sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Renuncie a si mesmo


O Evangelho das missas deste domingo (Mt 16,21-27) vem na sequência daquele que lemos e refletimos no passado domingo. Nele, lá no Norte da Galileia, perto das nascentes do rio Jordão, em Cesareia de Filipe, Jesus fez uma pergunta bastante inocente: "quem dizem os homens que eu sou?” Aparecem inúmeras respostas, pois esta pergunta não compromete ninguém. Mas a segunda pergunta traz a “facada”: “E vocês, quem dizem que eu sou?” Agora não aparecem muitas respostas, pois quem responde em nome pessoal e não o dos outros, se compromete! Somente Pedro se arrisca e proclama a verdade sobre Jesus: “tu és o Messias”. Pedro acertou, e Jesus confirma a verdade do que proclamou! Afirmou que foi através de uma revelação do Pai que Pedro fez a sua profissão de fé. Mas, a continuação do diálogo é mais complicado do que possa parecer.

Continuando – No trecho deste domingo, as multidões ficaram para trás e Jesus conversa com o grupo de discípulos. Eles acreditam que Jesus é o “Messias, Filho de Deus” e querem partilhar o seu destino de glória e de triunfo. Jesus vai, no entanto, explicar-lhes que o seu messianismo não passa por triunfos e êxitos humanos, mas pela cruz; e vai avisá-los de que viver como discípulo é seguir esse caminho da entrega e do dom da vida.

Messias – Pois Jesus logo explica o que quer dizer ser o Messias. Não era ser glorioso, triunfante e poderoso, conforme os critérios deste mundo. Muito pelo contrário, era ser fiel à sua vocação como Servo de Javé, era ser preso, torturado e assassinado, era dar a vida em favor de muitos. Usando o título messiânico “Filho de Deus” – que vem de Daniel 7,13 – Jesus confirmou que era o Messias, mas não o Messias que Pedro quis. Este, conforme as expectativas do povo do seu tempo, quis um Messias forte e dominador, não um que pudesse ir – e levar os seus seguidores – até a Cruz!

Pedro – Por isso Pedro contesta Jesus, pedindo que nada disso acontecesse. E como recompensa ganha uma das frases mais duras da Bíblia: “Afasta-se de mim, satanás! Você não pensa as coisas de Deus, mas as coisas dos homens.” (v.33). Pedro, cuja proclamação de fé parecia ser tão acertada, é agora chamado de Satanás – o Tentador por excelência! Pedro tinha os títulos certos, mas a prática errada!

Cruz – E assim, Jesus usa o equívoco de Pedro para explicar o que significa ser seguidor dele: “Se alguém quer me seguir, renuncie a se mesmo, tome a sua cruz, e siga-me” (v.34). Ter fé em Jesus não é em primeiro lugar um exercício intelectual ou teológico, mas uma prática: o seguimento dele na construção do seu projeto, até as últimas consequências.


Teoria e prática – Hoje, dois mil anos mais tarde, a segunda pergunta de Jesus ressoa forte. Para nós, quem é Jesus? Não para o catecismo, não para o Papa ou o Bispo, mas para cada de nós pessoalmente? No fundo, a resposta se dá não com palavras, mas pela maneira com que vivemos e nos comprometemos com o projeto de Jesus - Ele que veio para que todos tivessem a vida e a vida plenamente! (Jo,10,10). Cuidemos para não cair na tentação do equívoco de Pedro: a de termos a doutrina e a teoria certas, mas a prática errada!

sábado, 23 de agosto de 2014

Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja


O Evangelho deste domingo (Mt 16, 13-19) situa-nos no Norte da Galiléia, perto das nascentes do rio Jordão, em Cesareia de Filipe. A cidade tinha sido construída, por Herodes Filipe (filho de Herodes o Grande), no ano 2 ou 3 a.C., em honra do imperador Augusto. O episódio ocupa um lugar central no Evangelho de Mateus: Jesus dirige aos discípulos uma série de perguntas sobre si próprio. Não se trata, tanto, de medir a sua popularidade; trata-se, sobretudo, de tornar as coisas mais claras para os discípulos e confirmá-los na sua opção de seguir Jesus e de apostar no Reino.

