sábado, 30 de março de 2013

ÚLTIMA CEIA NA TERÇA-FEIRA ?


Uma das maiores divergências entre os Evangelhos está nos dias em que ocorreram os acontecimentos da Paixão de Cristo. Enquanto os três Evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) indicam a Última Ceia na sexta-feira e a morte de Cristo no sábado (no dia da Páscoa dos Judeus), o Evangelho de João coloca a última ceia na quinta-feira, a morte na sexta-feira e a Páscoa no sábado. 

Páscoa Judaica – O calendário judaico é diferente do calendário que usamos atualmente. O primeiro mês é o Nisã (ou Nissan), que começa junto com a primavera (21 de março). A Lei de Moisés (Ex 12,6) mandava que os Judeus comemorassem a Páscoa da seguinte forma: preparassem a Páscoa (imolando um cordeiro) no 14º dia do mês Nisã e, no 15º dia celebrariam a solenidade da Páscoa, observando o estrito repouso. 

Naquele tempo ... – No ano 30, ano da morte de Jesus, o 15º dia de nisã aconteceu num sábado. Portanto, os judeus prepararam o cordeiro na sexta-feira (14º dia de nisã) e, ao anoitecer (que os judeus já consideravam o dia seguinte) comeriam o cordeiro assado com pães ázimos (sem fermento). 

Divergência – Os três Evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) afirmam que a Última Ceia aconteceu no dia da preparação (em que se sacrificava o cordeiro) e a morte de Jesus no dia da Páscoa (Mt 26, 17-20;  Mc 14, 12-17;  e Lc 22, 7-12). No Evangelho de João (Jo 19,14-31) Jesus foi condenado e morreu no dia da preparação da Páscoa.  João explica que, por não terem comido o cordeiro pascal, os judeus não entravam no pretório de Pilatos durante o julgamento, pois o contato com o ambiente pagão os contaminaria (Jo 18, 28) impossibilitando de comer a ceia noturna. 

Portanto ... – Segundo Mateus, Lucas e Marcos, a Última Ceia aconteceu na sexta-feira (14º nisã) e crucificação e morte de Jesus ocorreu no sábado (15º nisã), Páscoa dos judeus; segundo João, a Última Ceia aconteceu na quinta-feira (13º nisã) e crucificação e morte de Jesus ocorreu em 14 nisã, na preparação (véspera) da Páscoa dos judeus. 

Soluções – Ao longo dos séculos aconteceram inúmeras tentativas de conciliar esta contradição dos Evangelhos, sem qualquer solução convincente. 

Calendários – No ano de 1947 foram descobertos os manuscritos de Qumrán, que eram parte de uma biblioteca de uma seita judaica chamada essênios. Dentre os inúmeros livros ali encontrados, dois deles (Livro dos Jubileus e Livro de Henoc) revelavam que, no tempo de Jesus, estavam em uso dois calendários distintos. Um era o calendário solar (ano de 364 dias) em que as festas importantes (ano novo, festa dos Tabernáculos, Páscoa) caíam sempre às quartas-feiras. O outro calendário (ano com 365 dias), mais recente e mais preciso, tinha como característica que o dia da Páscoa podia cair em qualquer dia da semana. 

Duas Páscoas – Portanto, na época de Jesus havia duas datas para a Páscoa: a os judeus mais tradicionais (mais populares), que adotavam o calendário mais antigo e celebravam a Páscoa na quarta-feira (preparavam na terça-feira e comiam após o entardecer), e a dos sacerdotes e classes mais elevadas, que adotavam o novo calendário, em que a festa da Páscoa podia cair em qualquer dia da semana. 

Solução – A solução para a divergência pode ser entendida se considerarmos que Jesus com seus apóstolos celebrou a Última Ceia baseando-se no calendário antigo, na terça-feira à noite, como fazia o povo mais simples. Os Evangelhos sinóticos afirmam que Jesus ceou com os apóstolos no dia da Páscoa (quarta-feira ou terça-feira à noite) porque seguiam o calendário antigo; João diz que Jesus ceou “antes da Páscoa”, portanto, segundo o calendário oficial. 

