sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

OS 7 ERROS DO PRESÉPIO


  


Certamente você já se divertiu com aquele jogo dos 7 erros, em que são apresentadas duas figuras e nós temos que achar as 7 diferenças. Pois bem, hoje nós vamos procurar as 7 diferenças (ou erros) existentes no Presépio, quando comparado com os textos evangélicos.

MIDRAXE – Inicialmente devemos considerar que os textos evangélicos que narram a infância de Jesus (Mt 1-2 e Lc 1-2) não podem ser considerados relatos históricos, mas uma forma de redação que a tradição judaica é chama de midrachim (ou midraxe). Nela, há ênfase ao maravilhoso, com os personagens comunicando-se com o mundo celeste por meio dos anjos. “A história da infância de Jesus é uma história desta terra, mas o invisível nela se torna continuamente visível de maneira extraordinária; é uma história real, cujos atores, porém, são movidos pelo céu” (D. Estevão Bettencourt).

PRESÉPIO – O presépio foi criado por São Francisco de Assis, na Itália, em 1223, em uma gruta na cidade de Greccio. São Francisco queria que as pessoas compreendessem melhor o nascimento de Jesus, com isso pediu para seu amigo Giovani preparar o local conforme ele tinha pedido. São Francisco celebrou o Natal do Senhor entre o boi e o jumento, para demonstrar a simplicidade do local que Jesus nasceu.

1º ERRO – Os Magos não visitaram um recém-nascido – Quando os magos visitaram o Menino Jesus, já havia se passado quase dois anos. Isto é claro em Mt 2,7 (Herodes quis saber a data exata do nascimento de Jesus) e em Mt 2,16 (Herodes mandou matar todos recém-nascidos de Belém com até dois anos). Portanto, os magos não visitaram Jesus na manjedoura, mas uma criança próxima de completar dois anos.

2º ERRO – Os magos não eram três – O Evangelho de Mateus não cita o número de magos que visitaram Jesus. O número de três deve ter sido adotado em razão dos presentes recebidos por Jesus: ouro incenso e mirra.

3º ERRO – Os magos não eram reis – Mateus não chama os magos de reis. São chamados de reis, pela dedução de que apenas os reis presenteavam com ouro. O Evangelho também não cita os nomes dos magos: Baltazar (que significa ‘rei da luz’), Melchior (‘protetor de reis’) e Gaspar (‘vencedor de tudo’).

4º ERRO – A estrela não estava no nascimento – Se a estrela de Belém guiou os magos (Mt 2,1) durante a visita (dois anos após o nascimento) ela não estava no céu na época do nascimento.

5º ERRO – Jesus não nasceu num celeiro ou estábulo - Quase todos os presépios colocam o menino Jesus em um celeiro, cercado por animais. Isso acontece porque Lc 2,7 diz que “... e o deitou em uma manjedoura”. No entanto, uma manjedoura (calha de alimentação para animais) também podia ser usada em residências. Lucas (2,7) usa o termo grego “KATALUMATI” para o local onde Jesus nasceu. Se procurarmos outra ocasião em que no Evangelho de Lucas o mesmo termo é usado, vamos encontrar apenas mais uma citação: em Lc 22,11, ao descrever o local da Última Ceia. Isto significa que o evangelista usa o mesmo termo (KATALUMATI) para descrever o local onde Jesus nasceu e local da Última Ceia.

6º ERRO - Maria entrou em Belém em um jumento – A figura de Maria grávida, montando um jumento, é definitivamente um mito comum que a maioria dos cristãos acredita estar na Bíblia. Seria praticamente impossível para uma mulher, nos últimos dias de uma gravidez fazer uma viagem de 180 quilômetros, de Nazaré a Belém, em um jumento.

7º ERRO – Os animais ao redor de Jesus – Os evangelistas Mateus e Lucas não citam a presença dos diversos animais ao lado da manjedoura.

QUER SABER MAIS? – Se você gostou do assunto e quer mais informações, podemos lhe oferecer o texto “Os magos e Jesus” de autoria do teólogo Dom Estevão Bettencourt e o Novo Testamento em grego. Solicite por E-mail que lhe enviaremos os arquivos gratuitamente.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Jesus nasceu há 2026 anos



Você sabe dizer em que ano nasceu Jesus? Quantos anos Ele teria hoje? Se o nosso calendário cristão estivesse certo, em que ano estaríamos? Vamos apresentar mais detalhes sobre a cronologia do nascimento de Jesus a partir de alguns dados evangélicos, históricos e astronômicos.
          
O que dizem os Evangelhos – Os Evangelhos fornecem duas informações sobre o ano em que Jesus nasceu: alguns anos antes da morte de Herodes (Mt 2,1-19) e por ocasião de um recenseamento, quando Públio Sulpício Quirino era governador da província romana da Síria (Lc 2,2).

Um pouco de História – De acordo com o historiador judeu Flávio Josefo, Herodes governou 37 anos (desde 40 a.C. até a sua morte no ano 4 a.C.). Herodes morreu alguns dias após um eclipse lunar e cerca de 10 dias antes da Páscoa.  A astronomia confirma um eclipse lunar visível em Jerusalém na noite de 12 de março de 4 a.C. e a Páscoa daquele ano ocorreu em 11 de abril.  Portanto, Herodes morreu no final de março do ano 4 a.C. e Jesus nasceu, pelo menos, dois anos antes desta data. Quanto ao recenseamento citado em Lc 2,2, as informações são desencontradas e não conferem com os dados históricos.

Nascimento de Jesus – Essas considerações nos levam a situar o nascimento de Jesus no ano 7 (mais provável) ou 6 antes de nossa era e, portanto, se não fosse um paradoxo, poderíamos dizer em 7 ou 6 "antes de Cristo". Quanto ao mês do nascimento de Jesus, existem duas informações importantes: a existência de pastores nos campos (Lc 2,8) e a informação de que João Batista fora concebido quando Zacarias (seu pai) estava a serviço no Templo (Lc 1,5).

Pastores – Lucas (Lc 2,8) nos informa que, quando Jesus nasceu, "na mesma região havia uns pastores que estavam nos campos e que durante as vigílias montavam guarda a seu rebanho". Sabe-se que, em dezembro, quando comemoramos o Natal, a temperatura na região de Belém é abaixo de zero e, normalmente, há geadas.   Portanto, certamente não haveria gado, no mês de dezembro, nos pastos próximos a Belém.   Atualmente, naquela região, os rebanhos são levados para o campo em março e recolhidos no fim de outubro. Portanto, o nascimento de Jesus se deu antes do inverno (do hemisfério norte), talvez no mês de setembro ou outubro do ano 7 (talvez 6) antes de nossa era.

