sábado, 20 de março de 2021

COMO QUE O GALO CANTOU, SE EM JERUSALÉM NÃO HAVIA GALOS?

  


Estamos na Quaresma, e daqui a duas semanas estaremos lendo a Paixão de Cristo. Todos devem se lembrar que, após a terceira negação de Pedro o galo cantou: ‘“Homem, não sei de que estás falando!’ E, enquanto ainda falava, o galo cantou” Lc 22,60). Como isto pode ter acontecido, se os judeus eram proibidos de criar galos nas cidades?

 Pedro? – Na leitura da Paixão, uma das frases mais surpreendentes de Jesus é o anúncio das negações de Pedro: “Pedro, eu te digo que hoje, antes que o galo cante, três vezes negarás que me conheces” (Lc 22,34). Como poderia isso acontecer? Ainda mais com Pedro, o apóstolo mais próximo de Jesus e o homem que mais demonstrou a sua fé no Messias (Mt 16,16 - “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”). Mas, com certeza, as negações de Pedro aconteceram, pois são relatadas nos quatro Evangelhos (Mt 26,34, 69-75; Mc 14,30, 66-72; Lc 22,34, 54-62; Jo 13,38; 18,15-18).

 Onde foi? – Uma pergunta importante para esta história é “onde ocorreram as negações de Pedro?”. A resposta é detalhada nos Evangelhos (Mateus 26,57; Marcos 14,53; Lucas 22,54): após a Última Ceia, Jesus foi para uma propriedade chamada Getsêmani, onde foi preso e levado para a casa do Sumo Sacerdote Anás. A casa do Sumo Sacerdote estava no centro de Jerusalém, próxima à Fortaleza Antonia (onde estava Pilatos) e ao Templo. Pedro acompanhou Jesus. Enquanto Jesus era interrogado no interior da casa, Pedro ficou no pátio, junto com os soldados.

 Galos em Jerusalém? – Um fato intrigante complica esta história. A Mishná (texto da tradição oral judaica, considerada a obra mais importante do judaísmo rabínico, é chamada de Torá Oral) é bem clara: os judeus não podem criar galos em Jerusalém por causa das Coisas Santas, nem os sacerdotes podem criá-los em qualquer lugar na Terra de Israel. O tratado Baba Kama (primeiro de uma série de três tratados talmúdicos, que lidam com matéria civil, tais como danos e delitos) também proíbe a criação de qualquer tipo de galináceo nas cidades.

 Questão – Como poderia um galo ter cantado, se Pedro estava com Jesus na casa de Anás, no centro de Jerusalém onde, certamente, não haveria um galinheiro? Sendo assim, será que houve um “galo” que literalmente, “cantou” no contexto da negação de Pedro?

 Solução – A resposta está no Evangelho de Marcos (Mc 13, 35-36): “Vigiai, portanto, porque não sabeis quando o senhor da casa voltará: à tarde, à meia-noite, ao canto do galo, ou de manhã, para que, vindo de repente, não vos encontre dormindo”. Para entender isso, é importante ter em conta que os romanos dividiam os dias em períodos de três em três horas. Lembrem que Jesus foi crucificado na sexta hora (meio dia) e morreu na nona hora (três horas da tarde).

 Vigília – À noite, os períodos de três horas eram chamados de vigílias. A primeira vigília da noite começava às 18h00 e ia até às 21h00; a segunda das 21h00 à meia-noite; a terceira da meia-noite às 3h00 da madrugada; e a quarta das 3h00 até às 6h00 da manhã. Cada período era marcado pelo toque da trombeta. Acontece que os judeus se expressavam de forma abreviada quando se referiam a essas vigílias da noite. Assim (como em Mc 13,35), a palavra “tarde” se referia ao fim da primeira vigília (21h00); “meia-noite” indicava o fim da segunda vigília; “Canto do galo” era o termo usado por eles para o fim da terceira vigília (3h00); e “de manhã” era o modo como se referiam ao fim da quarta vigília (6h00).

 Não era uma ave – Quando Jesus diz, em Lc 22,34, “Pedro, eu te digo que hoje, antes que o galo cante, três vezes negarás que me conheces”, ele estava fazendo menção ao fim da terceira vigília. Seria o mesmo de dizer: “Pedro, eu te digo que hoje, antes das três horas da madrugada, três vezes negarás que me conheces”. Portanto, este “cantar do galo” não era uma referência ao som emitido pela ave “galo”, mas sim uma alusão ao toque da trombeta, conhecido em latim como gallicinium.

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