sábado, 27 de outubro de 2012

Jesus teve compaixão


No Evangelho das missas deste domingo (Mc 10,46-52), Jesus continua sua viagem para Jerusalém. Para evitar pisar nas terras da Samaria (os samaritanos eram considerados impuros), Jesus e seus discípulos partiam da Galiléia, atravessavam o Rio Jordão, viajavam em direção ao sul pela região da Decápole e Peréia e, novamente, atravessavam o Rio Jordão e entravam na Judéia. 

Local e época – Os fatos descritos no Evangelho deste domingo acontecem quando o grupo liderado por Jesus entra no território da Judéia e se aproxima da cidade de Jericó. Faltam 37 quilômetros para chegar a Jerusalém. Estamos no mês de março do ano 30. Em menos de um mês (7 de abril do ano 30), Jesus será preso, condenado e crucificado. A multidão encontra um cego chamado Bartimeu, sentado na beira do caminho, pedindo esmola. Ao ouviu dizer que era Jesus de Nazaré quem estava passando, o cego começou a gritar: “Jesus, Filho de Davi, tenha pena de mim!”. Então Jesus parou e disse: “Chamem o cego!” e perguntou: “O que é que você quer que eu faça? - perguntou Jesus”. “Mestre, eu quero ver de novo!” respondeu ele. “Vá; você está curado porque teve fé!” - afirmou Jesus.  

Rumo a Jerusalém – Estamos no fim da caminhada central de Jesus, desde Cesaréia de Felipe até a sua morte e ressurreição em Jerusalém. No texto de hoje, Marcos encerra o bloco todo da caminhada com o último milagre que ele relata de Jesus – a cura do cego Bartimeu. 

Pressa? – O texto começa com um senso de urgência – chegaram a Jericó e logo saíram. Parece que têm pressa para caminhar até Jerusalém. E lá está o cego Bartimeu. Onde? Sentado à beira do caminho! Enquanto Jesus está "a caminho" com os seus discípulos, o cego está à beira do caminho! Simboliza todos os que não conseguem caminhar no discipulado, mas estão parados, à beira do seguimento de Jesus. 

Grito – Mas este texto está bem carregado de sentido. Logo que Bartimeu ouve que é Jesus que passa, ele grita fortemente! "Filho de Davi, tem piedade de mim!" É de novo um dos temas centrais da Bíblia – o grito do pobre e sofrido! Desde o grito do sangue de Abel, passando pelo grito do Êxodo, de Jó, dos pobres nos Salmos, de Bartimeu, de Jesus na Cruz, dos martirizados do Apocalipse, o tema do grito do sofrido perpassa toda a Escritura, com a garantia de que Deus ouve esse grito. Mas a reação dos transeuntes é típica – mandam que Bartimeu se cale! O poder dominante sempre quer abafar o grito do excluído! E isso não mudou até o dia de hoje! Até nas igrejas existe quem não quer ouvir o grito, e faz tudo para abafar qualquer iniciativa popular. Mas Deus ouve! 

O manto – Com um fino toque de ironia, o texto mostra como, por causa da atitude de Jesus, os mesmos que mandaram o cego calar-se agora são obrigados a convidá-lo para falar com Jesus. Mas para isso, Bartimeu tem que lançar fora o manto – a única coisa que ele possuía, a sua única segurança. Como os primeiros discípulos no Lago (Mc 1,18.20), ele aprende que não é possível seguir Jesus sem deixar algo, sem arriscar a segurança humana para experimentar a mão de Deus. 

Ver Jesus – Mas Jesus não parte imediatamente para a ação. Ele respeita a liberdade do cego e pergunta "o que quer que faça por você". Pois Jesus não obriga ninguém a se libertar – há quem prefira ficar sentado à beira do caminho, na sua comodidade e não opte pela libertação. Mas Bartimeu quer ver de novo – diferente do cego de Jo 9, ele via uma vez e tinha perdido a visão. Aqui ele simboliza a comunidade de Marcos pelo ano 70, que tinha perdido a clareza da fé e precisava do toque de Jesus para voltar a ver claramente.
 