Zacarias – Lc 1,5;8;23;24 nos informa que o sacerdote Zacarias (pai de João Batista), da ordem de Abias, estava a serviço no Templo quando João Batista foi concebido. A tradição judaica indica a semana e o mês (do calendário judaico) que cada ordem realiza os trabalhos no Templo (1Cr 24). Neste ano, o período de trabalho de Zacarias no templo (ordem de Abias) começaria no décimo sábado do ano judaico, ou seja, o primeiro sábado do terceiro mês (Sivan, que corresponde a maio-junho). Concluímos que João deve ter sido concebido logo após o segundo sábado do mês de Sivan.

E Jesus? – O Texto de Lucas (Lc 1, 26-27) nos informa que Maria concebeu no sexto mês da gravidez de Isabel, ou seja, e Jesus foi concebido seis meses depois de João Batista. A data do nascimento de João Batista pode ser bem estabelecida em torno de 15 de Nissan; acrescentando-se seis meses ao nascimento de João chegamos ao Nascimento de Jesus no início do mês de Tishri (setembro).

25 de dezembro? – Interessante concluir que as duas análises indicam para o nascimento nos meses de setembro ou outubro. O ano mais provável é 7 a.C. Assim, na próxima quarta-feira estaremos comemorando o 2026º aniversário de Jesus.

QUER SABER MAIS? – Se você gostou do assunto e quer mais informações, podemos lhe oferecer a obra “A História dos Hebreus” do historiador Flávio Josefo (1.627 páginas), o texto do Vaticano sobre “A Cronologia da Vida de Jesus” e o texto “A data do nascimento de Jesus” com base na tradição judaica. Solicite por E-mail que lhe enviaremos os arquivos gratuitamente.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019


Tu és mesmo o Messias?


No Evangelho das missas deste domingo, João Batista manda os seus discípulos irem até Jesus e perguntar-lhe: “És Tu Aquele que há de vir ou devemos esperar outro?”. João Batista, como todo o povo judeu, aguardava a chegada de um Messias (o Cristo, o Ungido de Deus), como estava prometido no Antigo Testamento. Por essa razão, ele manda seus discípulos perguntarem a Jesus se Ele realmente o Messias esperado, ou devemos esperar por outro.

Messias – Nos primeiros séculos, uma das dificuldades do cristianismo era provar aos judeus que Jesus era o Messias, o Cristo esperado pelos judeus. Conforme o Antigo Testamento, este personagem deveria ter três características prometidas por Deus para o final dos tempos: um profeta, um rei e um sacerdote. Para Jesus ser o Messias, ele deveria ter as três qualidades.
 
Profeta, rei, sacerdote – A vinda de um profeta no final dos tempos foi comunicada por Deus a Moisés no livro do Deuteronômio (18,18): “Suscitarei um profeta como tu entre teus irmãos”. A promessa de um rei está no 2º Livro de Samuel (7,12), onde Deus diz a Davi: “Quando tu morreres eu mandarei um descendente teu e manterei o seu trono para sempre”. Finalmente, a promessa de um futuro sacerdote santo foi para Eli: “Mandarei um sacerdote fiel, que atue segundo a minha vontade” (1Sam 2, 35).

Jesus: Profeta e Rei – Cristo foi reconhecido como “profeta” (Mc 9,8), como “grande profeta” (Lc 7,16) e como “o profeta” (Jo 6,14). Também foi reconhecido como “rei” (Mt 21,9), como “o rei que vem em nome do Senhor” (Lc 19,38), como “o rei de Israel” (Jo 12,13).  O próprio Pedro reconhece Jesus como o profeta prometido (Hb 3,22) e como rei esperado (Hb 2,36).

Por que a pergunta de João? – João Batista e os judeus esperavam um Messias que viesse lançar fogo à terra, castigar os maus e os pecadores, dar início ao “juízo de Deus” (Mt 3,11-12). Ao contrário, Jesus aproximou-Se dos pecadores, dos marginais, dos impuros, estendeu-lhes a mão, mostrou-lhes o amor de Deus, ofereceu-lhes a salvação (Mt 8-9). João e os seus discípulos ficaram desconcertados: Jesus será o Messias esperado, ou é preciso esperar um outro que venha atuar de uma forma mais decidida, mais lógica e mais justiceira?

Jesus Sacerdote – Porém jamais, em nenhuma ocasião, Jesus foi reconhecido como sacerdote. Isto por uma clara razão: para ser sacerdote ele deveria pertencer a tribo de Levi, e Jesus pertencia à tribo de Judá. Portanto, para os judeus, Jesus era um leigo. Explicando melhor: Quando os Hebreus chegaram à Terra Prometida, se dividiram em 12 tribos. Só poderiam ser sacerdotes os descendentes da tribo de Levi (chamados levitas). Jesus pertencia à tribo de Judá, portanto nunca poderia ser aceito como sacerdote.

Solução – Por volta do ano 80 d.C. apareceu na cidade de Roma um personagem de grande cultura e grande conhecimento da língua grega. Este autor, que para nós permanece anônimo, escreveu a Carta aos Hebreus, esclarecendo que Jesus poderia ser sacerdote. Nos capítulos 7 a 10 da Carta, ele desenvolve o seguinte raciocínio: interpretando o Salmo 110 (vers. 4), em que Deus diz “tu és sacerdote para sempre, segundo a Ordem de Melquisedec”, ele afirma que Deus criou uma nova ordem de sacerdotes, distinta da ordem dos levitas. Jesus Cristo desceu dos céus para ser o sumo sacerdote desta nova ordem.
 
Quem era? – Melquisedec é proclamado como “rei de Salém” e “sacerdote do Deus Altíssimo” (Gn 14). Foi ao encontro de Abrão, abençoou-o, entregando-lhe pão e vinho. Trata-se de um personagem estranho, pois o texto não indica as suas origens nem a sua ordem sacerdotal.

Nova ordem – Portanto Cristo é o primeiro sacerdote, protagonista e iniciador de uma nova ordem de sacerdotes. Pela interpretação do Salmo (110, 4) e da Carta aos Hebreus (cap.7 a 10) a Igreja Católica proclama Jesus como “sacerdote para sempre, segundo a Ordem de Melquisedec”.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

“Tudo passa, só Deus basta”



Estamos iniciando o ano litúrgico, com o primeiro domingo do Advento. O texto do Evangelho das missas (Mt 24,37-44) é tirado do último grande discurso de Jesus antes de sua Paixão e morte. Para a reflexão deste Evangelho transcrevemos o texto do Pe. Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia do Vaticano.

