Na
semana passada vimos que a Bíblia (capítulos 1 e 2 do Gênesis) relata duas
histórias criação do mundo. Ao analisar estas duas histórias, notamos várias
contradições entre elas.
As duas histórias – A primeira história (Gn 1) conta que, no começo dos
tempos, tudo era caos e vazio, até que Deus resolveu pôr ordem nessa confusão. Criou
a luz (manhãs e as noites), o firmamento, separou as águas da terra firme,
criou as estrelas, sol, lua, plantas, aves, peixes e répteis. E, por último,
formou o homem (sua imagem e semelhança). Quando vamos ao capítulo 2, parece
que não aconteceu nada antes. Estamos outra vez diante do vazio total. Deus,
novamente em cena, põe-se a trabalhar. Torna a criar o homem, modelando-o com o
pó da terra. Cria as plantas, árvores e animais e, por fim, a mulher, de uma
costela do homem. Vimos que as histórias são parábolas,
relatos que pretendem deixar um ensinamento às pessoas. Mas, como se
escreveram dois relatos tão diferentes?
A primeira história – O primeiro relato a ser composto foi Gn 2, embora na
Bíblia apareça em segundo lugar. Por isso tem um sabor tão primitivo, espontâneo,
vívido. Durante muitos séculos foi o único relato sobre a origem do mundo que o
povo de Israel tinha. Foi escrito dez séculos antes de Cristo, durante a época
do rei Salomão, e seu autor era um excelente catequista que sabia pôr ao
alcance do povo, em forma gráfica, as mais altas ideias religiosas. Com um
estilo pitoresco e infantil, mas de uma profunda observação da psicologia
humana, narra a formação do mundo, do homem e da mulher como uma parábola oriental,
cheia de ingenuidade e frescor.
As fontes – Para isso valeu-se de antigos mitos tirados dos povos vizinhos.
De fato, as antigas civilizações assíria, babilônica e egípcia tinham composto
suas próprias narrativas sobre a origem do cosmos, que hoje podemos conhecer
graças às escavações arqueológicas realizadas no Oriente Médio. E torna-se
surpreendente a semelhança entre estes relatos e o da Bíblia. Todos dependem de
uma concepção cosmológica de um universo formado por três planos superpostos:
os céus, com as águas superiores; a terra, com o homem e os animais; e o mar,
com os peixes e as profundezas da terra. O autor de Gn 2 (javista) recolheu
essas tradições populares de seu tempo e as utilizou para compor uma mensagem
religiosa.
A grande decepção – Quatro séculos depois de a primeira história ter sido
composta, uma catástrofe veio alterar a vida e a fé do povo judaico. No ano de 587
a.C., o exército babilônico, comandado por Nabucodonosor, tomou Jerusalém e
levou o povo como escravo para a Babilônia. E lá, na Babilônia, veio a grande
surpresa. Os primeiros cativos começaram a chegar àquela capital e se depararam
com uma cidade esplêndida, com enormes edifícios, magníficos palácios, torres
com vários andares, aquedutos grandiosos, jardins suspensos, fortificações e
templos luxuosos. Eles, que se sentiam orgulhosos de pertencer a uma nação bendita
e engrandecida por Javé, na Judéia, não eram senão um povo modesto, com
escassos recursos, diante da Babilônia. O templo de Jerusalém, construído com
todo o luxo pelo grande rei Salomão e para a glória de Javé, que o escolhera para
sua morada, não era senão um pálido reflexo do impressionante complexo cultural
do “deus” Marduk, da “deusa” Sin e de seu “esposo” Ningal. Jerusalém, orgulho
nacional, por quem todo israelita suspirava, era uma cidade apenas “considerável”,
em comparação com Babilônia e suas muralhas, enquanto seu rei, ungido de Javé,
nada podia fazer diante do poderoso monarca Nabucodonosor, “braço direito” do “deus”
Marduk.
A fé estava em perigo – Javé seria mais fraco que o deus dos babilônios? Não
seria a hora de crer num deus que fora superior a Javé, que protegera com mais
eficiência seus súditos, outorgando-lhes melhores favores que os magros
benefícios obtidos suplicando ao Deus de Israel? Caíram, então, as ilusões num
Deus que parecia não ter podido cumprir suas promessas. Os judeus começaram a
passar em massa para a nova religião dos conquistadores, com a esperança de que
um deus de tal envergadura melhoraria sua sorte e seu futuro.
Uma nova catequese – Diante da situação em que vivia o decaído povo judeu, um
grupo de sacerdotes começou a tomar consciência de que era preciso voltar a
catequizar o povo. O velho relato da criação, que o povo tanto conhecia (Gn 2),
já não servia mais. Tinha perdido sua força. Era preciso escrever um novo, onde
se pudesse apresentar uma vigorosa ideia do Deus de Israel, poderoso, que
expressasse supremacia, excelso entre as criaturas. Escrevem assim uma nova
catequese (Gn 1), com um renovado ato de fé em Javé, o Deus de Israel.
Um Deus atualizado – Cem anos depois, lá por 400 a.C., um último redator compôs
o livro do Gênesis, recopiando velhas tradições. Resolveu, apesar das evidentes
contradições, conservar os dois relatos da criação. Colocou como porta de
entrada na Bíblia o relato dos sacerdotes. Não quis, porém, suprimir o antigo
relato do autor javista e o colocou a seguir. Com isso, manifestava que, para
ele, Gn 1 e Gn 2 relatavam, de maneira distinta, a mesma verdade revelada, tão
rica, que não bastava um só relato para expressá-la.
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