Duas partes – Vamos dividir o texto em duas partes: na primeira, centra-se em Jesus e na definição da sua identidade; na segunda, centra-se na Igreja, que Jesus convoca à volta de Pedro.

O que dizem de mim? – Na primeira parte, Jesus interroga os discípulos sobre o que as pessoas dizem d’Ele e sobre o que os próprios discípulos pensam. A opinião dos “homens” vê Jesus em continuidade com o passado (“João Baptista”, “Elias”, “Jeremias” ou “algum dos profetas”). Não capta a condição única de Jesus, a sua novidade, a sua originalidade. Reconhecem, apenas, que Jesus é um homem convocado por Deus e enviado ao mundo com uma missão – como os profetas do Antigo Testamento… Mas não vão além disso. Na perspectiva dos “homens”, Jesus é, apenas, um homem bom, justo, generoso, que escutou os apelos de Deus e que Se esforçou por ser um sinal vivo de Deus, como tantos outros homens antes d’Ele. É muito, mas não é o suficiente: significa que os “homens” não entenderam a novidade do Messias, nem a profundidade do mistério de Jesus.

E os discípulos? – A opinião dos discípulos acerca de Jesus vai muito além da opinião comum. Pedro, porta-voz da comunidade dos discípulos, resume o que sente a comunidade do Reino quando afirma: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”. Nestes dois títulos resume-se a fé da Igreja de Mateus e a catequese aí feita sobre Jesus. Dizer que Jesus é “o Cristo” (Messias) significa dizer que Ele é esse libertador que Israel esperava, enviado por Deus para libertar o seu Povo e para lhe oferecer a salvação definitiva. No entanto, para os membros da comunidade do Reino, Jesus não é, apenas, o Messias: é, também, o “Filho de Deus”.

Filho de Deus – Definir Jesus como o “Filho de Deus” significa, não só que Ele recebe vida de Deus, mas que vive em total comunhão com Deus, que desenvolve com Deus uma relação de profunda intimidade e que Deus Lhe confiou uma missão única para a salvação dos homens; significa reconhecer a profunda unidade e intimidade entre Jesus e o Pai, e que Jesus conhece e realiza os projetos do Pai no meio dos homens. Os discípulos são convidados a entender dessa forma o mistério de Jesus.

Resposta – Na segunda parte, temos a resposta de Jesus à confissão de fé da comunidade dos discípulos, apresentada pela voz de Pedro. Jesus começa por felicitar Pedro pela clareza da fé que o anima. No entanto, deixa claro que essa fé não é mérito de Pedro, mas um dom de Deus (“não foram a carne e o sangue que lhe revelaram, mas sim o meu Pai que está nos céus”).

Rocha – O que é que significa Jesus dizer a Pedro que ele é “a rocha” (o nome “Pedro” é a tradução grega do hebraico “Kephâ” – “rocha”) sobre a qual a Igreja de Jesus vai ser construída? As palavras de Jesus têm de ser vistas no contexto da confissão de fé precedente. Mateus está afirmando, portanto, que a base firme e sólida, sobre a qual vai assentar a Ekklesia (Igreja) de Jesus é a fé que Pedro e a comunidade dos discípulos professam: a fé em Jesus como o Messias, Filho de Deus vivo.

Chaves – Para que seja possível a Pedro testemunhar que Jesus é o Messias Filho de Deus e edificar a comunidade do Reino, Jesus promete-lhe “as chaves do Reino dos céus” e o poder de “ligar e desligar”. Aquele que detém as chaves, no mundo bíblico, é o “administrador do palácio” (aquele que administrava os bens do rei, fixava o horário da abertura e do fechamento das portas do palácio e definia quais os visitantes que podiam entrar). Por outro lado, a expressão “atar e desatar” designava, entre os judeus da época, o poder para interpretar a Lei com autoridade, para declarar o que era ou não permitido, para excluir ou reintroduzir alguém na comunidade do Povo de Deus.