Mateus – Neste domingo começa o primeiro ano do ciclo litúrgico trienal, chamado ano “A”. Nele nos acompanha o Evangelho de Mateus. Algumas características deste Evangelho são: a amplitude com a qual se referem aos ensinamentos de Jesus (os famosos sermões, como o da montanha), a atenção à relação Lei-Evangelho (o Evangelho é a “nova Lei”). Ele é considerado como o Evangelho mais “eclesiástico” pelo relato do primado de Pedro e pelo uso do termo “Ecclesia” (Igreja), que não se encontra nos outros três Evangelhos.

Velai – A palavra que destaca sobre todas, no Evangelho deste primeiro domingo do Advento, é: “Velai, pois, porque não sabeis que dia virá o vosso Senhor... Estai preparados, porque no momento que não penseis, virá o Filho do homem”. Pergunta-se às vezes por que Deus nos esconde algo tão importante como a hora de sua vinda, que para cada um de nós, considerado singularmente, coincide com a hora da morte.

A resposta tradicional é: “Para que estivéssemos alerta, sabendo cada um que isso pode acontecer em seus dias” (Santo Efrém). Mas o principal motivo é que Deus nos conhece; sabe que terrível angústia teria sido para nós conhecer com antecipação a hora exata e assistir à sua lenta e inexorável aproximação. Isso é o que mais atemoriza em certas doenças. São mais numerosos hoje os que morrem de afecções imprevistas de coração do que os que morrem de “penosas doenças”. No entanto, dão mais medo estas últimas, porque nos parece que privam dessa incerteza que nos permite esperar. A incerteza da hora não deve levar-nos a viver despreocupados, mas como pessoas vigilantes.

O ano litúrgico está em seu início, enquanto o ano civil chega a seu fim. Uma ocasião ótima para fazer espaço para uma reflexão sábia sobre o sentido de nossa existência. A própria natureza no outono nos convida a refletir sobre o tempo que passa. O que o poeta Giuseppe Ungaretti dizia dos soldados na trincheira do Carso, durante a primeira guerra mundial, vale para todos os homens: “Estão / como no outono / nas árvores / nas folhas”. Isto é, a ponto de cair, de um momento a outro. “O tempo passa e o homem não percebe isso”, dizia Dante.

Tudo passa – Um antigo filósofo expressou esta experiência fundamental com uma frase que se tornou célebre: «panta rei», ou seja, tudo passa. Ocorre na vida como na televisão: os programas se sucedem rapidamente e cada um anula o precedente. A tela continua sendo a mesma, mas as imagens mudam. É igual conosco: o mundo permanece, mas nós passamos, um após o outro.

Nada – De todos os nomes, os rostos, as notícias que enchem os jornais e os noticiários do dia – de mim, de você, de todos nós – o que permanecerá daqui a um ano ou década? Nada de nada. O homem não é mais que “um traço criado pela onda na areia do mar e que a onda seguinte apaga”.

Só Deus basta – Vejamos o que a fé tem a dizer-nos a propósito deste fato de que tudo passa. “O mundo passa, mas quem cumpre a vontade de Deus permanece para sempre” (1Jo 2, 17). Assim, existe alguém que não passa, Deus, e existe uma forma de que nós não passemos totalmente: fazer a vontade de Deus, ou seja, crer, aderir a Deus. Nesta vida somos como pessoas em uma balsa que um rio leva ao mar aberto, sem retorno. Em certo momento, a balsa passa perto da margem. O náufrago diz: “Agora ou nunca!”, e salta até a terra firme. Que suspiro de alívio quando sente a rocha sob seus pés! É a sensação experimentada frequentemente por quem chega à fé. Poderíamos recordar, como conclusão desta reflexão, as palavras que Santa Teresa de Ávila deixou como uma espécie de testamento espiritual: “Nada te perturbe, nada te espante. Tudo passa, só Deus basta”.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Quem não quer trabalhar, também não deve comer



 O Evangelho das missas deste domingo apresenta o texto de Lucas (21, 5-19) em que Jesus profetiza a destruição do Templo. Esse trecho faz parte dos famosos discursos sobre o fim do mundo, característicos dos últimos domingos do ano litúrgico. E, na segunda leitura, vemos a Carta de Paulo, dirigida aos cristãos de Tessalônica, que haviam deixado de trabalhar, a espera do fim do mundo anunciado por Jesus. Sobre este comportamento, Paulo escreve sua segunda carta aos Tessalonicenses.

Trabalhar para que? – Em Tessalônica, uma das primeiras comunidades cristãs, havia crentes que tiravam desses discursos de Cristo uma conclusão errônea: é inútil agitar-se, trabalhar e produzir, já que tudo está a ponto de acabar; é melhor viver cada dia, sem assumir compromissos no longo prazo, talvez vivendo um pouco de brisa.

Quem não trabalha não deve comer – A estes, São Paulo responde: “Ora, ouvimos dizer que entre vós há alguns que vivem à toa, muito ocupados em não fazer nada. Em nome do Senhor Jesus Cristo, ordenamos e exortamos a estas pessoas que, trabalhando, comam na tranquilidade o seu próprio pão”. No começo da passagem, São Paulo lembra a regra dada aos cristãos de Tessalônica: “Quem não quer trabalhar, também não deve comer”.

O trabalho na origem da criação – Esta era uma novidade para os homens da época. A cultura à qual pertenciam desprezava o trabalho manual; considerado degradante para a pessoa, como se fosse exclusivo de escravos e incultos. Mas a Bíblia tem uma visão diferente. Desde a primeira página, ela apresenta Deus trabalhando durante seis dias e descansando no sétimo. Tudo isso, antes ainda que se fale do pecado na Bíblia. Podemos concluir, portanto, que o trabalho faz parte da natureza original do homem; não é resultado da culpa nem do castigo. O trabalho manual é tão digno como o intelectual e o espiritual. O próprio Jesus dedicou vinte anos ao trabalho manual (supondo que tenha começado a trabalhar por volta dos 13 anos) e somente dois anos ao intelectual.

Quer valor tem o trabalho para Deus? – Conta um padre, que um leigo lhe escreveu perguntando: “Que sentido e que valor tem nosso trabalho de leigos diante de Deus? É verdade que nós, leigos, nos dedicamos também a muitas obras de bem (caridade, apostolado, voluntariado); mas a maior parte do tempo e das energias da nossa vida é dedicada ao trabalho. Assim, se o trabalho não vale para o céu, teremos bem pouco para a eternidade. Todas as pessoas às quais perguntamos sobre isso não souberam nos dar respostas satisfatórias. Elas nos dizem: ‘Ofereçam tudo a Deus!’. Mas isso é suficiente?”.