Última Ceia na terça – Com a nova data, os acontecimentos ficam distribuídos da seguinte forma: Terça: pela noite, Jesus celebra a Páscoa, vai ao Monte das Oliveiras, é preso e levado ao sumo sacerdote; Quarta: pela manhã acontece a primeira sessão do Sinédrio, que escuta os testemunhos e Jesus passa a noite na prisão dos judeus; Quinta: pela manhã, em nova sessão, o Sinédrio condena Jesus à morte, que é levado à Pilatos, que o interroga e lhe envia a Herodes e Jesus passa a noite na prisão dos romanos; Sexta: Pilatos recebe pela segunda vez Jesus, o condena a ser açoitado e crucificado, morrendo às 3 horas da tarde. 

Coerência – A proposta de localização da Última Ceia na terça-feira é bastante coerente, pois distribui todos os acontecimentos que antecederam a morte de Jesus em 3 dias; não haveria tempo hábil para todos estes fatos acontecerem na madrugada e manhã da sexta-feira (como no Evangelho de João). Seria impossível acontecerem no dia da Páscoa (como nos sinóticos), pois a tradição judaica proibia para este dia: carregar armas e encarcerar um réu (Mt 26, 47); acender fogo (Lc 22, 55); caminhar do campo para a cidade (Mc 15, 21); carregar uma cruz; executar uma sentença capital; comprar uma mortalha (Mc 15, 46); preparar aromas (Lc 23, 56). 

Liturgia – A Igreja Católica sempre seguiu o Evangelho de João, comemorando a Última Ceia na quinta-feira santa. Estes ritos fazem parte da liturgia, que tem uma finalidade mais pedagógica do que histórica. Assim como celebramos o nascimento de Jesus em 25 de dezembro (sabendo que não é uma data histórica), podemos seguir celebrando a Última Ceia na quinta-feira, pois o objetivo é obter um benefício espiritual.

sábado, 23 de março de 2013

Com Pedro ou com Judas


Neste domingo a Igreja comemora a Festa de Ramos. Reproduzimos aqui o comentário do Padre Raniero Cantalamessa OFM, pregador da Casa Pontifícia do Vaticano sobre o Evangelho deste domingo. 

Traição – O Domingo de Ramos é a única ocasião, em todo o ano, em que se escuta por inteiro o relato evangélico da Paixão. O que mais impressiona, lendo a paixão segundo Marcos, é a relevância que se dá à traição de Pedro. Primeiro é anunciada por Jesus na Última Ceia; depois se descreve em todo seu humilhante desenvolvimento. 

Confissão – Esta insistência é significativa, porque Marcos era uma espécie de secretário de Pedro e escreveu seu Evangelho unindo as recordações e as informações que lhe chegavam precisamente dele. Foi, portanto, o próprio Pedro quem divulgou a história de sua traição. Fez uma espécie de confissão pública. Na alegria do perdão encontrado, a Pedro não importou nada seu bom nome e sua reputação como líder dos apóstolos. Quis que nenhum dos que, posteriormente, caísse como ele, ficasse desesperado. 

Judas e Pedro – É necessário ler a história da negação de Pedro paralelamente à da traição de Judas. Também esta é pré-anunciada por Cristo no cenáculo, depois consumada no Horto das Oliveiras. De Pedro lê-se que Jesus voltou-se e “olhou” para ele (Lc 22, 61); com Judas fez mais ainda: beijou-o. Mas o resultado foi bem diferente. Pedro, “saindo, rompeu a chorar amargamente”; Judas, saindo, foi enforcar-se. 

Judas ou Pedro – Estas duas histórias não estão fechadas; prosseguem, afetam-nos de perto. Quantas vezes temos de dizer que fizemos como Pedro! Nós nos vimos na situação de dar testemunho de nossas convicções cristãs e preferimos nos fechar para não correr perigos, para não nos expormos. Dissemos, com os fatos ou com nosso silêncio: “Não conheço esse Jesus de quem vós falais”. 

