sábado, 12 de outubro de 2013

As duas histórias da criação


Na semana passada vimos que a Bíblia (capítulos 1 e 2 do Gênesis) relata duas histórias criação do mundo. Ao analisar estas duas histórias, notamos várias contradições entre elas. 

As duas histórias – A primeira história (Gn 1) conta que, no começo dos tempos, tudo era caos e vazio, até que Deus resolveu pôr ordem nessa confusão. Criou a luz (manhãs e as noites), o firmamento, separou as águas da terra firme, criou as estrelas, sol, lua, plantas, aves, peixes e répteis. E, por último, formou o homem (sua imagem e semelhança). Quando vamos ao capítulo 2, parece que não aconteceu nada antes. Estamos outra vez diante do vazio total. Deus, novamente em cena, põe-se a trabalhar. Torna a criar o homem, modelando-o com o pó da terra. Cria as plantas, árvores e animais e, por fim, a mulher, de uma costela do homem. Vimos que as histórias são parábolas, relatos que pretendem deixar um ensinamento às pessoas. Mas, como se escreveram dois relatos tão diferentes? 

A primeira história – O primeiro relato a ser composto foi Gn 2, embora na Bíblia apareça em segundo lugar. Por isso tem um sabor tão primitivo, espontâneo, vívido. Durante muitos séculos foi o único relato sobre a origem do mundo que o povo de Israel tinha. Foi escrito dez séculos antes de Cristo, durante a época do rei Salomão, e seu autor era um excelente catequista que sabia pôr ao alcance do povo, em forma gráfica, as mais altas ideias religiosas. Com um estilo pitoresco e infantil, mas de uma profunda observação da psicologia humana, narra a formação do mundo, do homem e da mulher como uma parábola oriental, cheia de ingenuidade e frescor. 

As fontes – Para isso valeu-se de antigos mitos tirados dos povos vizinhos. De fato, as antigas civilizações assíria, babilônica e egípcia tinham composto suas próprias narrativas sobre a origem do cosmos, que hoje podemos conhecer graças às escavações arqueológicas realizadas no Oriente Médio. E torna-se surpreendente a semelhança entre estes relatos e o da Bíblia. Todos dependem de uma concepção cosmológica de um universo formado por três planos superpostos: os céus, com as águas superiores; a terra, com o homem e os animais; e o mar, com os peixes e as profundezas da terra. O autor de Gn 2 (javista) recolheu essas tradições populares de seu tempo e as utilizou para compor uma mensagem religiosa.  

A grande decepção – Quatro séculos depois de a primeira história ter sido composta, uma catástrofe veio alterar a vida e a fé do povo judaico. No ano de 587 a.C., o exército babilônico, comandado por Nabucodonosor, tomou Jerusalém e levou o povo como escravo para a Babilônia. E lá, na Babilônia, veio a grande surpresa. Os primeiros cativos começaram a chegar àquela capital e se depararam com uma cidade esplêndida, com enormes edifícios, magníficos palácios, torres com vários andares, aquedutos grandiosos, jardins suspensos, fortificações e templos luxuosos. Eles, que se sentiam orgulhosos de pertencer a uma nação bendita e engrandecida por Javé, na Judéia, não eram senão um povo modesto, com escassos recursos, diante da Babilônia. O templo de Jerusalém, construído com todo o luxo pelo grande rei Salomão e para a glória de Javé, que o escolhera para sua morada, não era senão um pálido reflexo do impressionante complexo cultural do “deus” Marduk, da “deusa” Sin e de seu “esposo” Ningal. Jerusalém, orgulho nacional, por quem todo israelita suspirava, era uma cidade apenas “considerável”, em comparação com Babilônia e suas muralhas, enquanto seu rei, ungido de Javé, nada podia fazer diante do poderoso monarca Nabucodonosor, “braço direito” do “deus” Marduk. 

A fé estava em perigo – Javé seria mais fraco que o deus dos babilônios? Não seria a hora de crer num deus que fora superior a Javé, que protegera com mais eficiência seus súditos, outorgando-lhes melhores favores que os magros benefícios obtidos suplicando ao Deus de Israel? Caíram, então, as ilusões num Deus que parecia não ter podido cumprir suas promessas. Os judeus começaram a passar em massa para a nova religião dos conquistadores, com a esperança de que um deus de tal envergadura melhoraria sua sorte e seu futuro. 

Uma nova catequese – Diante da situação em que vivia o decaído povo judeu, um grupo de sacerdotes começou a tomar consciência de que era preciso voltar a catequizar o povo. O velho relato da criação, que o povo tanto conhecia (Gn 2), já não servia mais. Tinha perdido sua força. Era preciso escrever um novo, onde se pudesse apresentar uma vigorosa ideia do Deus de Israel, poderoso, que expressasse supremacia, excelso entre as criaturas. Escrevem assim uma nova catequese (Gn 1), com um renovado ato de fé em Javé, o Deus de Israel. 

Um Deus atualizado – Cem anos depois, lá por 400 a.C., um último redator compôs o livro do Gênesis, recopiando velhas tradições. Resolveu, apesar das evidentes contradições, conservar os dois relatos da criação. Colocou como porta de entrada na Bíblia o relato dos sacerdotes. Não quis, porém, suprimir o antigo relato do autor javista e o colocou a seguir. Com isso, manifestava que, para ele, Gn 1 e Gn 2 relatavam, de maneira distinta, a mesma verdade revelada, tão rica, que não bastava um só relato para expressá-la.

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