domingo, 23 de março de 2008

ELE VIU E ACREDITOU

  

Neste domingo celebramos a Páscoa cristã. O texto do Evangelho lido nas missas é padrão para esta comemoração: Jo 20,1-9.

 

Novo tempo – O texto começa com uma indicação aparentemente cronológica, mas que deve ser entendida sobretudo em chave teológica: “no primeiro dia da semana”. Significa que começou um novo ciclo – o da nova criação, o da Páscoa definitiva. Aqui começa um novo tempo, o tempo do homem novo, que nasce a partir da doação de Jesus.

 

Madalena – A primeira personagem em cena é Maria Madalena: ela é a primeira a dirigir-se ao túmulo de Jesus (ainda o sol não tinha nascido), na manhã do “primeiro dia da semana”. Ela representa a nova comunidade, que nasceu da ação criadora e vivificadora do Messias; essa nova comunidade, testemunha da cruz, inicialmente acredita que a morte triunfou e vai procurar Jesus no sepulcro: é uma comunidade perdida, desorientada, insegura, desamparada, que ainda não conseguiu descobrir que a morte foi derrotada; mas, diante do sepulcro vazio, a nova comunidade apercebe-se de que a morte não venceu e que Jesus continua vivo.

 

Discípulos – Na seqüência, o autor do quarto Evangelho apresenta uma catequese sobre a dupla atitude dos discípulos diante do mistério da morte e da ressurreição de Jesus. Essa dupla atitude é expressa no comportamento de dois discípulos que, na manhã da Páscoa, correm ao túmulo de Jesus: Simão Pedro e um “outro discípulo” não identificado (mas que parece ser o “discípulo amado”, apresentado no Quarto Evangelho como modelo ideal do discípulo).

 

Discípulo Amado – O autor coloca estas duas figuras lado a lado em várias circunstâncias: na última ceia, é o “discípulo amado” que percebe quem está do lado de Jesus e quem O vai trair (Jo 13,23-25); na paixão, é ele que consegue estar perto de Jesus no átrio do sumo sacerdote, enquanto Pedro O trai (Jo 18,15-18.25-27); é ele que está junto da cruz quando Jesus morre (Jo 19,25-27); é ele quem reconhece Jesus ressuscitado nesse vulto que aparece aos discípulos no lago de Tiberíades (Jo 21,7). Nas outras vezes, o “discípulo amado” levou sempre vantagem sobre Pedro. Aqui, isso irá acontecer outra vez: o “outro discípulo” correu mais e chegou ao túmulo primeiro que Pedro (o fato de se dizer que ele não entrou logo pode querer significar a sua deferência e o seu amor, que resultam da sua sintonia com Jesus); e, depois de ver, “acreditou” (o mesmo não se diz de Pedro).

 

Morte e ressurreição - Provavelmente, o autor do Quarto Evangelho quis descrever, através destas figuras, o impacto produzido nos discípulos pela morte de Jesus e as diferentes disposições existentes entre os membros da comunidade cristã. Em geral Pedro representa, nos Evangelhos, o discípulo obstinado, para quem a morte significa fracasso e que se recusa a aceitar que a vida nova passe pela humilhação da cruz (Jo 13,6-8.36-38; 18,16.17.18.25-27; cf. Mc 8,32-33; Mt 16,22-23). Ao contrário, o “outro discípulo” é o “discípulo amado”, que está sempre próximo de Jesus, que faz a experiência do amor de Jesus; por isso, corre ao seu encontro de forma mais decidida e “percebe” – porque só quem ama muito percebe certas coisas que passam despercebidas aos outros – que a morte não pôs fim à vida.

 

Homem Novo – Esse “outro discípulo” é, portanto, a imagem do discípulo ideal, que está em sintonia total com Jesus, que corre ao seu encontro com um total empenho, que compreende os sinais e que descobre (porque o amor leva à descoberta) que Jesus está vivo. Ele é o paradigma do Homem Novo, do homem recriado por Jesus.

 

Que a mensagem da Ressurreição, da vitória da vida sobre a morte, nos anime e dê força, especialmente quando a Cruz pesar muito em nossas vidas.

sábado, 15 de março de 2008

A LOUCURA DA CRUZ

  

O mês de março 2008 é assinalado pela celebração de Páscoa. Esta é a festa da vitória da Vida sobre a morte ou a festa da conversão da morte em canal para a Vida ou ainda a festa da recriação do ser humano ferido pelo pecado.