Trabalho como participação na obra de Deus – Respondendo ao leigo, assim se pronunciou o padre: “Não, o trabalho não vale somente pela “boa intenção” que temos ao realizá-lo, ou pelo oferecimento que se faz dele a Deus pela manhã; vale também por si mesmo, como participação da obra criadora e redentora de Deus e como serviço aos irmãos. É através do trabalho humano – diz um texto do Concílio – ‘que o homem sustenta de ordinário a própria vida e a dos seus; por meio dele se une e serve aos seus irmãos, pode exercitar uma caridade autêntica e colaborar no acabamento da criação divina. Mais ainda: sabemos que, oferecendo a Deus o seu trabalho, o homem se associa à obra redentora de Cristo’ (Gaudium et spes, 67).”

Colocar o coração no que as mãos fazem – Vemos, portanto, que não importa tanto que trabalho a pessoa realiza, mas como o realiza. Isso restabelece certa igualdade, deixando de lado todas as diferenças (às vezes injustas e escandalosas) de categoria e remuneração. Uma pessoa que desempenhou tarefas muito humildes pode “valer” muito mais que quem ocupou cargos de grande prestígio. O trabalho, como foi dito, é participação na ação criadora de Deus e na ação redentora de Cristo, e é fonte de crescimento pessoal e social, mas também, sabemos, é fadiga, suor, dor. Pode enobrecer, mas igualmente pode esvaziar e consumir. O segredo é colocar o coração no que as mãos fazem. O que cansa não é tanto a quantidade ou o tipo de trabalho que se faz, mas a falta de entusiasmo ou de motivação. Como nos diz o Apocalipse (14, 13), “nossas obras nos acompanharão” Que essa fé possa ser nossa motivação terrena para o trabalho.

sábado, 9 de novembro de 2019

Filhos da ressurreição



 No Evangelho deste domingo (Lc 20,27-38), Jesus discute com os saduceus sobre a ressurreição.

A questão – Jesus é procurado por um grupo de saduceus, que lhe propõe a seguinte questão: uma mulher casou, sucessivamente, com sete irmãos, cumprindo a lei do levirato (Dt 25,5-10). Quando ressuscitarem, ela será mulher de qual dos irmãos?

Os saduceus – No tempo de Jesus, os saduceus formavam um grupo aristocrático, recrutado sobretudo entre os sacerdotes da classe superior. Exerciam a sua autoridade à volta do Templo e dominavam o Sinédrio (realmente seriam eles os responsáveis pela condenação de Jesus). A sua importância política era real, ainda que muito limitada pela presença do procurador romano. Politicamente, eram conservadores e entendiam-se bem com o opressor romano… Pretendiam manter a situação, para não ver comprometidos os benefícios políticos, sociais e econômicos de que desfrutavam.

Mais saduceus – Para os saduceus, apenas interessava a Lei escrita – a “Torah”. Negavam que a Lei oral (aceita pelos fariseus) tivesse qualquer valor. Este apego conservador à Lei escrita explica que negassem algumas crenças e doutrinas admitidas nos ambientes populares frequentados pelos fariseus. Por isso, não aceitavam a ressurreição dos mortos: nenhum versículo da “Torah” apoiava essa crença.

Casamento levítico – O Livro de Deuteronômio (Dt 25,5-6) diz: “Quando dois irmãos moram juntos e um deles morre sem deixar filhos, a viúva não sairá da casa para casar-se com nenhum estranho; seu cunhado se casará com ela, cumprindo o dever de cunhado. O primogênito que nascer receberá o nome do irmão morto, para que o nome deste não se apague em Israel”. Certamente, uma lei que para nós parece no mínimo estranha! Mas, na época, antes da fé na ressurreição, era de suma importância para Israel que o nome de um homem se propagasse nos seus filhos. Por isso, era dever do irmão sobrevivente suscitar um filho para o falecido, para que este não morresse na memória do seu povo.

Questão – A questão central do nosso texto gira em torno da ressurreição, um tema que não significava nada para os saduceus. Com o objetivo de ridicularizar a crença em ressurreição, os saduceus apresentaram a Jesus a questão hipotética da mulher que se casou, sucessivamente, com sete irmãos, cumprindo a lei do levirato. Quando ressuscitarem, ela será mulher de qual dos irmãos?

Ressurreição – A primeira parte da resposta de Jesus afirma que a ressurreição não é (como pensavam os fariseus do tempo) uma simples continuação da vida que vivemos neste mundo (como uma revivificação, idéia apresentada na primeira leitura da missa), mas uma vida nova e distinta, uma vida de plenitude que dificilmente podemos entender, baseados somente em nossas realidades quotidianas. Nessa nova vida não haverá casamento (são semelhantes aos anjos), pois a única preocupação será servir e louvar a Deus.

Vida nova – O poder de Deus, que chama os homens da morte à vida, transforma e assume a totalidade do ser humano, de forma que nascemos para uma vida totalmente nova e em que as nossas potencialidades serão elevadas à plenitude. A nossa capacidade de compreensão deste mistério é limitada, pois estamos contemplando as coisas e classificando-as à luz das nossas realidades terrenas; no entanto, a ressurreição que nos espera ultrapassa totalmente a nossa realidade terrena.

Certeza da ressurreição – A segunda parte da resposta de Jesus é uma afirmação da certeza da ressurreição. Jesus cita-lhes a “Torah” (Ex 3,6): no episódio da sarça-ardente, Jahwéh revelou-se a Moisés como “o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”… Ora, se Deus Se apresenta dessa forma – muitos anos depois de Abraão, Isaac e Jacob terem desaparecido deste mundo – isso quer dizer que os patriarcas não estão mortos (um homem “morto” – ou seja, um homem reduzido ao estado de uma sombra inconsciente e privada de vida, no “sheol”, segundo a idéia semita corrente – tinha perdido a proteção de Deus, pois já não existia como homem vivo e consciente). Na perspectiva de Jesus, portanto, os patriarcas não estão reduzidos ao estado de sombras, na obscuridade absoluta do “sheol”, mas vivem atualmente em Deus. Conclusão: se Abraão, Isaac e Jacob estão vivos, podemos falar em ressurreição.

sábado, 2 de novembro de 2019

A riqueza dos pobres de espírito



O Evangelho deste domingo (Mt 5,1-12) propõe a passagem das Bem-aventuranças.  Propomos, a seguir, uma reflexão do padre Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia de Roma.

Compaixão pelos ingênuos? - O Evangelho deste domingo começa com a célebre frase: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”. A afirmação “bem-aventurados os pobres de espírito”, com frequência, é mal-entendida hoje ou, inclusive, se cita com algum sentimento de compaixão, como se fosse uma expressão que faz referência à credulidade dos ingênuos.

Frase completa – Mas Jesus jamais disse simplesmente: “Bem-aventurados os pobres de espírito!”; nunca sonhou pronunciar algo assim. Disse: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”, que é muito distinto. Deturpa-se completamente o pensamento de Jesus, banalizando-o, quando se cita sua frase pela metade, pois, assim, separa-se a bem-aventurança de seu motivo. Seria, suponhamos, o mesmo que dizer: “O que semeia...”. O que se entende disso? Nada! Mas se acrescentarmos: “colhe”, imediatamente tudo se esclarece. Se Jesus tivesse dito apenas: “Bem-aventurados os pobres!”, isso também soaria absurdo, mas quando acrescenta: “porque deles é o Reino dos Céus”, tudo se faz compreensível.