Judas – Igualmente a história de Judas, pensando bem, não nos é alheia. O padre Primo Mazzolari teve uma pregação famosa uma Sexta-Feira Santa sobre “nosso irmão Judas”, fazendo ver como cada um de nós poderia ter estado em seu lugar. Judas vendeu Jesus por trinta denários, e quem pode dizer que não o traímos, às vezes até por muito menos? Traições, ao certo menos trágicas que a sua, mas, agravadas pelo fato de que nós sabemos, melhor que Judas, quem é Jesus. 

Duas histórias – Precisamente porque as duas histórias nos afetam de perto, devemos ver o que é que marca a diferença entre uma e outra: por que as duas histórias, de Pedro e de Judas, acabam de modo tão diferente? Pedro arrependeu-se do que havia feito, mas Judas também teve remorsos, tanto que gritou: “Traí sangue inocente!”, e devolveu os trinta denários. Onde está então a diferença? Só em uma coisa: Pedro teve confiança na misericórdia de Cristo, Judas não! 

Ladrões – No Calvário, de novo, ocorre o mesmo. Os dois ladrões pecaram igualmente e estão manchados de crimes. Mas um maldiz, insulta e morre desesperado; o outro grita: “Jesus, lembra-te de mim quando estiveres em teu reino”, e ouve como resposta: “Eu te asseguro: hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). 

Páscoa – Viver a Páscoa significa viver uma experiência pessoal da misericórdia de Deus em Cristo. Uma vez uma criança, à qual havia sido relatada a história de Judas, disse com o candor e a sabedoria das crianças: “Judas equivocou-se de árvore para enforcar-se: elegeu uma figueira”. “E o que deveria ter elegido?”, perguntou-lhe surpresa a catequista. “Devia ter-se colocado no colo de Jesus!”. Tinha razão: se tivesse se colocado no colo de Jesus para pedir-lhe perdão, hoje seria honrado como é São Pedro.

sábado, 16 de março de 2013

Houve cataclismos no dia em que morreu Jesus?


Conforme a Bíblia, coisas estranhas aconteceram na longínqua sexta-feira, 7 de abril do ano 30, que os cristãos chamam de Sexta-feira Santa.  

Condenação – O governador da Judéia, Pôncio Pilatos, acabava de autorizar a morte de Jesus sob uma tríplice acusação política: era um agitador social, incitava o povo a não pagar impostos ao Imperador e havia se autoproclamado rei (Lc 23,2). O castigo era a crucifixão, um dos mais comuns da época. 

Execução – Por volta das nove horas da manhã (Mc 15,25), o pelotão de soldados romanos partiu do palácio do governador até uma colina próxima, onde executou a sentença. E esperou ao pé da cruz a morte do condenado.  

Cataclismos – Mas, de repente, aconteceu o inesperado: “Desde o meio-dia até às três da tarde toda a Terra ficou coberta de escuridão” (Mt 27,45). Na Palestina, ver o Sol ardente do meio-dia obscurecer-se, deve ter sido um espetáculo impressionante. Mas isso não foi tudo. São Mateus conta que lá pelas três da tarde Jesus deu um forte grito e expirou. E então “eis que o véu do Templo se rasgou de alto a baixo em duas partes, a terra tremeu e fenderam-se as rochas. Abriram-se os túmulos e muitos corpos de santos ressuscitaram e, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição de Jesus, vieram à cidade santa e apareceram a muitos” (Mt 27,51-53).  

Cinco fenômenos – Segundo Mateus (27,51-53), no dia em que Jesus morreu aconteceram cinco prodígios: trevas ao meio-dia, tremor de terra, rochas que se partiram, tumbas que se abriram, corpos de santos falecidos que se levantaram e apareceram a muitos. É possível explicar isso? 