 

A Cruz Essa grandiosa realidade é expressa por um símbolo muito significativo para os cristãos: a cruz. Na época anterior a Cristo, a norte na cruz era o maior símbolo de desonra, reservada aos escravos e ao rebotalho da sociedade. O crucificado era geralmente privado de sepultura e abandonado aos animais selvagens e às aves de rapina. Dizia Cícero (filósofo, orador, escritor, advogado e político romano nascido no ano 106 a.C.) que “a cruz era o suplício mais cruel e mais repugnante”, e Sêneca (filósofo e escritor romano nascido no ano 4 a.C.) a tachava de “poste infamante e sinal de vergonha”.

 

Loucura – Deus Filho feito homem quis assumir o suplício da cruz. Ele, o Santo e Inocente.., a fim de mudar-lhe o significado, pois fez da cruz o preâmbulo da ressurreição. Ele nada devia à morte; por isto atravessou a morte e reapareceu como nova criatura. Esta inversão dos significados podia parecer loucura aos olhos da razão.

 

Cristãos loucos – Um desenho encontrado na colina do Palatino em Roma estampa um homem em oração diante da imagem de um Crucificado com cabeça de burro; uma inscrição explicava: “Alexâmenos adora o seu Deus”. São Justino (conhecido como Justino Mártir, foi um teólogo do século II, nascido no ano 100 d.C.) escreveu: “Os pagãos dizem que a nossa demência consiste em colocar um homem crucificado em segundo lugar, depois de Deus imutável e eterno, Deus criador do mundo” (Apologia 113,4). Os judeus pensavam do mesmo modo ao dizerem: “Colocais vossa esperança num homem que foi crucificado”.

 

Cruz – Trono – Os cristãos, a princípio, sentiram o desconcerto provocado pela reviravolta. Não ousavam representar Cristo na cruz, mas ornavam-na com pedras preciosas e flores: desejavam assim caracterizá-la como o trono em que reina o Senhor da glória. Observavam que a cruz estende sua haste vertical e seus braços na direção dos quatro pontos cardeais. Santo lreneu (conhecido como Ireneu de Lião, foi um Padre da Igreja, teólogo e escritor cristão que nasceu no ano 130 d.C.), escreveu, aludindo a essa dimensão cósmica da Cruz: “O autor do mundo no plano invisível contém todas as coisas criadas e encontra-se gravado (em forma de cruz) em toda a criação” (Contra as Heresias V 18, 3).

 

A Cruz de Cristo – Ora todo cristão é chamado a carregar uma parcela da cruz de Cristo. E para desejar que a carregue em atitude de Páscoa, ciente de que está sendo acompanhado pelo Autor da Vida, que venceu a morte num duelo admirável. Lembre-se do Apóstolo São Paulo: vítima de maltratos e intimidações diversas, podia escrever, salientando o paradoxo ou a loucura da Cruz: “É na fraqueza (do homem) que a força (de Deus) manifesta todo o seu poder... Por isto eu me alegro nas fraquezas, humilhações, necessidades, perseguições e angústias por causa de Custo. Pois, quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12, 9s).

 

Páscoa – Quem disto está convicto, jamais perde a alegria de Páscoa, pois sabe que é co-herdeiro com Cristo, é filho no FILHO bem-amado desde toda a eternidade!

 

Este texto – O texto que você acabou de ler foi baseado em um artigo de autoria do Frei Estevão Bettencourt, na Revista “Pergunte e Responderemos” de março de 2005.

sábado, 8 de março de 2008

Eu sou a Ressurreição e a Vida

  

O Evangelho das missas deste domingo nos apresenta a ressurreição de Lázaro (capítulo 11 do Evangelho de João).

 

Família – A cena acontece em Betânia, uma aldeia a Leste do monte das Oliveiras, a cerca de três quilômetros de Jerusalém. O autor da catequese coloca-nos diante de um triste episódio familiar: a morte de um homem. A família mencionada, constituída por três pessoas (Marta, Maria e Lázaro), parece conhecida de Jesus. A visita de Jesus a casa desta família é, aliás, mencionada em Lc 10,38-42; o texto observa que a Maria, aqui referenciada, é a mesma que tinha ungido o Senhor com perfume e lhe tinha enxugado os pés com os cabelos.