Reino que subverte – Mas que bendito Reino dos Céus é este, que realizou uma verdadeira “inversão de todos os valores?” É a riqueza que não passa, que os ladrões não podem roubar nem a traça consumir. É a riqueza que não se deve deixar para outros com a morte, mas que se leva consigo. É o “tesouro escondido” e a “pérola preciosa”, aquilo que, para se possuir, vale a pena deixar tudo, – diz o Evangelho. O Reino de Deus, em outras palavras, é o próprio Deus.

Que Reino é esse? – A chegada do Reino de Deus produziu uma espécie de “crise de governo” de alcance mundial, uma mudança radical. Abriu horizontes novos, em alguma medida, como no século XV, quando, se descobriu que existia um outro mundo, a América, e as potências que ostentavam o monopólio do comércio com o Oriente, como Veneza, se viram surpreendidas de repente e entraram em crise.

Quem é rico hoje? – Os velhos valores do mundo – dinheiro, poder, prestígio – mudaram, ficaram relativos e inclusive foram rejeitados por causa da chegada do Reino. E agora, quem é o rico? Talvez um homem tenha uma enorme soma em dinheiro; durante a noite ocorre uma desvalorização total; pela manhã se levanta sem nada ter, mesmo que não saiba ainda.

O “investimento” do pobre – Os pobres, pelo contrário, estão em vantagem com a vinda do Reino de Deus, porque ao não terem nada que perder estão mais dispostos a acolher a novidade e não temem a mudança. Podem investir tudo na nova moeda. Estão mais preparados para crer.

Mudança social ou de fé? – Acredita-se, hoje, que as mudanças que contam são aquelas visíveis e sociais e não as que ocorrem na fé. Mas quem tem razão? No século passado, vimos acontecer muitas revoluções sociais; contudo, também vimos depois de algum tempo, que tais mudanças acabam por reproduzir, com outros protagonistas, a mesma situação de injustiça que pretendiam eliminar.

Vendo com o Evangelho – Há planos e aspectos da realidade que não se percebem à primeira vista, só com a ajuda de uma luz especial. Atualmente, com os satélites artificiais, são feitas inúmeras fotografias, com raios infra-vermelhos, de regiões inteiras da Terra, e podemos ver quão diferente é o panorama com esta luz! O Evangelho e, em particular, nossa bem-aventurança dos pobres, nos dá uma imagem do mundo “com raios infra-vermelhos”. Permite captar o que está por baixo ou mais além da aparência. Permite distinguir o que passa e o que fica. A riqueza do pobre é o Reino de Deus.

sábado, 26 de outubro de 2019

Os novos fariseus e publicanos




No Evangelho das missas deste domingo (Lc 18, 9-14) Jesus contou a parábola do judeu e do publicano: “Dois homens subiram ao templo para orar; O fariseu, de pé, orava assim: ‘Meu Deus, dou-Vos graças por não ser como os outros homens, que são ladrões, injustos e adúlteros, nem como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de todos os meus rendimentos’. O publicano ficou a distância e nem sequer se atrevia a erguer os olhos ao Céu; Mas batia no peito e dizia: ‘Meu Deus, tende compaixão de mim, que sou pecador’. Eu vos digo que este desceu justificado para sua casa e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”. Publicamos o comentário do Pe. Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia, sobre esta liturgia.

Quem for à igreja no domingo ouvirá um comentário mais ou menos desse tipo: o fariseu representa o conservador que se sente em ordem com Deus e com os homens e olha com desprezo para o próximo; o publicano é a pessoa que errou, mas reconhece isso e pede humildemente perdão a Deus – não pensa em salvar-se por méritos próprios, mas pela misericórdia de Deus. A escolha de Jesus entre estas duas pessoas não só não deixa dúvidas, como indica o final da parábola: este último volta para casa justificado, isto é, perdoado, reconciliado com Deus; o fariseu volta para casa como havia saído dela: mantendo sua justiça, mas perdendo a de Deus.

De tanto ouvi-la e de repeti-la, esta explicação começou a me deixar insatisfeito. Não é que esteja errada, mas já não responde aos tempos. Jesus dizia suas parábolas para as pessoas que o escutavam naquele momento. Em uma cultura carregada de fé e religiosidade como aquela da Galiléia e da Judéia, a hipocrisia consistia em ostentar a observância da lei e santidade, porque estas eram as coisas que atraíam o aplauso.

Em nossa cultura secularizada e permissiva, os valores mudaram. O que se admira e abre caminho ao êxito é mais o contrário que o daquele tempo: é a rejeição das normas morais tradicionais, a independência, a liberdade do indivíduo. Para os fariseus, a senha era “observância” das normas; para muitos, hoje, a senha é “transgressão”. Falar de um autor, de um livro ou de um espetáculo que é “transgressor” é torná-lo célebre.

Em outras palavras, hoje devemos adaptar os termos da parábola, para salvaguardar a intenção original. Os publicanos de ontem são os novos fariseus de hoje! Atualmente é o publicano, o transgressor, quem diz a Deus: “Eu vos agradeço, Senhor, porque não sou como aqueles fariseus crentes, hipócritas e intolerantes, que se preocupam com o jejum, mas na vida são piores que nós”. Parece que há quem, paradoxalmente, ora assim: “Eu vos dou graças, ó Deus, porque sou um ateu!”.

Rochefoucauld dizia que a hipocrisia é o tributo que o vício paga à virtude. Hoje é, frequentemente, o tributo que a virtude paga ao vício. Tende-se, de fato, especialmente por parte dos jovens, a mostrar-se pior e mais desvirtuado do que se é, para não parecer menos que os demais.

Uma conclusão prática, válida tanto na interpretação tradicional, aludida no início, como na desenvolvida aqui, é esta: pouquíssimos (talvez ninguém) estão sempre do lado do fariseu ou sempre do lado do publicano, isto é, justos em tudo ou pecadores em tudo. A maioria de nós tem um pouco de um e um pouco de outro. O pior seria comportar-nos como o publicano na vida e como o fariseu no templo. Os publicanos eram pecadores, homens sem escrúpulos, que colocavam o dinheiro e negócios acima de tudo; os fariseus, pelo contrário, eram, na vida prática, muito austeros e observantes da Lei. Nós nos parecemos, portanto, com o publicano na vida e com o fariseu no templo se, como o publicano, somos pecadores e, como o fariseu, nos consideramos justos.