A escuridão – Uns 750 anos antes do nascimento de Jesus, o profeta Amós vivia na cidade de Samaria, capital do reino de Israel. Enormes injustiças e um contraste brutal entre ricos e pobres afligia o povo. Amós anunciava uma mensagem da intervenção de Deus: “Acontecerá naquele dia que farei o sol declinar em pleno meio-dia e escurecerei a terra em um dia de luz” (Am 8,9). O povo, então, começou a aguardar a chegada deste novo amanhecer, o dia em que Deus livraria todo o povo de sua dor e de suas injustiças. Começou a memorizar o sinal e a suspirar por este dia e passou a chamá-lo de “o dia de Javé”. 

O terremoto – Poucos anos mais tarde apareceu outro grande profeta, cujo nome era Isaías. A ele coube viver numa época muito difícil do reino de Judá. E foi lá pelo ano 740 a.C., que pronunciou um célebre sermão, proclamando a chegada do “dia de Javé” (Is 2,6-22). E três vezes repete este mesmo sinal (terremotos) em seu discurso (Is 2,10.19.21) para que o povo não se esqueça. O povo viu renascer novamente sua esperança no dia da manifestação de Deus. 

As rochas – Em 587 a.C., o povo de Israel foi levado cativo para a Babilônia onde permaneceu durante 50 anos. Ao regressar, surgiu o profeta Zacarias (300 a.C.), que falou sobre a necessidade de purificar o povo. Em uma de suas últimas predições (Zc 14,1-21), afirma que o “dia de Javé” não está muito longe. Nesse dia as rochas se fenderão, especialmente as do Monte das Oliveiras, localizado defronte a Jerusalém (Zc 14,4). Assim Zacarias predisse o terceiro sinal do dia de Javé. 

As tumbas – Três séculos antes (592 a.C.), muitos quilômetros dali, na Babilônia, surgia o profeta Ezequiel. O seu anúncio consistia na chegada de uma nova época para o mundo todo. Ezequiel faz um anúncio impressionante da chegada daquele dia de Javé: “Assim diz o Senhor Deus: ó meu povo, vou abrir vossas sepulturas! Eu vos farei sair de vossas sepulturas e vos conduzirei para a terra de Israel” (Ez 37,12). Acrescenta assim um quarto sinal aos três já dados pelos profetas anteriores sobre o “dia de Javé”.  

Os mortos – Faltava um último sinal, aquele dado pelo livro de Daniel. Esta obra foi provavelmente escrita por volta do ano 167 a.C., num momento muito difícil para os judeus. Daniel dá um sinal sobre aqueles santos que morreram dolorosamente na perseguição: “Muitos que dormem na terra poeirenta despertarão” (Dn 12,2). É a primeira vez que na Bíblia se anuncia a ressurreição dos mortos. Podemos imaginar o impacto que isso produziu entre os judeus, que fixaram para sempre a lembrança do fato como sinal da chegada do “dia de Javé”.
 
Sinais – Vemos, pois, como os profetas do Antigo Testamento foram dando esses cinco sinais indicadores que serviriam para conhecer a chegada de um dia muito especial, o “dia de Javé”. Na verdade tratava-se de uma linguagem simbólica. Queriam dar a entender que haveria mudanças muito notáveis na história. Mateus, quando descreve os cinco fenômenos que acompanham a paixão de Cristo, não pretendia relatar fatos realmente acontecidos. Simplesmente se propôs a afirmar uma verdade teológica, mediante imagens tomadas dos profetas do Antigo Testamento. Estamos, pois, diante de um relato simbólico que é preciso interpretar corretamente e não entender literalmente. Com sua descrição, pretendeu evocar o “fim do mundo” ou, pelo menos, o “fim de um mundo”. Com a morte de Jesus iniciou-se uma nova era na humanidade, o novo tempo da salvação.

sábado, 9 de março de 2013

Pôncio Pilatos : briguento e obstinado


Uma das críticas feitas ao filme “Paixão de Cristo” é que Pilatos é retratado como uma pessoa fraca e indecisa. De acordo com estudiosos, porém, Pilatos era um Governador enérgico, romano até a medula e com uma idéia fixa: a fidelidade ao imperador.  