 

A história – A catequese se resume em: a família de Betânia é formada por Maria, Marta e Lázaro (não há pai, nem mãe, nem filhos). Trata-se de uma família amiga de Jesus. Um fato abala a vida desta família: um irmão (Lázaro) está gravemente doente. As “irmãs” preocupadas, informam Jesus. Jesus não vai imediatamente ao seu encontro. Depois de dois dias, Jesus resolve dirigir-se à Judéia ao encontro do “amigo”. Ao chegar a Betânia, Jesus encontrou o “amigo” sepultado há já quatro dias. De acordo com a mentalidade judaica, a morte era considerada definitiva a partir do terceiro dia.

 

As irmãs – Por esta altura, entram em cena as “irmãs” de Lázaro. Marta é a primeira. Vem ao encontro de Jesus e insinua a sua reprovação: Jesus podia ter evitado a morte do amigo, se tivesse estado presente, pois onde Ele está reina a vida. Maria, a outra irmã, tinha ficado em casa. Está imobilizada, paralisada pela dor sem esperança. Marta convida a irmã a sair da sua dor e ir ao encontro de Jesus. Maria vai rapidamente, sem dar explicações a ninguém: ela tem consciência de que só em Jesus encontrará uma solução para o sofrimento que lhe enche o coração.

 

Catequese – Jesus inicia a sua catequese dizendo-lhe: “teu irmão ressuscitará”. Marta pensa que as palavras de Jesus são uma consolação banal e que Ele se refere à crença farisaica, segundo a qual os mortos haveriam de reviver, no final dos tempos, quando se registrasse a última intervenção de Deus na história humana. Isso ela já sabe; mas não chega: esse último dia ainda está tão longe…

 

Amigo – Jesus, no entanto, não fala da ressurreição no final dos tempos. O que Ele diz é que, para quem é amigo de Jesus, não há morte, sequer. Jesus é “a ressurreição e a vida”. Para os seus amigos, a morte física é apenas a passagem desta vida para a vida plena. Jesus não evita a morte física; mas Ele oferece ao homem essa vida que se prolonga para sempre. Para que essa vida definitiva possa chegar ao homem é necessário, no entanto, que o homem adira a Jesus e O siga, num caminho de amor e de dom da vida (“todo aquele que vive e acredita em mim, nunca morrerá”).

 

A pedra – A cena da ressurreição de Lázaro começa com Jesus chorando. Não é pranto ruidoso, mas sereno… Jesus chega junto do sepulcro de Lázaro. A entrada da gruta onde Lázaro está sepultado está fechada com uma pedra (como era costume, entre os judeus). A pedra é, aqui, símbolo da definitividade da morte. Separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos, cortando qualquer relação entre um e outro. Jesus, no entanto, manda tirar essa “pedra”: para os crentes, não se trata de duas realidades sem qualquer relação. Jesus, ao oferecer a vida plena, abate as barreiras criadas pela morte física. A morte física não afasta o homem da vida.

 

Dar Vida – A ação de dar vida a Lázaro representa a concretização da missão que o Pai confiou a Jesus: dar vida plena e definitiva ao homem. É por isso que Jesus, antes de mandar Lázaro sair do sepulcro, ergue os olhos ao céu e dá graças ao Pai: a sua oração demonstra a sua comunhão com o Pai e a sua obediência na concretização do plano do Pai. Depois, Jesus mostra Lázaro vivo na morte, provando à comunidade dos crentes que a morte física não interrompe a vida plena do discípulo que ama Jesus e O segue.

 

Comunidade – A família de Betânia representa a comunidade cristã, formada por irmãos e irmãs. Todos eles conhecem Jesus, são amigos de Jesus, acolhem Jesus na sua casa e na sua vida. Essa família também faz a experiência da morte física. Como é que deve lidar com ela? Com o desespero de quem acha que tudo acabou? Com a tristeza de quem acha que a morte venceu, por algum tempo, até que Deus ressuscite o “irmão” morto, no final dos tempos (perspectiva dos fariseus da época de Jesus)? Não; de forma alguma.

 

Vida Plena – Ser amigo de Jesus é saber que Ele é a ressurreição e a vida em todos os momentos. Ele não evita a morte física; mas a morte física é, para os que aderiram a Jesus, apenas a passagem (imediata) para a vida verdadeira e definitiva. Para os “amigos” de Jesus – para aqueles que acolhem a sua proposta e fazem da sua vida uma entrega a Deus e um dom aos irmãos – não há morte… Podemos chorar a saudade pela partida de um irmão, mas temos de saber que, ao deixar este mundo, ele encontrou a vida plena, na glória de Deus.

sábado, 1 de março de 2008

A Luz do Mundo

  

No Evangelho deste domingo (Jo 9,1-41) Jesus apresenta-se como “a luz do mundo”; a sua missão é libertar os homens das trevas do egoísmo, do orgulho e da auto-suficiência.

