sexta-feira, 11 de março de 2022

O cisco e a trave

 

No Evangelho das missas deste domingo (Lc 6,39-45), Jesus diz aos discípulos a seguinte parábola: “Poderá um cego guiar outro cego? Não cairão os dois em alguma cova? O discípulo não é superior ao mestre, mas todo o discípulo perfeito deverá ser como o seu mestre. Porque vês o cisco que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua?”. E ainda: Não há árvore boa que dê mau fruto, nem árvore má que dê bom fruto”.

 

Continuamos ainda no ambiente do “discurso da planície”, onde Jesus apresenta os elementos fundamentais da existência cristã. Provavelmente, Lucas concentrou aqui um conjunto de frases ou de ditos de Jesus que, originalmente, tinham um contexto diverso e foram pronunciados em alturas diversas.

 

Dois contextos – O texto de hoje começa com um provérbio (“poderá um cego guiar outro cego?”) que Mateus coloca num contexto completamente diferente do de Lucas: enquanto que em Mateus (Mt 15,14) ele aparece num contexto de crítica aos fariseus, aqui é uma advertência contra os falsos mestres na comunidade cristã. Provavelmente, Lucas quer pôr a comunidade de sobreaviso em relação a esses mestres pouco ortodoxos que, na década de 80, começam a aparecer nas comunidades e cujas doutrinas apresentam desvios sérios em relação ao essencial da mensagem de Jesus Cristo.

 

Mestre – O verdadeiro mestre será sempre um discípulo de Jesus, o mestre por excelência; e a doutrina apresentada não poderá afastar-se daquilo que Jesus disse e ensinou. Quando alguém apresenta a própria doutrina, e não as propostas de Jesus, está desorientando os irmãos. A comunidade deve ter isto presente, a fim de não se deixar conduzir por caminhos que a afastem do verdadeiro caminho que é Jesus.

 

Julgamento – Um segundo desenvolvimento, diz respeito ao julgamento dos irmãos. Há na comunidade cristã pessoas que se consideram iluminadas, que “nunca se enganam e raramente têm dúvidas”, muito exigentes para com os outros, que não reparam nos seus telhados de vidro quando criticam os irmãos... Apresentam-se muito seguros de si, às vezes com atitudes de autoridade, de orgulho e de prepotência e são incapazes de aplicar a si próprios os mesmos critérios de exigência que aplicam aos outros.

 

Hipócritas – Esses são (a palavra é dura, mas não a podemos evitar) “hipócritas”: o termo não designa só o homem dissimulado, falso, cujos atos não correspondem ao seu pensamento e às suas palavras, mas equivale ao termo aramaico “hanefa” que, no Antigo Testamento, significa, ordinariamente, “perverso”, “ímpio”. Pode o verdadeiro discípulo de Jesus ser “perverso” e “ímpio”? Na comunidade de Jesus não há lugar para esses “juízes”, intolerantes e intransigentes, que estão sempre à procura da mais pequena falha dos outros para condenar, mas que não estão preocupados com os erros e as falhas – às vezes bem mais graves – que eles próprios cometem. Quem não está numa permanente atitude de conversão e de transformação de si próprio não tem qualquer autoridade para criticar os irmãos.

Critério – Lucas apresenta o critério para discernir quem é o verdadeiro discípulo de Jesus: é aquele que dá bons frutos. Neste contexto, parece dever ligar-se os “bons frutos” com a verdadeira proposta de Jesus: dá bons frutos quem tem o coração cheio da mensagem de Jesus e a anuncia fielmente; e essa mensagem não pode gerar senão união, fraternidade, partilha, amor, reconciliação. Quando as palavras de um “mestre” geram divisão, tensão, desorientação, confrontação na comunidade, elas revelam um coração cheio de egoísmo, de orgulho, de amor próprio, de autossuficiência: cuidado com esses “mestres”, pois eles não são verdadeiros.

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