Seguir Jesus – Curado, Bartimeu recebe licença para ir, para seguir a sua vida. Mas ele faz outra opção: "no mesmo instante o cego começou a ver de novo e seguia Jesus pelo caminho". Ele usava para Jesus um titulo não muito adequado "filho de Davi" (Jesus fez muitas restrições a este titulo messiânico), mas ele tem a prática certa – segue Jesus pelo caminho. Aqui Marcos faz contraste com a figura de Pedro, que tinha o título certo "Tu és o Messias", mas a prática errada! Não quis que Jesus caminhasse para a morte! Assim, em Marcos, o modelo de discípulo não é Pedro, mas Bartimeu: mais importante do que os títulos e expressões teológicas, sem negar a sua importância relativa, é a prática dos seguimentos de Jesus! Um alerta para todos nós, para que a nossa prática seja coerente com a nossa fé, no seguimento de Jesus, em favor do Reino de Deus.

sábado, 20 de outubro de 2012

A ambição pelo poder


Evangelho – No Evangelho deste domingo (Mc 10,35-45), Jesus é procurado pelos apóstolos Tiago e João (filhos de Zebedeu) que lhe pedem uma posição de destaque no Reino de Deus: “Deixai-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!" (v. 37). Jesus responde que não depende dele conceder o lugar à direita ou à esquerda; estes lugares pertencem àqueles a quem foi reservado. Os outros dez apóstolos, ao ouvirem o pedido, se revoltam contra Tiago e João. 

Situação – No esquema do evangelho de Marcos, o texto situa-se quase no fim da caminhada de Jesus com os seus discípulos para Jerusalém, o lugar do desfecho de toda a sua missão. Pela terceira vez, ele tem dado aos seus mais íntimos colaboradores o anúncio sobre a sua paixão de morte: “Eis que estamos subindo para Jerusalém, e o Filho do Homem vai ser entregue aos chefes dos sacerdotes e aos doutores da Lei. Eles o condenarão à morte e o entregarão aos pagãos. Vão caçoar dele, cuspir nele, vão torturá-lo e matá-lo (v.33).  

Cegos – De novo, a afirmação deixa mais do que claro o que significa ser o Messias de Deus. Mas, não surte efeito: os discípulos, cegos pela ideologia dominante, são incapazes de entender o sentido da vida de Jesus e, por conseguinte, o sentido de ser discípulo dele. Como Pedro, depois do primeiro anúncio e todos os Doze, depois do segundo, João e Tiago conseguem resistir o ensinamento de Jesus numa tentativa de impor seus próprios interesses. 

O poder – Apesar de ouvirem que Jesus veio para dar a sua vida em serviço de todos, os irmãos pedem os primeiros lugares quando Jesus entrasse na sua glória. O desejo de dominar estava muito enraizado neles. É tão gritante o descompasso entre o ensinamento de Jesus e os desejos dos dois irmãos, que Mateus, relatando a mesma historia, suaviza o texto de Marcos, fazendo com que a mãe deles fizesse o pedido! (Mt 20,20). A queixa de Deus no Antigo Testamento, de que o seu povo era um povo “cabeça dura”, se atualiza nos Doze!
Os outros – Mas não podemos pensar que só os dois filhos de Zebedeu sentiram o gosto pela dominação. É interessante notar a reação dos outros dez diante do pedido feito: “Quando os outros dez discípulos ouviram isso, começaram a ficar com raiva de Tiago e João” (v. 41). Porque ficaram com raiva? Não porque achavam sem sentido o pedido dos dois, mas porque, no fundo, cada um deles queria ter o lugar de honra e poder!! O vírus de dominação é mais do que contagioso!
 

Servir – Mais uma vez, Jesus demonstra paciência histórica com os seus seguidores. Contrasta o sistema de organização da sociedade com aquele que queria para a comunidade dos seus discípulos: “Não deve ser assim entre vós: Quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos” (v. 43-44). Deixa bem claro o motivo – não por causa de uma humildade qualquer, mas porque ele nos deu o exemplo: “porque o Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos” (v.45). Ser discípulo de Jesus é ter o mesmo ideal, a mesma prática do que ele!

Hoje – O texto torna-se muito atual para os dias de hoje. Infelizmente o contraste feito por Jesus entre os seus seguidores e o sistema da sociedade secular nem sempre se verifica. Ninguém pode se achar imune diante desta tentação, pois está bem enraizada dentro de todos nós. Somente uma mística bem cultivada do seguimento de Jesus, fundamentada na Palavra da Escritura, poderá nos ajudar para que realmente construamos uma Igreja onde se demonstra que “entre vocês não deve ser assim”.

sábado, 13 de outubro de 2012

O CAMELO E O BURACO DA AGULHA


No Evangelho deste domingo é apresentado o texto de São Marcos (Mc 10,17-30) em que o jovem rico perguntou a Cristo o que deveria fazer para conseguir a vida eterna. 