 

Luz – Continuando a série de leituras evangélicas que procuram ensinar verdades sobre a pessoa e a missão de Jesus, a catequese sobre a “luz” é colocada no contexto da festa das colheitas (Sukkot). Um dos ritos mais populares dessa festa era, exatamente, a iluminação dos quatro grandes candelabros do átrio das mulheres, no Templo de Jerusalém.

 

Pecado – No Novo Testamento, esse é o único texto que traz o relato da cura de um cego de nascença. Os “cegos” faziam parte do grupo dos excluídos da sociedade palestina de então. As deficiências físicas eram consideradas pelos judeus como resultado do pecado. Os rabis da época chegavam a discutir de onde vinha o pecado de alguém que nascia com uma deficiência: se o defeito era o resultado de um pecado dos pais ou se era o resultado de um pecado cometido pela criança no ventre da mãe.

 

Castigo – Segundo a concepção da época, Deus castigava de acordo com a gravidade da culpa. A cegueira era considerada o resultado de um pecado especialmente grave: uma doença que impedisse o homem de estudar a Lei era considerada uma maldição de Deus por excelência. Pela sua condição de impureza notória, os cegos eram impedidos de servir de testemunhas no tribunal e de participar nas cerimônias religiosas no Templo.

 

História – O autor do quarto Evangelho usa símbolos para criar os quadros da história: Jesus é apresentado como a “luz” que veio iluminar o caminho dos homens. O “cego” da nossa história é um símbolo de todos os homens e mulheres que vivem na escuridão, privados da “luz”, impedidos de chegar à plenitude da vida. É enfatizado o nome da piscina onde ocorre a cura – Silóe, que significa “enviado”. Em mais uma alusão à liturgia batismal, João insiste que a cura da cegueira mortal ocorre através de Jesus – O Enviado do Pai.

 

Homem, profeta e Messias – Analisando as etapas da história, podemos encontrar uma progressão na fé do cego, nos três interrogatórios: inicialmente ele é interrogado pelos vizinhos, depois pelos fariseus e, finalmente, pelo próprio Jesus. A cada passo ele aprofunda o seu conhecimento de Jesus. Aos vizinhos ele responde que Jesus é simplesmente um homem. Diante dos fariseus, ele reconhece que Jesus é um profeta. No diálogo com Jesus ele chega a proclamar que Jesus é o Filho do Homem, o Messias.

 

Catequese – A análise da história deixa claro que se trata de um texto criado para catequese, no final do primeiro século. Isso se explica pelo fato de que no tempo de Jesus ninguém era expulso da comunidade judaica por acreditar no seu messianismo. Isso passou a acontecer após 85 d.C., com a reconstituição do judaísmo na sua forma farisaica e rabínica, após a destruição de Jerusalém. Por isso, a confissão de fé do cego em Jesus custa-lhe a perseguição, situação vivida na última década do primeiro século. Mas, se custou a expulsão da comunidade judaica, também lhe trouxe a verdadeira luz da vida, a vida plena em Jesus.

 

Ironia – No final do texto, os fariseus ironizam a declaração de Jesus de que a cegueira não é causada pelo pecado, perguntando cinicamente, se ele os considera cegos. Ele retruca que a situação deles é muito pior – não é que não possam ver, é que não querem ver! Termina afirmando que a cegueira pior, a espiritual, realmente é conseqüência do pecado. A missão de Jesus no mundo causa uma inversão de situações: os que estão cegos e que chegam à fé, são curados e recebem a revelação da Luz do mundo, enquanto aqueles que se envaidecem de ser os esclarecidos, se fecham nos seus sistemas religiosos e ideológicos, mergulhando cada vez mais nas trevas e na perdição.

 

Luz do Mundo – O nosso encontro com Cristo tem que iluminar os olhos da nossa mente e espírito, para que vejamos o mundo com os olhos de Jesus e tornemos a nossa fé um seguimento Dele, continuando a Sua missão: “enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo”.

 

sábado, 23 de fevereiro de 2008

A Samaritana Pecadora

 

No Evangelho deste domingo, o evangelista João descreve uma catequese usada no final do primeiro século. Ele conta o encontro de Jesus com uma mulher da Samaria, em um poço na cidade samaritana de Sicar. A Samaria era a região central da Palestina: uma região heterodoxa, habitada por uma raça de sangue misturado (de judeus e pagãos) e de uma religião que misturava ritos e crenças.