Pedro – Jesus nomeia Pedro para “administrador” e supervisor da Igreja, com autoridade para interpretar as palavras de Jesus, para adaptar os ensinamentos de Jesus a novas necessidades e situações, e para acolher – ou não – novos membros na comunidade dos discípulos do Reino (importante: todos são chamados por Deus a integrar a comunidade do Reino; mas aqueles que não estão dispostos a aderir às propostas de Jesus não podem aí ser admitidos).

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A fé da Cananeia


O Evangelho deste domingo (Mt 15,21-28) apresenta o encontro de Jesus com uma mulher cananeia, que pede a cura de sua filha. Após debater com seus discípulos, Jesus reconhece a fé da mulher e cura a filha dela.

O texto – Jesus viajava pela região das cidades de Tiro e Sidon, quando uma mulher cananeia se aproximou e começou a gritar: “Senhor, Filho de David, tem compaixão de mim. Minha filha está cruelmente atormentada por um demônio”. Os discípulos pediram para ele atender a mulher e Jesus respondeu: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”, deixando claro que ela era uma pagã. A mulher insistiu e Jesus respondeu: “Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos”. Mas ela replicou: “É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos”. Então Jesus respondeu-lhe: “Mulher, é grande a tua fé. Faça-se como desejas”, curando a sua filha.

Fenícia – O local do relato é a região de Tiro e Sidon, na Fenícia (atualmente o Líbano), ao norte da Galileia, que em 64 a.C. havia sido conquistada pelo imperador romano Pompeu e anexada à Síria. A Fenícia não era, aos olhos dos judeus, uma região “recomendável”. De lá tinham vindo exércitos inimigos e influências religiosas desastrosas, que afastavam os israelitas da fé em Javé. Os fariseus e doutores da Lei (defensores da pureza da fé) consideravam os habitantes dessa zona como “cães” (designação altamente pejorativa para os judeus).

O encontro – Jesus é confrontado por uma mulher desesperada por causa da doença da sua filha ("atormentada por um demônio”, na visão da época). Uma mulher fenícia (estrangeira, pagã inimiga, oriunda de uma região com má fama e, ainda por cima, “mulher”) apela a Jesus para ter a mesma salvação que ele propõe aos judeus... Merecerá essa graça? Jesus passará por cima dos preconceitos religiosos dos judeus e oferecerá a salvação a esta pagã?

A mulher – Consideremos, em primeiro lugar, a figura dessa mulher… As suas três intervenções mostram a sua ânsia de salvação: as designações “filho de David” (que equivale a “Messias”) e “Senhor” (“Kyrios”) com que ela se dirige a Jesus, se forem lidas em contexto cristão, equivalem a uma confissão de fé. É uma figura que impressiona pela fé, pela humildade e também pelo sofrimento que transparece em seu apelo.

Jesus – É surpreendente a forma dura como Jesus a trata. Ele começa em silêncio, aparentemente insensível aos apelos da mulher. Depois, perante a insistência dos discípulos, responde: “não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”. Finalmente, diante do dramático último apelo da mulher (“socorre-me, Senhor”), responde: “não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cães”. Como entender esta atitude rude e insensível do mestre galileu, sempre preocupado em traduzir em gestos concretos o amor e a misericórdia de Deus pelos homens? Será que a reação de Jesus é fruto da convicção de que a salvação devia derramar-se, em primeiro lugar, aos judeus, antes de alcançar os gentios?

