias, sem comer, ele sente fome e o tentador o incita a deixar seu plano de jejum e a converter as pedras em pão. Pois bem, o povo de Israel teve a mesma experiência. Depois de sair da opressão do Egito e entrar na liberdade do deserto, experimentou, durante quarenta anos, uma fome parecida. Diante da escassez de alimento, o povo caiu na tentação, rebelando-se contra Moisés.
No templo – O segundo encontro entre Jesus e o diabo se deu, segundo Mateus, no teto de uma das galerias do Templo, sobre um precipício de mais de cem metros que dava para o vale do Cedron. Ele é convidado a jogar-se dali para o vazio, para provar que Deus sempre cuida dele e não permite que lhe aconteça nada. Também Israel havia passado por semelhante situação. Na localidade de Massa, no deserto, houve falta d’água. Os israelitas sabiam que Javé estava com eles e nunca os havia abandonado. Mas, para prová-Lo e ver se era verdade que Deus não permitiria que lhes acontecesse algo, exigiram de Moisés que, com um sinal maravilhoso, fizesse aparecer água. Caíram na tentação.
Na montanha – A terceira tentação de Jesus se dá numa montanha altíssima, de onde, numa visão imaginária, contempla todos os reinos daquele tempo. Desta vez, satanás vai diretamente ao assunto e revela-lhe o objetivo de suas tentações: que abandonasse o serviço exclusivo ao Pai e se convertesse em um adorador seu, para obter melhores benefícios e mais riquezas para si. Israel, igualmente, teve essa tentação no deserto: abandonar Javé e fazer para si um ídolo, um bezerro de ouro para adorá-lo.
Vencedor – Israel havia sido derrotado em todas as provas do deserto. Por isso os profetas, olhando para o futuro, acreditaram que Deus mandaria um Messias com força suficiente para vencer todas as tentações e converter em realidade as antigas esperanças do povo. Com o advento do Senhor, os evangelistas sugerem que se inaugura um “novo povo de Israel”, formado por Jesus Cristo e pelos seus seguidores, os cristãos. E, desta vez, o novo povo de Deus conseguirá, sim, pois Jesus saiu triunfante das tentações e todo aquele que viver unido a ele poderá, de agora em diante, vencer igualmente as tentações. Para isso os autores colocaram as tentações só no início da vida pública de Jesus. Para mostrar que se alguém se esforça em vencê-las, logo tem desimpedido o caminho para o êxito e assegura o triunfo final, como Jesus.