 Samaritanos – Na época de Jesus existia uma animosidade muito viva entre samaritanos e judeus. Historicamente, a divisão começou quando os assírios invadiram a Samaria e deportaram cerca de 4% da população samaritana. Os colonos assírios, então, se instalaram na região e se misturaram com a população local. Na visão dos judeus, os habitantes da Samaria começaram nesse momento a paganizar-se (2 Re 17,29). A relação entre as duas comunidades deteriorou-se ainda mais quando, passados quase trezentos anos, os judeus retornaram do exílio e recusaram a ajuda dos samaritanos (Esd 4,1-5) para reconstruir o Templo de Jerusalém e denunciaram os casamentos mistos.

 Templo – Assim, os judeus tiveram que enfrentar a oposição dos samaritanos na reconstrução da cidade (Ne 3,33-4,17). Cem anos depois, novo elemento de separação: os samaritanos construíram um Templo no monte Garizim, que foi destruído duzentos anos depois por João Hircano. Mais tarde, os desentendimentos continuaram: o mais famoso aconteceu por volta do ano 6 d.C., quando os samaritanos profanaram o Templo de Jerusalém durante a festa da Páscoa, espalhando ossos humanos nos átrios.

 Desprezo – Os judeus desprezavam os samaritanos por serem uma mistura de sangue israelita com estrangeiros e consideravam-nos hereges em relação à pureza da fé. Os samaritanos pagavam aos judeus com um desprezo semelhante.

 O poço – A cena que João descreve passa-se em volta do “poço de Jacob”, situado no vale entre os montes Ebal e Garizim, perto da cidade samaritana de Siquém (em aramaico, Sicara – a atual Askar). Trata-se de um poço estreito, aberto na rocha calcária, cuja profundidade ultrapassa os 30 metros. Segundo a tradição, ele teria sido aberto pelo patriarca Jacob. Os dados arqueológicos revelam que ele serviu os samaritanos entre o ano 1000 a.C. e o ano 500 d.C. (embora ainda hoje se possa extrair água dele).

 Os sinais – O evangelista utiliza “personagens” para compor a sua história. A mulher representa a Samaria, que procura desesperadamente a água capaz de matar a sua sede de vida plena. Jesus vai ao encontro da “mulher”.

 Mais sinais – O “poço” representa a Lei, o sistema religioso à volta do qual se conformava a experiência religiosa dos samaritanos. Era nesse “poço” que os samaritanos procuravam a água da vida plena. Mas, os próprios samaritanos tinham reconhecido a insuficiência do “poço” da Lei e haviam buscado a vida plena noutras propostas religiosas. Os “cinco maridos” que a mulher já teve representam os cinco deuses dos samaritanos (2 Re 17,29-41).

 Água Viva – Estamos, pois, diante de um quadro que representa a busca da vida plena. Onde encontrar essa vida? Na Lei? Noutros deuses? É aqui que entra a novidade de Jesus. Ele senta-se “junto do poço”, como se pretendesse ocupar o seu lugar; e propõe à mulher/Samaria uma “água viva”, que matará definitivamente a sua sede de vida eterna. Jesus passa a ser o “novo poço”, onde todos os que têm sede de vida plena encontrarão resposta para a sua sede.

 Proposta de vida – Jesus tem para oferecer a “água do Espírito”, que no Evangelho de João é o grande dom de Jesus. A mulher/Samaria fica confusa, não sabendo escolher entre o caminho dos samaritanos ou dos judeus. No entanto, Jesus nega que se trate de escolher entre um caminho ou outro: não é no Templo de pedra de Jerusalém ou no Templo de pedra do monte Garizim que Deus está… O que se trata é de acolher à novidade do próprio Jesus, aderir a Ele e aceitar a sua proposta de vida.

 Resposta – A mulher/Samaria responde à proposta de Jesus abandonando o cântaro (agora inútil), e corre a anunciar aos habitantes da cidade o desafio que Jesus lhe faz. O texto fala, ainda, sobre a adesão entusiástica de todos os que tomam conhecimento da proposta de Jesus e a “confissão da fé”: Jesus é reconhecido como “o salvador do mundo” – isto é, como Aquele que dá ao homem a vida plena e definitiva (vers. 28-41).