O jovem rico – Jesus lhe indicou os Dez Mandamentos da Lei de Deus.  Tendo o jovem respondido que já os observava desde a juventude, o Senhor aconselhou-lhe que vendesse as suas posses, distribuísse aos pobres e o seguisse.  Ao ouvir estas palavras, o jovem afastou-se entristecido, pois era proprietário de grandes posses.   

O camelo – Esta atitude do jovem ocasionou as seguintes observações de Cristo: Em verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no reino dos céus. Digo-vos ainda: é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” (Mc 10,25 e Mt 19,24). 

Estranho – Sem qualquer dúvida, a desproporção, o contraste quase absurdo, causa estranheza aos dizeres de Jesus.  Os pesquisadores apresentam três explicações possíveis para a esquisita comparação: 

a) JESUS TERIA USADO UM DITO POPULAR

          A primeira explicação sugere que Jesus realmente tenha dito tal frase, se utilizando de uma expressão (ditado) popular.  Parece que Ele quis mostrar a dificuldade da salvação, recorrendo a uma comparação absurda.  Cale lembrar que esta frase usada por Jesus em Mc 10,25 nunca foi encontrada em qualquer outro texto judaico, embora outras estranhas comparações tenham aparecido:

          - “Ninguém imagina, nem mesmo em sonho, uma palmeira de ouro, ou um elefante que passe pelo buraco de uma agulha” (Talmud (352).

          - “Pode um etíope mudar a própria pele? Ou um leopardo apagar as malhas do pêlo de que se reveste?” (Jr 13,23).

          Se Cristo vivesse nos dias atuais e se utilizasse de um ditado dos nossos dias, talvez dissesse: “Nem que chova canivete, um rico entrará no reino dos céus”. 

b) CAMELO OU CORDA

          Na segunda explicação supõe-se que houve um erro na transcrição dos textos dos Evangelhos. Antes da invenção da imprensa, os textos eram copiados manualmente por copistas e sujeitos a inúmeros erros.  Dentre estas falhas, o escriba deve ter escrito camelo (Kámelos, em grego) no lugar de corda (Kámilos, em grego).  Kámilos era uma corda de grande diâmetro, usada para prender os barcos no porto.  Esta cópia do Evangelho (com a palavra trocada) teria sido usada como original por outros copistas, chegando até nossos dias. 

          Esta explicação foi apresentada por S. Cirilo de Alexandria (444) e aceita por outros textos do século V como o Tractatus de Divitiis, atribuído ao bispo Fastídio (410-450).

          Portanto, se aceitarmos esta justificativa, as verdadeiras palavras de Jesus foram (Mc 10,25): “É mais fácil uma corda passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. 

c) A PORTA DE JERUSALÉM

          A terceira explicação se refere a uma descoberta recente: alguns textos da época de Jesus reportam a existência de uma pequena passagem (ou buraco) nos muros da cidade de Jerusalém, chamado de “Buraco da Agulha”.  Devemos lembrar que Jerusalém era cercada por altos muros e grandes portões que eram fechados durante a noite.  O Buraco da Agulha era uma passagem (talvez usada para entrar ou sair ilegalmente da cidade) onde os animais de carga só podiam passar se fossem despojados da bagagem e dobrassem os joelhos; os homens só transitavam por aí se se curvassem.

          Fica a dúvida: teria Jesus se referido a esta passagem em seu discurso aos discípulos?

sábado, 6 de outubro de 2012

JESUS E O DIVÓRCIO

 
No Evangelho das missas deste domingo os fariseus interrogam Jesus sobre a legalidade do divórcio. 

Fariseus – Neste trecho do Evangelho de Marcos, os fariseus se encontram com Jesus e tentam colocá-lo à prova com a pergunta: “Pode um homem repudiar a sua mulher?” (Mc 10, 2). Cabe lembrar que Jesus e seus discípulos estavam em território da Peréia (transjordânico),  governado por Herodes Antipas. Foi nessa mesma região que João Batista foi preso e degolado, por denunciar o divórcio ilegal e o casamento ilícito de Herodes Antipas com sua cunhada Herodiades. Os fariseus instigavam Jesus a ter a mesma atitude de João, pensando que com isso Ele teria o mesmo destino. O que os fariseus queriam era que Jesus se tornasse intolerável política e religiosamente. 