Se tivermos de resignar-nos a ser um pouco de um e de outro, então que pelo menos seja o contrário: fariseus na vida e publicanos no templo! Como o fariseu, tentemos não ser na vida ladrões e injustos, procuremos observar os mandamentos e pagar as taxas; como o publicano, reconheçamos, quando estamos na presença de Deus, que o pouco que fizemos é dom seu e imploremos, para nós e para todos, sua misericórdia.

sábado, 19 de outubro de 2019

A viúva e o juiz



O Evangelho deste domingo (Lc 18,1-8) apresenta-nos a parábola do juiz e da viúva.  A viúva, pobre e injustiçada (na Bíblia, é o protótipo do pobre sem defesa, vítima da prepotência dos ricos e dos poderosos), passava a vida queixando-se do seu adversário e exigindo justiça; mas o juiz, “que não temia Deus nem os homens”, não lhe prestava qualquer atenção… No entanto, o juiz – apesar da sua dureza e insensibilidade – acabou por fazer justiça à viúva, a fim de se livrar definitivamente da sua insistência importuna.

O texto – Este é um texto que não tem paralelo em outro evangelista, mas é similar à parábola do amigo importuno, que vem pedir pão no meio da noite e que é atendido por causa da sua insistência (Lc 11,5-8). É preciso lembrar que Lucas escreveu o terceiro Evangelho durante a década de 80, uma época em que as comunidades cristãs sofriam por causa da hostilidade dos judeus e dos pagãos e que já se anunciavam as grandes perseguições que dizimaram as comunidades cristãs no final do século I. Os cristãos estavam inquietos, desanimados e ansiavam pela segunda vinda de Cristo – isto é, pela intervenção definitiva de Deus na história, para derrotar os maus e salvar o seu Povo.

Explicação – O próprio autor dá a sua aplicação teológica, após apresentar a parábola: se um juiz prepotente e insensível é capaz de resolver o problema da viúva, por causa da sua insistência, Deus (que não é, nem de perto nem de longe, um juiz prepotente e sem coração) não iria escutar os “seus eleitos, que por Ele clamam dia e noite, e iria fazê-los esperar muito tempo?”

Insistência – É evidente que, se até um juiz insensível acaba por fazer justiça a quem lhe pede com insistência, com muito mais motivo Deus – que é rico em misericórdia e que defende sempre os fracos – estará atento às súplicas dos seus filhos. Dado o contexto em que a parábola aparece, é certo que Lucas pretende dirigir-se a uma comunidade cristã cercada pela hostilidade do mundo, que começava a ver no horizonte próximo a ameaça das perseguições e que estava desanimada, pois, aparentemente, Deus não escutava as súplicas dos crentes e não intervinha no mundo para salvar a sua Igreja.

Um tempo próprio para intervir - A resposta que Lucas deixa aos seus destinatários é a seguinte: ao contrário do que parece, Deus não abandonou o seu Povo, nem é insensível aos seus apelos; Ele tem o seu projeto, o seu plano e o seu tempo próprio para intervir… Aos crentes resta exercitar a paciência e confiar que Ele agirá para libertá-los.

sábado, 12 de outubro de 2019

Jesus cura dez leprosos



No Evangelho deste domingo (Lc 17,11-19), dez leprosos vêm ao encontro de Jesus e param a certa distância dele, pois, pela Lei, o leproso não podia aproximar-se das demais pessoas. Pedem pela misericórdia de Jesus. Este pede que eles se apresentem aos sacerdotes; esta apresentação deveria ser feita depois da cura. Com isto, Jesus insinuava que já lhes tinha dado a cura e, assim, ao seguirem para Jerusalém, para se apresentarem aos sacerdotes do Templo, ficaram curados. Contudo, só um deles, que era samaritano, sentindo-se curado, percebeu que a fonte da vida é Jesus e não o Templo. Ao compreender isso, volta para junto de Jesus e lhe agradece. Os outros nove, embora também tivessem sido curados, continuavam atrelados aos preceitos do judaísmo, seguindo seu caminho para Jerusalém.

Marginalidade – No tempo de Jesus, aquele que era acometido pela lepra ficava totalmente marginalizado… Além de causar naturalmente repugnância pela sua aparência e de infundir medo de contágio, esse doente era tido como um impuro (Lev 13-14), a quem a teologia oficial atribuía pecados especialmente graves (a lepra era vista como castigo de Deus para esses pecados). Por tais razões, não podia sequer entrar na cidade de Jerusalém, a fim de não tornar impura a cidade santa.

Cura – O doente devia afastar-se de qualquer convívio humano, para que não contaminasse os outros com a sua impureza física e religiosa. Em caso de cura, devia apresentar-se diante de um sacerdote, a fim de que ele a comprovasse e permitisse sua volta à vida normal (Lev 14). Podia, então, participar novamente das celebrações do culto.

Samaritano – Um dos leprosos era samaritano. Os samaritanos eram desprezados pelos judeus de Jerusalém, por causa do seu sincretismo religioso. A desconfiança religiosa dos judeus em relação aos samaritanos começou quando, em 721 a.C. (após a queda do reino do Norte), os colonos assírios invadiram a Samaria e começaram a misturar-se com a população local. Para os judeus, os habitantes da Samaria começaram, então, a paganizar-se… Após o regresso do exílio da Babilônia, os habitantes de Jerusalém recusaram qualquer ajuda dos samaritanos na reconstrução do Templo e evitaram os contatos com eles, pois eram uma “raça misturada com pagãos”. A construção de um santuário samaritano no monte Garizim consumou a separação e, na perspectiva judaica, lançou definitivamente os samaritanos nos caminhos da infidelidade a Javé. Na época de Jesus, a relação entre as duas comunidades era marcada por uma grande hostilidade.

Libertação – O episódio dos dez leprosos (que é exclusivo de Lucas) tem por objetivo fundamental apresentar Jesus como o Deus que Se fez pessoa para trazer, com gestos concretos, a salvação (e libertação) a todos os homens, particularmente aos oprimidos e marginalizados. É esse o ponto de partida da história que Lucas nos conta: ele mostra que Deus tem uma proposta de vida nova e de libertação para oferecer a todos os homens.

Dez – O número dez tem, certamente, um significado simbólico: significa “totalidade” (o judaísmo considerava necessário que pelo menos dez homens estivessem presentes, a fim de que a oração comunitária pudesse ter lugar, porque o “dez” representa a totalidade da comunidade). A presença de um samaritano no grupo indica, contudo, que essa salvação oferecida por Deus, em Jesus, não se destina apenas à comunidade do “Povo eleito”, mas se destina a todos os homens, sem exceção, mesmo àqueles que o judaísmo oficial considerava definitivamente afastados da salvação.