Fraco? – De acordo com Marta Sordi (professora de História grega e romana, por 25 anos, na Universidade Católica de Milão e pesquisadora das relações entre cristianismo e império romano), Pôncio Pilatos não era um tipo indeciso, "Era um governador enérgico". Para Giuseppe Ricciotti (escritor do livro Vida de Jesus Cristo), Pilatos era "briguento" e "obstinado". Enfim, era um tipo duro, romano ao extremo; um funcionário que tinha por ideal a fidelidade ao imperador e que pecou por excesso de zelo: em 36, seis anos depois da morte de Cristo, expulsou, com energia, uma multidão de samaritanos para o monte Garizim. 

Saindo da história - Os samaritanos, que eram inimigos dos judeus e aliados dos romanos, recorreram a Tibério. E o pobre Pilatos foi chamado de volta a Roma. Desde então, saiu da história e sua figura foi remodelada por lendas. Tornou-se, para muitos, o homem que urdiu a condenação de Jesus Cristo à morte, o que é um erro: o Sinédrio decretou a morte do Messias. Como não era possível aos judeus, condenar alguém à pena capital, a última palavra cabia a Roma, por isso recorreram a Pilatos. Eis por que ele entrou na história: a condenação, decidida por razões religiosas, foi mascarada com as cores da política e Jesus foi apresentado como um perigoso agitador político.  

Duelo – Para conseguir o que queriam, os judeus usaram uma tática arriscada, mas vitoriosa, levada em frente à base da chantagem: Pilatos algumas vezes já havia provocado os judeus, mostrando os símbolos da dominação romana e os judeus haviam reagido recorrendo a Tibério. O próprio evangelho de Lucas, no capítulo treze, fala de outra intervenção de Pilatos, contra os galileus, que terminou com um banho de sangue. Enfim, os sumos sacerdotes e seus ilustres padrinhos sabiam como atingir o Governador: o imperador Tibério.  

Superarma - A "superarma" (a chantagem), porém, só foi mostrada no final de um extenuante duelo. Pilatos tinha o sentimento do Direito e sua função era fazer respeitar a lei; além disso, nutria por aqueles chefes do judaísmo um sentimento de desprezo e de confronto e via aí, portanto, uma ótima ocasião para contradizê-los em nome da lei. Enfim, tinha boas razões para absolver o acusado e aplicar um golpe nos chefes do povo, que não suportava. Viu naquele momento uma oportunidade de dar uma lição naquelas pessoas.  

Diálogo com Jesus - "Tu és o rei dos judeus?", "Dizes isso por ti mesmo ou foram outros que te disseram a meu respeito?", "O que fizeste?", "O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, meus servidores teriam lutado para que eu não fosse entregue aos judeus. O meu reino não é daqui". Um diálogo breve, mas suficiente para compreender que o Messias não era, de fato, um subversivo; a sua pregação podia até desarmar as mensagens de violência que sempre estavam presentes no meio da Palestina. No máximo, pensou que tinha diante de si um visionário: "Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz". "O que é a verdade?", perguntou. E a tentativa de abrir o diálogo se defrontou com o clamoroso silêncio de Cristo, que havia preenchido todo o cenário com a sua presença. "Não me respondes, não vês de quantas coisas estás sendo acusado?". Jesus tinha se calado, porque a verdade fala sem precisar de palavras e não necessita de didática nem de observações. 

Cartas - Antes de perder a “partida”, Pilatos apostou pelo menos em três “cartas”. Primeiro, enviou o prisioneiro a Herodes Antipas, o rei de um Estado fantoche. Pilatos tentou, assim, reaproximar-se do Tetrarca, com quem estava meio estremecido. Além disso, como pessoa prática e experiente, estava convencido de que seria fácil acabar com o “caso Jesus”. Alcançou o primeiro objetivo, tornando-se bom amigo do tirano; mas fracassou quanto ao segundo. Herodes mandou Jesus de volta. A esta altura, Pilatos, sempre se equilibrando entre as exigências da política e as razões da justiça, tentou uma segunda saída: "Portanto, depois de castigá-lo – comunicou – vou colocá-lo em liberdade". 