Divórcio – O assunto gerava grandes discussões entre os fariseus, pois havia várias interpretações para as escrituras. Os judeus não sabiam o verdadeiro sentido do texto do livro Deuteronômio (Dt 24, 1), que diz: “Quando um homem se casa com uma mulher e consuma o matrimônio, se depois ele não gostar mais dela, por ter visto nela alguma coisa inconveniente, escreva para ela um documento de divórcio e o entregue a ela, deixando-a sair de casa em liberdade”. Eles consideravam que não eram totalmente claras as razões que poderiam fundamentar a rejeição da mulher pelo marido. A Lei, que era atribuída a Moisés, com seu caráter patriarcal machista, relegava a mulher a uma posição de submissão. 

Dois grupos – Na época de Jesus, duas grandes escolas teológicas judaicas divergiam na interpretação da Lei do divórcio: a escola de Hillel e a de Shammai. Hillel (viveu entre os anos 60 a.C. e 9 d.C.) foi um conhecido líder religioso judeu, estudioso respeitado em seu tempo, fundador de uma escola para ensino de mestres no judaísmo (Beit Hillel). Hillel tinha uma visão mais liberal dos textos bíblicos. Shammai, por sua vez, liderava uma escola conservadora, que proibia até o comércio de qualquer mercadoria com gentios (pagãos).  

Coisa inconveniente O grande problema dos fariseus é a interpretação dada ao termo “alguma coisa inconveniente” de Dt 24, 1. Hillel, mais liberal, entendia que o marido podia despedir sua mulher por qualquer motivo, como queimar o jantar, falar alto ou mesmo se esse marido encontrasse uma mulher mais interessante. Shammai, mais conservador, acreditava que o divórcio só poderia ser dado no caso de o marido encontrar na mulher alguma coisa inconveniente. Esse termo hebraico para descrever “coisa inconveniente”, erwath dabar, era entendido por Shammai como falta de castidade ou adultério. 

Pegadinha – Na verdade, os fariseus tentavam incriminar Jesus: se Ele dissesse que era lícito, afrouxaria o ensinamento de Moisés sobre o divórcio; se dissesse que era ilícito estaria condenando o matrimônio de Herodes Antipas com a cunhada, Herodíades. A pergunta dos fariseus insere-se, provavelmente, na tentativa de encontrar razões para eliminar Jesus. 

Proposta – Jesus recorda a perspectiva da Lei (“Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio para se repudiar a mulher”); contudo, essa condescendência da Lei não resulta do projeto de Deus para o homem e para a mulher, mas é o resultado da “dureza do coração” dos homens. As prescrições de Moisés não definem o quadro ideal do amor do homem e da mulher, mas apenas regulam o compromisso matrimonial, tendo em conta a mediocridade humana.  

Projeto de Deus – Em contraste com a permissividade da Lei, Jesus vai apresentar o projeto primordial de Deus para o amor do homem e da mulher. Citando livremente Gn 1,27 e Gn 2,24, Jesus explica que, no projeto original de Deus, o homem e a mulher foram criados um para o outro, para se completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, o homem e a mulher formarão “uma só carne”. Ser “uma só carne” implica viverem em comunhão total um com o outro, dando-se um ao outro, partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor que é mais forte do que qualquer outro vínculo. A separação será sempre o fracasso do amor; não está prevista no projeto ideal de Deus, pois Deus não considera um amor que não seja total e duradouro. Só o amor eterno, expresso num compromisso indissolúvel, respeita o projeto primordial de Deus para o homem e para a mulher.  

Reino de Deus – A perspectiva de Jesus sobre a questão é a seguinte: nessa nova realidade que Deus quer propor ao homem (o Reino de Deus), chegou o momento de abandonar a facilidade, a mesquinhez, as meias-verdades e de apontar para um patamar mais alto. Ora, no que diz respeito ao matrimônio, o patamar mais alto é o projeto inicial de Deus para o homem e para a mulher, que previa um compromisso de amor estável, duradouro, indissolúvel.