Reconhecer o dom de Deus – A ênfase desse episódio está no fato de que, dos dez leprosos curados, só um, o samaritano, voltou para agradecer a Jesus. Lucas está interessado em mostrar que quem recebe a salvação deve reconhecer o dom de Deus e deve estar agradecido… E avisa que, com frequência, são os hereges, os marginais, os desprezados, aqueles que a teologia oficial considera à margem da salvação, que estão mais atentos aos dons de Deus. Haverá aqui, certamente, uma alusão à autossuficiência dos judeus que, por se sentirem “Povo eleito”, achavam natural que Deus os cumulasse dos seus dons. No entanto, não reconheceram a proposta de salvação que, através de Jesus, Deus lhes ofereceu… Certamente haverá aqui, também, um apelo aos discípulos de Jesus, para que não ignorem o dom de Deus e saibam responder-Lhe com a gratidão e a fé.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

As riquezas são para o bem de todos



 A liturgia da missa deste domingo (Lc 16,1-13) faz uma reflexão sobre o lugar que o dinheiro e os outros bens materiais devem assumir na nossa vida: os discípulos de Jesus devem evitar que a ganância ou o desejo imoderado do lucro manipulem as suas vidas; em contrapartida, são convidados a procurar os valores do “Reino”.

O administrador astuto – à primeira vista, a história contada por Jesus parece um elogio à pessoa desonesta: um administrador é denunciado ao patrão porque está gerenciando mal os negócios; é chamado e sumariamente demitido, sendo-lhe solicitado que prestasse contas da sua administração. O administrador sabe que naquele momento o seu futuro está em jogo: pergunta-se o que fazer, pesa os prós e contras. Tem a idéia de chamar os devedores e perdoar-lhes parte das dívidas, desde que atestem ter uma dívida menor do que a real, pois desta forma, quando perdesse seu emprego, teria amigos que o receberiam de braços abertos em suas casas. E o próprio Jesus elogia a esperteza do administrador! 

Elogio ao desonesto? – A interpretação popular dessa história traz muitos problemas para os pregadores, pois, aparentemente, Jesus está elogiando quem agisse de maneira desonesta. Tal interpretação é moralmente inaceitável, por isso temos que olhar bem a história. Também é preciso levar em consideração que ninguém que tivesse sido trapaceado de uma forma tão gritante, iria elogiar o trapaceiro: a dívida do primeiro homem era correspondente a 3.650 litros de azeite e ficou reduzida a 1.825 litros; o segundo homem devia 27,5 toneladas de trigo e a redução da dívida fez com que ele pagasse 5,5 toneladas a menos! Se o patrão faz um elogio é porque não foi prejudicado nessa operação. Ou seja, certamente o administrador é que deixou de ganhar o que estava acostumado a lucrar com as comissões sobre os negócios.

Juros e ágio – Para entender melhor esse contexto, é bom saber que os documentos da época atestam que, frequentemente, se usava o sistema aqui relatado. Como a cobrança de juros era proibida pela Lei, o administrador embutia o ágio na "nota promissória". Na verdade, os administradores deviam entregar ao patrão uma determinada quantia; o que conseguissem a mais ficava com eles. O administrador da história, em vez de se transformar em agiota dos devedores, renunciou à parte que lhe cabia no negócio. Ou seja, foi esperto, porque percebeu que no futuro, mais do que dinheiro, precisaria de amigos. Renunciou ao dinheiro para conquistar amigos.

Esperteza – O patrão "elogiou" o administrador desonesto, por sua esperteza! A palavra grega aqui traduzida por "esperteza" significa uma estratégia prática, visando alcançar um fim determinado. Nada tem a ver com a virtude de agir com justiça. Assim, embora possa parecer que a desonestidade estivesse sendo valorizada no relato do evangelista, a interpretação mais exegética diz que o que deve ser imitado não é a desonestidade, mas o bom senso na administração dos bens materiais.

Escolha prudente - “Usem o dinheiro injusto para fazer amigos, e assim, quando o dinheiro faltar, os amigos receberão vocês nas moradas eternas”. Jesus ensina o caminho para transformar a riqueza desonesta em uma riqueza boa; aconselha a fazer uma escolha prudente, pois ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro.

Embora seja possível discutir e debater sobre interpretações minuciosas desse trecho do Evangelho de Lucas, uma coisa é inegável: Jesus quer advertir os seus seguidores sobre a tentação de escravizar-se com o dinheiro e, ao mesmo tempo, exigir que a partilha material seja ponto marcante da vivência dos seus discípulos!

sábado, 14 de setembro de 2019

As parábolas da misericórdia


  
No Evangelho das missas deste domingo (Lc 15, 1-32) Jesus apresenta três parábolas: “A Ovelha Perdida”, “A Moeda Perdida” e “O Filho Pródigo”. São as chamadas “Parábolas da Misericórdia”, pois, de forma privilegiada, expressam o amor de Deus que se derrama sobre os pecadores.

Desafio – O discurso de Jesus é apresentado numa situação concreta. Naquela época, os cobradores de impostos eram tidos como ladrões; os fariseus e escribas, por sua vez, eram cumpridores rigorosos da Lei, não admitiam qualquer contato com pecadores e desclassificados. Sua rigidez moral era tanta, que ao perceberem a aproximação de alguém reconhecidamente pecador, mudavam o seu rumo de direção para evitar cruzar com a pessoa. Assim, ao verem que alguns cobradores de impostos se aproximavam de Jesus e que eram acolhidos, expressaram a sua admiração por verem que Jesus se sentava à mesa com pecadores (isso expressava familiaridade, comunhão de vida e de destinos). É essa crítica que provoca o discurso do Mestre sobre a atitude misericordiosa de Deus.

Ovelha Perdida – É nesse sentido que podemos interpretar a parábola conhecida como a “Ovelha Perdida”. Jesus, diante da intransigência dos fariseus, pergunta: “Se um de vocês tem cem ovelhas e perde uma, será que não deixa as noventa e nove no campo para ir atrás da ovelha que se perdeu, até encontrá-la?”. A resposta razoável é “não” – nenhum pastor, com a cabeça no lugar, deixaria noventa e nove ovelhas à deriva para tentar encontrar uma perdida. Seria loucura! Mas é exatamente aqui que está o sentido da parábola: Deus faz loucuras por amor a nós!! Ele é capaz de fazer o que nenhuma pessoa humana faria – ir atrás da ovelha perdida, custe o que custar, até a encontrar e trazer de volta! Aqui a parábola funciona não por comparação, mas por contraste – Deus é o oposto dos homens, que só agem de maneira calculista; faz loucura – e a loucura do amor consegue o que a razão jamais conseguiria: a volta da ovelha perdida! Assim, se faz contraste entre a atitude de Deus e a dos fariseus e doutores da Lei! Essa parábola nos questiona sobre as nossas atitudes diante das “ovelhas perdidas” das nossas comunidades e famílias! Agimos como os fariseus, com censuras e moralismos, ou como Deus, com a loucura do amor???