Didática – Obviamente, Jesus conduziu o diálogo para demonstrar como eram ridículas as atitudes de discriminação dos pagãos, propostas pela catequese judaica oficial. Endurecendo progressivamente a sua atitude, frente ao apelo que lhe foi feito pela “cananeia”, Jesus dá à mulher a possibilidade de demonstrar a firmeza e a convicção da sua fé e prova aos judeus que os pagãos são bem dignos de se sentar à mesa do Reino. Esta mulher, na sua humildade, nem sequer reivindica equiparar-se a esse Povo eleito, convidado por Deus para o banquete do Reino… Ela está disposta a ficar apenas com “as migalhas” que caem da mesa; mas pede, insistentemente, que lhe permitam ter acesso a essa salvação que Jesus traz. Ao contrário, os fariseus e doutores da Lei, fechados na sua autossuficiência e nos seus preconceitos, rejeitam continuamente essa salvação que Jesus não cessa de lhes oferecer.


Catequese – Nesta catequese, Mateus tenta responder à questão de aceitar a entrada dos pagãos na Igreja de Jesus. A aceitação desse princípio foi muito difícil para os judeus convertidos ao cristianismo (confira a controvérsia que levou ao Concílio de Jerusalém, em At 15, e a polêmica entre Paulo e Pedro na Igreja de Antioquia, em Gal 2,11-14). Os judeus de formação farisaica entendiam que, para não se contaminar, não podiam comer com os pagãos. Jesus veio abolir tal distinção, tornando acessível a qualquer um o dom de Deus, pela fé em sua pessoa. Mateus recorda-lhes, então, que para Jesus o que é decisivo não é a raça, a história, a eleição, mas a adesão firme e convicta à proposta de salvação que, em Jesus, Deus faz aos homens.

sábado, 9 de agosto de 2014

Passemos à outra margem


O Evangelho deste domingo (Mt 14,22-33) apresenta Jesus andando sobre as águas, os discípulos com medo e Jesus estendendo-lhes a mão e dando-lhes força para vencer a adversidade.

Fantasma – O texto vem na sequência do episódio da multiplicação dos pães. Mateus descreve que “Jesus obrigou os discípulos a entrar na barca, e ir na frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despedia as multidões”. Logo depois, subiu sozinho ao monte, para rezar. O barco dos apóstolos ia no meio do mar, açoitado por altas ondas. Na madrugada, Jesus foi até eles, andando sobre o mar. Os discípulos assustaram-se, pensando que fosse um fantasma e gritaram cheios de medo. Jesus lhes disse: “Coragem! Sou eu. Não tenham medo”. Pedro disse: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água”. Jesus respondeu: “Venha”. Pedro desceu do barco, caminhou sobre as águas e começou a afundar, gritando: “Salva-me, Senhor!”. Jesus estendeu-lhe logo a mão e segurou-o. E todos do barco reconheceram Jesus como o Filho de Deus.

O mar – O episódio situa-nos na área do lago de Tiberíades ou de Genesaré, um lago de água doce com 21 quilômetros de comprimento e 12 de largura, situado na Galileia, um grande reservatório de água doce da Palestina. Para os judeus, esse lago era considerado, para todos os efeitos, um “mar” – lugar onde habitavam os monstros, os demônios e todas as forças que se opunham à vida e à felicidade do homem. Na perspectiva da teologia judaica, no mar, o homem estava à mercê das forças demoníacas e só o poder de Deus podia salvá-lo…

Reflexão – Para refletir sobre esta passagem, usaremos um texto de Orígenes, também conhecido por Orígenes de Alexandria. Orígenes foi um presbítero e teólogo cristão que viveu entre 185 e 253 d.C., sendo considerado o maior erudito da Igreja antiga. Exerceu grande influência na Igreja, tendo escrito mais de 600 obras. Tem textos importantes sobre a Santíssima Trindade, a virgindade de Maria e o Batismo dos cristãos. Orígenes professou o primado de Pedro e é o autor da afirmação da crucificação de Pedro de cabeça para baixo. A reflexão a seguir foi escrita há mais de 1.800 anos:

“Passemos à outra margem” – Orígenes de Alexandria

“Jesus mandou os discípulos subir para a barca a fim de precedê-Lo na outra margem, enquanto despedia as multidões. As multidões não podiam passar para a outra margem, visto que não eram Hebreus no sentido espiritual do termo, o qual se traduz: “os da outra margem”. Esta é a obra dos discípulos de Jesus: partir para a outra margem, ultrapassar o visível e o corporal – estas realidades temporárias – e ser os primeiros a chegar ao invisível e eterno…
Os discípulos, contudo, não puderam chegar antes de Jesus na outra margem… Talvez Ele tivesse querido ensiná-los, por experiência, que, sem Ele, não é possível lá chegar… Que barca é esta para a qual Jesus os manda subir? Não será a luta contra as tentações e as circunstâncias difíceis? … Ele, o Salvador, manda, portanto, os discípulos subir para a barca das provações a fim de chegarem à outra margem, ultrapassando as circunstâncias difíceis através da sua vitória sobre elas…
Depois, sobe à montanha, a um lugar apartado, para orar. Por quem reza? Provavelmente, em primeiro lugar, pelas multidões, para que, despedidas depois de terem comido os pães abençoados, não façam nada contrário à despedida de Jesus. Também pelos discípulos…, para que, no meio do mar, não sofram com as altas ondas nem com o vento contrário. Sou levado a dizer que é, graças à oração que Jesus dirige ao Pai, que os discípulos não sofreram danos no mar.

E nós, se algum dia cairmos sob a força das tentações, lembremo-nos de que não é possível chegarmos à outra margem sem sofrermos a prova das ondas furiosas e do vento contrário. Além disso, quando nos virmos rodeados de muitos e custosos afazeres, já um tanto cansados pela travessia que se alonga, pensemos que a nossa barca se encontra em pleno mar e que as ondas procuram fazer-nos “naufragar na nossa fé” (1 Tm 1, 19) … Acreditemos, então, que o fim da noite está iminente: “A noite vai avançada e o dia aproxima-se” (Rm 13, 12). O Filho de Deus virá até nós para nos acalmar o mar, caminhando sobre as águas.

sábado, 2 de agosto de 2014

POR QUE JESUS MULTIPLICOU OS PÃES DUAS VEZES?


A multiplicação dos pães é descrita duas vezes no Evangelho de Mateus (14,13-21 e 15, 29-39) e no Evangelho de Marcos (6, 34-44 e 8, 1-9). Os outros evangelistas descrevem o milagre apenas uma vez (Lc 9, 10-17 e Jo 6, 1-14). Por que os evangelistas repetirem a narração? Ou Jesus teria realizado dois milagres?

Mesmos detalhes – Nas duas narrações são descritos os mesmos detalhes: a) Jesus foi às margens do lago da Galileia; b) uma grande multidão se reuniu em torno dele; c) as pessoas ficaram com fome; d) Jesus perguntou onde encontrar comida; e) disseram que era impossível de obter; f) alguém ofereceu alguns pães e peixes; g) Jesus fez as pessoas se sentarem no chão; h) tomou o pão, abençoou-o e distribuiu para a multidão; i) todos comeram e ficaram saciados; j) sobraram várias cestas de pão.

Um ou dois milagres? – A pergunta dos apóstolos, "Como é que alguém poderia dar-lhes pão suficiente aqui no deserto?"  (Mc 8, 4) seria tola, se os discípulos já tivessem visto Jesus realizar a multiplicação – como não lembrar de outra multidão alimentada milagrosamente? Portanto, historicamente, deve ter havido um único milagre dos pães, que desdobrou-se em duas versões, como se fossem dois eventos diferentes.