O "prêmio de consolação" – Segundo Ricciotti, o verdadeiro erro dialético dessa conclusão está nesse “portanto”. Se nem Pilatos nem Herodes tinham encontrado culpa alguma, nem nada que justificasse condená-lo à morte, como justificar esse “portanto”’? Prometendo o “prêmio de consolação” do flagelo, punição terrível, que em geral terminava com a morte, Pilatos dava mais um passo em falso. E apressou o tombo com a promessa de libertar um prisioneiro, pedindo que o povo escolhesse entre Jesus e Barrabás. A previsão de que Jesus seria o escolhido demonstra que ele tinha pouco conhecimento da nação que governava, bem como dos guias espirituais do povo. A ideia de colocar nas ruas o terrorista Barrabás tornou-se uma faca de dois gumes.

Golpe fatal - E os acusadores foram para o golpe fatal: "Se soltas (Jesus) não és amigo de César. Quem quer que se faça rei, opõe-se a César". Diante desse argumento, Pilatos, homem de carne e osso, magistrado romano despido de qualquer preocupação religiosa, cioso apenas da sua posição em Roma e da sua carreira política, não podia mais permanecer titubeante. Foi tomado pelo medo de ser driblado mais uma vez e ter de ouvir uma repreensão do próprio Tibério. Os inimigos de Jesus contra-atacaram: "Crucifica-o, crucifica-o". "Crucificar o vosso rei?". "Só temos um rei, que é César". Era o fim. Pilatos viu que não havia saída. O povo e seus mais ilustres representantes proclamavam só reconhecer como único e exclusivo rei, o César de Roma: evidentemente, o representante de César em Roma não podia expressar um parecer diverso desse e também, para não ferir os sentimentos religiosos dos acusadores, tinha de mandar crucificar aquele falso rei.

sábado, 2 de março de 2013

A morte de Jesus e a perseguição dos judeus

Origem – Durante o julgamento de Jesus, a multidão pronunciou uma frase que involuntariamente marcou a história e o destino do povo judeu na sua relação com os cristãos: "O seu sangue (de Jesus) caia sobre nós e sobre nossos filhos!" (Mt 27,25). Este grito foi interpretado ao longo dos séculos como uma maldição do povo judeu que caiu sobre si mesmo, tomando a responsabilidade pela morte de Jesus. Este versículo tem servido para justificar as atrocidades e perseguições cometidas contra este povo, como se estivessem sofrendo um castigo divino. 

A água liberta – Quando os líderes judeus levaram Jesus a Pilatos para ser julgado, o governador romano percebeu que, por inveja, o haviam entregado, e tentou libertá-lo. Usando de uma artimanha, apresentou Jesus junto com um famoso preso chamado Barrabás, para escolher quem seria solto. Os chefes dos sacerdotes e os líderes judeus convenceram a multidão a pedir a liberdade do infrator (Mt 28,15-18). Pilatos viu frustrado seu estratagema, disse que os judeus não podiam condenar Jesus à morte, porque não havia um crime. As pessoas, impulsionadas pelos altos sacerdotes, começaram a gritar: "Crucifica-o, crucifica-o" (Mt 27,22-23). Pilatos fez um último gesto simbólico, lavando as mãos, dizendo: "Eu não sou responsável pelo sangue deste justo. A responsabilidade é vossa" (Mt 27,24).  

Mãos judaicas – É muito difícil acreditar que Pilatos tenha feito este gesto, pois a lavagem das mãos como uma expressão de inocência pública é um costume judaico, estabelecido por Moisés no Antigo Testamento (veja em Dt 21,1-9; Sl 26,6; Sl 73,13). É muito improvável que Pôncio Pilatos, sendo romano, tenha realizado um ritual próprio da cultura hebraica. Por isso, muitos autores afirmam que a cena é uma criação do evangelista Mateus. 