Moeda Perdida – A mesma mensagem é retomada na segunda parábola – a da “moeda perdida”. Não que uma dracma (a moeda perdida) fosse de tão grande valor. Mas para o pobre, até uma moeda pequena faz falta! Então, a mulher faz questão de virar a casa (as casas não tinham janelas, por isso precisava acender uma lâmpada) até achá-la. É assim com Deus – talvez a gente ache que uma pessoa não tenha grande valor, mas para Deus ela faz falta e Ele é capaz de “exagerar” para recuperar a pessoa perdida, por tão insignificante que nos possa parecer. Mais uma vez, um contraste com a atitude elitista dos fariseus – e quem sabe, de muitos cristãos hoje!!!

Filho Pródigo – Por fim chegamos à parábola do “Filho Pródigo”, ou do “Pai que perdoa”, ou dos “Dois Irmãos”. Esta parábola pode ser lida sob o ponto de vista de cada um dos personagens: do filho perdido, do Pai ou do irmão mais velho.

Tradicional – O título tradicional implica uma leitura feita na ótica do “filho pródigo”. Assim, ressaltaria o processo de conversão – sentir que está numa situação perdida, decidir pedir perdão ou se reconciliar, ser aceito pelo Pai, reativar os relacionamentos perdidos e estragados. Outra possibilidade é de ler a história sob a ótica do pai. Assim, o pai representa o próprio Deus, que em primeiro lugar, respeita a liberdade de decisão do filho, não impedindo que ele seja “sujeito” da sua própria vida; depois não espera a volta do “pródigo”, mas, corre ao seu encontro – numa atitude pouco “digna” de um patriarca oriental idoso – preocupado mais com a reconciliação do que com o prejuízo, e se alegrando com a volta de quem estava “morto”!

Leitura diferente – O contexto do capítulo quinze, à luz dos primeiros versículos, sugere uma leitura diferente – sob a ótica do irmão mais velho. Jesus conta a parábola para contestar a atitude dos fariseus e dos doutores da Lei, que o reprovam porque ele acolhera os pecadores! Então o filho mais velho é imagem dos fariseus – “gente boa”, fiel na observância da Lei, mas cujos corações estavam fechados, ao ponto de serem incapazes de alegrar-se com a volta de um irmão perdido. Assim, embora observassem minuciosamente todas as prescrições da Lei, a sua atitude contradizia claramente a atitude de Deus!

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Revolução social da humildade


No Evangelho deste domingo (Lc 14, 1.7-14) Jesus participa de um banquete na casa de um fariseu. Para a explicação deste texto, vamos recorrer ao texto do Pe. Cantalamessa (Pregador do Papa).

Preconceito – O início do Evangelho deste domingo nos ajuda a corrigir um preconceito sumamente difundido. “Num sábado, Jesus entrou para comer na casa de um dos principais fariseus. Eles o observavam atentamente”. Ao ler o Evangelho desde um certo ponto de vista, acabou-se fazendo dos fariseus o modelo de todos os vícios: hipocrisia, falsidade; os inimigos por antonomásia de Jesus. Semelhante ideia dos fariseus não é correta. Nem todos eram assim. Nicodemos, que vai ver Jesus de noite e que depois o defende ante o Sinédrio, era um fariseu (Jo 3,1;7). Também Saulo era fariseu antes da conversão, e era certamente uma pessoa sincera e zelosa, ainda que não estivesse bem iluminado. Outro fariseu era Gamaliel, que defendeu os apóstolos ante o Sinédrio (At 5,34).

Fariseus – As relações de Jesus com os fariseus não foram só de conflito. Compartilhavam muitas vezes as mesmas convicções, como a fé na ressurreição dos mortos, no amor de Deus e no compromisso como primeiro e mais importante mandamento da lei. Alguns, como neste caso, inclusive o convidam para uma refeição em sua casa. Hoje se considera que mais que os fariseus, quem queria a condenação de Jesus eram os saduceus, a quem pertencia a casta sacerdotal de Jerusalém. Por todos estes motivos, seria sumamente desejável deixar de utilizar o termo “fariseu” em sentido depreciativo.

Durante a refeição – Naquele sábado, Jesus ofereceu dois ensinamentos importantes: um dirigido aos “convidados” e outro para o “anfitrião”. Ao dono da casa, Jesus disse (talvez diante dele ou só em presença de seus discípulos): “Quando deres um almoço ou um jantar, não convides seus amigos, nem seus irmãos, nem seus parentes, nem os vizinhos ricos...”. É o que o próprio Jesus fez, quando convidou ao grande banquete do Reino os pobres, os aleijados, os humildes, os famintos, os perseguidos (as categorias de pessoas mencionadas nas Bem-aventuranças).

Banquete – Mas nesta ocasião quero deter-me a meditar no que Jesus diz aos “convidados”. “Se te convidam a um banquete de bodas, não te coloques no primeiro lugar...”. Jesus não quer dar conselhos de boa educação. Nem sequer pretende alentar o sutil cálculo de quem se põe em uma fila, com a escondida esperança de que o dono lhe peça que se aproxime. A parábola nisso pode dar pé ao equívoco, se não se levar em consideração o banquete e o dono dos quais Jesus está falando. O banquete é o universal do Reino e o dono é Deus.

Modéstia – Na vida, quer dizer Jesus, escolhe o último lugar, procura contentar os demais mais que a ti mesmo; sê modesto na hora de avaliar seus méritos, deixa que sejam os demais quem os reconheçam e não tu (“ninguém é bom juiz em causa própria”), e já desde esta vida Deus te exaltará. Ele te exaltará com sua graça, te fará subir na hierarquia de seus amigos e dos verdadeiros discípulos de seu Filho, que é o que realmente importa.

Humildade – Ele te exaltará também na estima dos demais. É um fato surpreendente, mas verdadeiro. Não só Deus “se inclina ante o humilde e rejeita o soberbo” (Sl 107,6); também o homem faz o mesmo, independentemente do fato de ser crente ou não. A modéstia, quando é sincera, não artificial, conquista, faz que a pessoa seja amada, que sua companhia seja desejada, que sua opinião seja desejada. A verdadeira glória foge de quem a persegue.

Sociedade – Vivemos em uma sociedade que tem suma necessidade de voltar a escutar esta mensagem evangélica sobre a humildade. Correr para ocupar os primeiros lugares, talvez pisoteando, sem escrúpulos, a cabeça dos demais, são características desprezadas por todos e, infelizmente, seguidas por todos. O Evangelho tem um impacto social, inclusive quando fala de humildade e modéstia.