Por que um milagre e duas narrações? – Os primeiros cristãos viram que a multiplicação dos pães era um prenúncio da Eucaristia que Jesus celebrou na Última Ceia. No Evangelho de João, depois da multiplicação, Jesus pede para que as pessoas não fiquem apenas com o pão que enche o estômago, mas que busquem outro pão, o que dá a vida eterna. Esse fato, explica o “enigma” das duas narrativas. Vejamos:

Necessidade – O milagre narrado ocorreu em território judeu (Mc 6,32), o que poderia parecer um convite exclusivo aos judeus para participar na Eucaristia. Assim, quando os primeiros cristãos começaram a pregar aos pagãos, quiseram deixar claro que eles também eram chamados a participar da Eucaristia. A maneira encontrada foi criar uma narração paralela da multiplicação dos pães, realizada em território pagão (Mc 7,31).

Os números – A primeira multiplicação (para os judeus), se fez com cinco pães (Mc 6,38), número simbólico que representava o Pentateuco, a Lei de Moisés, o alimento da alma. Na segunda narração (para os pagãos), são sete pães (Mc 8,5), pois de acordo com o Genesis, haveria 70 nações pagãs no mundo. Na primeira multiplicação comeram 5.000 pessoas (Mc 6,44), ou seja, 5 (número sagrado judeu) vezes 1000 (multidão, o povo judeu). Na segunda, comeram 4.000 pessoas (Mc 8, 9), ou seja, 4 (pontos cardeais da Terra) vezes 1000 (multidão, povos da Terra). Na primeira multiplicação sobraram 12 cestas (Mc 6,43), representando as 12 tribos de Israel; na segunda, sobraram sete cestos (Mc 8,8), porque 70 eram as nações pagãs.

Pessoas – Na primeira narrativa, as pessoas vieram de cidades vizinhas (Mc 6,33), representando o povo judeu mais perto de Jesus. Na segunda, as pessoas vieram "de longe" (Mc 8,3), ou seja, das nações pagãs longe do judaísmo. Na primeira, as pessoas reuniram-se em grupos de 100 e 50 pessoas para comer (Mc 6,40), como fizera o povo de Israel, no deserto (Ex 18, 25, Dt 1,15). Na segunda, as pessoas se organizaram espontaneamente, representando a liberdade das nações pagãs.

Pastor esperado – Na primeira narrativa, Jesus sente pena "porque eram como ovelhas sem pastor" (Mc 6, 34), referência à profecia de Ezequiel (Ez 34,5-6.13). Na segunda, sente pena "porque estavam três dias sem comer" (Mc 8, 2), indicando que até os pagãos são amados e cuidados por Deus. No primeiro milagre, as pessoas se sentam "sobre a grama verde" (Mc 6,39), uma alusão ao Salmo 22, bem conhecido dos judeus. No entanto, no segundo milagre as pessoas se sentam "sobre a terra" (Mc 8,6), simbolizando o mundo inteiro, de onde vieram os pagãos.

Palavras – No primeiro texto, as sobras foram coletadas em doze " kófinos " (Mc 6,43), cestos de vime usados pelos judeus. No segundo, foram sete "spyrís" (Mc 8,8), vaso de cordas usados pelos pagãos. Nos dois textos, Jesus tomou os pães e "deu graças" (Mc 6,41 e Mc 8,6), o que significa bendizer a Deus pela comida antes de comer. No texto para os judeus é usada a palavra euloguéin (usada no círculo familiar judaico), enquanto no texto pagão usou-se eujaristéin (usada no ambiente grego).

Concluindo – Jesus realizou o milagre da multiplicação dos pães às margens do lago da Galileia, após um longo dia de pregação com os judeus das regiões vizinhas. Com a consciência de que Jesus era o Messias esperado, aquele milagre adquiriu enorme importância, pois tornou-se uma antecipação da celebração da Eucaristia. A necessidade de levar o Evangelho a outros povos gerou a segunda narração, uma cena que não existiu historicamente, mas que reflete perfeitamente a vontade de Jesus: que ninguém fique longe do Pão, do seu amor, de sua amizade. Hoje este continua a ser o sonho de nossa Igreja: que aqueles que estão confusos, alienados e desorientados venham para a comunidade cristã e se sintam confortáveis nela, sem ser marginalizado ou rejeitado, para que Jesus possa ser o Pão repartido.