A ameaça de Jeremias – Em resposta ao ato de Pilatos, o povo judeu gritou: "Seu sangue (de Jesus) caia sobre nós e sobre nossos filhos" (Mt 27,25). Esta é uma das frases mais desconcertantes do Novo Testamento. É realmente uma fórmula jurídica do Antigo Testamento, o que indicava que a pessoa deveria assumir a responsabilidade por um crime e sofrer o castigo correspondente, que era a morte (veja em Lv 20,9; Lv 20,11; Lv 20,13; 1Sam 1,16). Também o profeta Jeremias disse às autoridades de Jerusalém: "Sei que se eu for morto, sangue inocente cairá sobre você e toda a cidade" (Jr 26,15). É claro o significado da frase no Evangelho de Mateus: a multidão presente no julgamento de Jesus assumiu a responsabilidade pela sua execução. 

Que significado tem esta cena? Desde os tempos antigos têm sido interpretada para significar que todos os judeus, de todos os tempos, são responsáveis pela morte de Jesus. Um dos primeiros a defender essa posição foi Orígenes (século III), que ensinou que o sangue de Jesus "estava sobre todas as gerações posteriores de judeus, até o fim dos tempos." A mesma opinião foi Melito de Sardes (séc. II), Santo Agostinho (séc. IV), São Jerônimo (séc. IV), João Crisóstomo (séc. IV), Teofilato (séc. IX), Tomás de Aquino (séc. XIII) e Calvino. Lutero disse que a miséria em que os judeus viviam em seu tempo e sua condenação posterior, foi porque eles haviam rejeitado o Filho de Deus.  

Para complicar – Para piorar as coisas, em seu último discurso público, Jesus recordou os judeus que derramaram muito sangue inocente em toda a história, "desde o justo Abel até Zacarias" (Mt 23,34-35). Abel era filho de Adão e Eva, morto por seu irmão Caim, e Zacarias foi um famoso sacerdote de Jerusalém, no século IX a.C., que foi incentivado a denunciar a imoralidade em que viviam os israelitas, morrendo apedrejado no pátio do Templo. E conclui o sermão com uma frase assustadora: "Em verdade vos digo: todos esses crimes pesam sobre esta raça." (Mt 23,36).  

Sangue na Última Ceia – Podemos encontrar uma solução para este problema na cena da Última Ceia (Mt 26,26-29). No final da refeição, Mateus afirma que Jesus disse: "Bebei dele todos, pois este é o meu sangue da aliança, que é derramado por muitos" (Mt 26,28). E então ele acrescentou, "para o perdão dos pecados" (Mt 26,28). Curiosamente, embora os três Evangelhos sinópticos e São Paulo (Mateus 26,28, Marcos 14,24, Lucas 22,20, 1Cor 11,24) descrevam a Última Ceia, Mateus é o único que esclarece que o sangue servirá para perdoar os pecados. A frase dita à multidão reunida no tribunal, que o sangue de Jesus cairia sobre a cabeça dos judeus e de seus filhos (ou seja, todos os descendentes seus), não é para amaldiçoar ou condenar e sim para perdoá-los de seus pecados. A multidão reunida nesse dia no palácio do governador pediu a morte de um condenado e, na realidade, sem se dar conta, obteve um ato salvador.  

Sarcasmo – A ironia do escritor bíblico é fantástica: alguém desatento pode pensar que o sangue de Jesus contaminou o povo judeu, entretanto, o que realmente intencionava era absolvê-lo e liberá-lo – não apenas daquela ação equivocada, mas de tudo o que pudesse ter existido em seu passado, desde o sangue de Abel até Zacarias. Assim, cumpre-se o programa que Mateus havia anunciado quando um anjo aparece para José e diz que a criança nascida de Maria “vai salvar o seu povo dos seus pecados” (Mt 1,21).  

Portas abertas – O grito do povo judeu naquela manhã, no palácio de Pilatos, abriu as portas da salvação e do perdão a toda a humanidade, a começar por aqueles que pareciam mais distantes. Mantê-las abertas para todos os povos, continua hoje a missão de tantos quantos lerem o Evangelho do judeu Mateus.