sábado, 6 de março de 2021

Deus pode pedir um crime como culto?

 


 A primeira leitura das missas deste domingo apresenta uma das histórias mais corajosas da Bíblia: aquela em que Deus pede a Abraão que mate seu filho Isaac e ofereça-o a ele como um sacrifício.

 

O texto – De acordo com Gênesis (22,1-19), uma noite Deus apareceu a Abraão e, para testá-lo, ele disse: “Toma teu filho único, Isaac, a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá e oferece-o ali em holocausto”. (Holocausto: sacrificá-lo cortando-o e queimando-o totalmente).

 

Obediente – Sem dizer uma palavra, Abraão levantou-se no início da manhã e foi para a região que Deus indicou. Ao chegar no lugar, Abraão construiu um altar, amarrou e colocou no altar seu filho Isaac. Mas quando ele levantou a mão com a faca para sacrificá-lo, um anjo do céu gritou: "Abraão, Abraão, não machuca o filho. Agora eu sei que você é respeitoso com Deus e que não me negou seu único filho ". Olhando para cima, Abraão viu um carneiro enrolado por chifres em um mato. Ele tomou e sacrificou em vez de seu filho, e ambos voltaram para casa.

 

Escândalo – Muitos cristãos, ao ler este capítulo da Bíblia, não podem deixar de se sentir escandalizados. Alguns até se rebelam contra Deus. Como ele poderia pedir a Abraão, um pobre velho com uma esposa estéril, para matar o único filho? Apenas para provar sua fidelidade? Um crime pode ser um dever sagrado para Deus?

 

A Exegese – Esta primeira leitura faz parte de um bloco de textos a que se dá o nome genérico de “tradições patriarcais” (Gn 12-36). Esses capítulos tomam mitos, lendas, e antigas histórias sobre os clãs nômades que circularam pela palestina e apresentam aos israelitas como modelo de vida e fé.

 

Origem – O relato do sacrifício de Isaac (Gn 22) é uma “lenda cultual” (culto a um deus). Nasceu, provavelmente, num santuário do sul do país, muito antes de os patriarcas bíblicos se terem instalado na região. A lenda primitiva contava como num lugar sagrado, o deus aí adorado tinha salvo uma criança destinada a ser oferecida em sacrifício (no mundo dos cananeus, os sacrifícios humanos eram relativamente frequentes). A partir daí, nesse lugar, os sacrifícios de crianças tinham sido substituídos por sacrifícios de animais. Foi essa a primeira etapa da tradição que nos é hoje proposta.

 

Abraão – Numa segunda fase, esta história primitiva foi aplicada à figura de Abraão, quando o clã de Abraão se instalou na região. O pai cananeu da primitiva história, que levava o filho para ser oferecido em sacrifício, foi identificado com o patriarca Abraão. A tradição acabou por englobar um clã ligado ao de Abraão, o clã de Isaac. Isaac tornou-se, assim, o filho destinado ao sacrifício de que falava a velha lenda pré-israelita.

 

Lenda virou Catequese – Numa terceira fase, os teólogos elohistas (séc. VIII a.C.) pegaram a antiga lenda cultual e puseram-na ao serviço da sua catequese. Na reflexão dos catequistas de Israel, a antiga lenda tornou-se uma catequese sobre uma “prova” em que o justo Abraão manifestou a sua obediência radical e a sua confiança em Elohim.

 

Elohistas e Yahistas – A tradição elohista é uma das fontes de redação do livro do Gênesis. É denominada elohista porque denomina o seu Deus de Elohim. A outra fonte é a yahvista, que denomina o Deus de Yahvé. Por esta razão que aparecem duas descrições de criação do mundo no livro do Gênesis: a primeira (Yahista), Deus cria o mundo em sete dias, começando pela luz e terminando pelo homem; na segunda (Elohista) Deus cria o homem do barro e lhe dá a vida com um sopro.

 

No Gênesis – Por fim, um redator pós-elohista acrescentou ao texto outros elementos de caráter teológico. Foi, certamente, ele que ligou a lenda do sacrifício de Isaac com o monte santo dos sacrifícios do Templo de Jerusalém; foi ele, também, que acrescentou à história a ideia de que o comportamento de Abraão para com Deus mereceu uma recompensa e que essa recompensa iria, no futuro, derramar-se sobre todos os descendentes de Abraão.

 

QUER SABER MAIS? – Se você gostou do texto e que saber mais podemos lhe oferecer dois textos escritos por um teólogo católico: “Por que Deus ordenou que Abraão matar seu filho?” (5 páginas) e “O mundo foi criado duas vezes?” (5 páginas). Solicite por E-mail.

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