A água liberta – Quando os líderes judeus levaram
Jesus a Pilatos para ser julgado, o governador romano percebeu que, por inveja,
o haviam entregado, e tentou libertá-lo. Usando de uma artimanha, apresentou
Jesus junto com um famoso preso chamado Barrabás, para escolher quem seria
solto. Os chefes dos sacerdotes e os líderes judeus convenceram a multidão a
pedir a liberdade do infrator (Mt 28,15-18). Pilatos viu frustrado seu
estratagema, disse que os judeus não podiam condenar Jesus à morte, porque não havia
um crime. As pessoas, impulsionadas pelos altos sacerdotes, começaram a gritar:
"Crucifica-o, crucifica-o" (Mt 27,22-23). Pilatos fez um último gesto
simbólico, lavando as mãos, dizendo: "Eu não sou responsável pelo sangue
deste justo. A responsabilidade é vossa" (Mt 27,24).
Mãos judaicas – É muito difícil acreditar que
Pilatos tenha feito este gesto, pois a lavagem das mãos como uma expressão de
inocência pública é um costume judaico, estabelecido por Moisés no Antigo
Testamento (veja em Dt 21,1-9; Sl 26,6; Sl 73,13). É muito improvável que Pôncio
Pilatos, sendo romano, tenha realizado um ritual próprio da cultura hebraica.
Por isso, muitos autores afirmam que a cena é uma criação do evangelista
Mateus.
A ameaça de Jeremias – Em resposta ao ato de Pilatos, o povo judeu gritou:
"Seu sangue (de Jesus) caia sobre nós e sobre nossos filhos" (Mt 27,25).
Esta é uma das frases mais desconcertantes do Novo Testamento. É realmente uma
fórmula jurídica do Antigo Testamento, o que indicava que a pessoa deveria
assumir a responsabilidade por um crime e sofrer o castigo correspondente, que
era a morte (veja em Lv 20,9; Lv 20,11; Lv 20,13; 1Sam 1,16). Também o profeta
Jeremias disse às autoridades de Jerusalém: "Sei que se eu for morto,
sangue inocente cairá sobre você e toda a cidade" (Jr 26,15). É claro o
significado da frase no Evangelho de Mateus: a multidão presente no julgamento
de Jesus assumiu a responsabilidade pela sua execução.
Que significado tem esta cena? Desde os
tempos antigos têm sido interpretada para significar que todos os judeus, de
todos os tempos, são responsáveis pela morte de Jesus. Um dos primeiros a
defender essa posição foi Orígenes (século III), que ensinou que o sangue de
Jesus "estava sobre todas as gerações posteriores de judeus, até o fim dos
tempos." A mesma opinião foi Melito de Sardes (séc. II), Santo Agostinho
(séc. IV), São Jerônimo (séc. IV), João Crisóstomo (séc. IV), Teofilato (séc.
IX), Tomás de Aquino (séc. XIII) e Calvino. Lutero disse que a miséria em que
os judeus viviam em seu tempo e sua condenação posterior, foi porque eles
haviam rejeitado o Filho de Deus.
Para complicar – Para piorar as coisas, em seu
último discurso público, Jesus recordou os judeus que derramaram muito sangue
inocente em toda a história, "desde o justo Abel até Zacarias" (Mt
23,34-35). Abel era filho de Adão e Eva, morto por seu irmão Caim, e Zacarias
foi um famoso sacerdote de Jerusalém, no século IX a.C., que foi incentivado a
denunciar a imoralidade em que viviam os israelitas, morrendo apedrejado no
pátio do Templo. E conclui o sermão com uma frase assustadora: "Em verdade
vos digo: todos esses crimes pesam sobre esta raça." (Mt 23,36).
Sangue na Última Ceia – Podemos encontrar uma solução
para este problema na cena da Última Ceia (Mt 26,26-29). No final da refeição, Mateus
afirma que Jesus disse: "Bebei dele todos, pois este é o meu sangue da
aliança, que é derramado por muitos" (Mt 26,28). E então ele
acrescentou, "para o perdão dos pecados" (Mt 26,28).
Curiosamente, embora os três Evangelhos sinópticos e São Paulo (Mateus 26,28,
Marcos 14,24, Lucas 22,20, 1Cor 11,24) descrevam a Última Ceia, Mateus é o
único que esclarece que o sangue servirá para perdoar os pecados. A frase
dita à multidão reunida no tribunal, que o sangue de Jesus cairia sobre a
cabeça dos judeus e de seus filhos (ou seja, todos os descendentes seus), não é
para amaldiçoar ou condenar e sim para perdoá-los de seus pecados. A multidão
reunida nesse dia no palácio do governador pediu a morte de um condenado e, na
realidade, sem se dar conta, obteve um ato salvador.
Sarcasmo – A ironia do escritor bíblico é
fantástica: alguém desatento pode pensar que o sangue de Jesus contaminou o
povo judeu, entretanto, o que realmente intencionava era absolvê-lo e liberá-lo
– não apenas daquela ação equivocada, mas de tudo o que pudesse ter existido em
seu passado, desde o sangue de Abel até Zacarias. Assim, cumpre-se o programa
que Mateus havia anunciado quando um anjo aparece para José e diz que a criança
nascida de Maria “vai salvar o seu povo dos seus pecados” (Mt 1,21).
Portas abertas – O grito do povo judeu naquela
manhã, no palácio de Pilatos, abriu as portas da salvação e do perdão a toda a
humanidade, a começar por aqueles que pareciam mais distantes. Mantê-las
abertas para todos os povos, continua hoje a missão de tantos quantos lerem o
Evangelho do judeu Mateus.
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