 Missão de Jesus – O texto deixa claro que Jesus quer comunicar ao homem o Espírito que dá vida. O Espírito que Jesus tem para oferecer desenvolve e fecunda o coração do homem, dando-lhe a capacidade de amar sem medida. Eleva, assim, os que buscam a vida plena e definitiva à categoria de Homens Novos, filhos de Deus que fazem as obras de Deus. Do dom de Jesus nasce a nova comunidade.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A Transfiguração


 

O Evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos apresenta a Transfiguração de Jesus e nos ensina o caminho da escuta atenta de Deus e dos seus projetos, da obediência total e radical aos planos do Pai.

 

Os desanimados – O relato da transfiguração de Jesus é antecedido do primeiro anúncio da paixão (cf. Mt 16,21-23) e de uma instrução sobre as atitudes próprias do discípulo (convidado a renunciar a si mesmo, a tomar a sua cruz e a seguir Jesus no seu caminho de amor e de entrega da vida – cf. Mt 16,24-28). Depois de terem ouvido falar do “caminho da cruz” e de terem constatado aquilo que Jesus pede aos que o querem seguir, os discípulos estão desanimados e frustrados, pois a aventura em que apostaram parece encaminhar-se para um fracasso; eles vêem desaparecer, pouco a pouco – nessa cruz que irá ser plantada numa colina de Jerusalém – os seus sonhos de glória, de honras, de triunfos e perguntam-se se vale a pena seguir um mestre que nada mais tem para oferecer do que a morte na cruz.

 

Projeto – É neste contexto que Mateus coloca o episódio da transfiguração. A cena constitui uma palavra de ânimo para os discípulos (e para os crentes em geral), pois nela manifesta-se a glória de Jesus e atesta-se que Ele é – apesar da cruz que se aproxima – o Filho amado de Deus. Os discípulos recebem, assim, a garantia de que o projeto que Jesus apresenta é um projeto que vem de Deus; e, apesar das suas próprias dúvidas, recebem um complemento de esperança que lhes permite “embarcar” e apostar nesse projeto.

Simbologia – Literariamente, a narração da transfiguração é uma teofania – quer dizer, uma manifestação de Deus. Portanto, o autor do relato vai colocar no quadro que descreve todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus (e que encontramos quase sempre presentes nos relatos teofânicos do Antigo Testamento): o monte, a voz do céu, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem e mesmo o medo e a perturbação daqueles que presenciam o encontro com o divino. Isto quer dizer o seguinte: não estamos diante de um relato fotográfico de acontecimentos, mas de uma catequese (construída de acordo com o imaginário judaico) destinada a ensinar que Jesus é o Filho amado de Deus, que traz aos homens um projeto que vem de Deus.

 

Elementos – Esta página de catequese, destinada a ensinar que Jesus é o Filho de Deus e que o projeto que Ele propõe vem de Deus, está construída sobre elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento. Que elementos são esses?

 

O monte situa-nos num contexto de revelação: é sempre num monte que Deus Se revela; e, em especial, é no cimo de um monte que Ele faz uma aliança com o seu Povo. A mudança do rosto e as vestes de brancura resplandecente recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf. Ex 34,29), depois de se encontrar com Deus e de ter as tábuas da Lei. A nuvem, por sua vez, indica a presença de Deus: era na nuvem que Deus manifestava a sua presença, quando conduzia o seu Povo através do deserto.

 

Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); além disso, são personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva. O temor e a perturbação dos discípulos são a reação lógica de qualquer homem ou mulher diante da manifestação da grandeza, da onipotência e da majestade de Deus. As tendas parecem aludir à “festa das tendas”, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em “tendas”, no deserto.

 

Novo Moisés – A mensagem fundamental, moldada com todos estes elementos, pretende dizer quem é Jesus. Recorrendo a simbologias do Antigo Testamento, o autor deixa claro que Jesus é o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele é, também, esse Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Mais ainda: ele é um novo Moisés – isto é, aquele através de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a nova lei e através de quem Deus propõe aos homens uma nova aliança.

 

Novo Povo de Deus – Da ação libertadora de Jesus (o novo Moisés), irá nascer um novo Povo de Deus. Com esse novo Povo, Deus vai fazer uma nova aliança; e vai percorrer com ele os caminhos da história, conduzindo-o através do “deserto” que leva da escravidão à liberdade.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

As bem-aventuranças

  

O Evangelho deste domingo proclama os “bem-aventurados” e recomenda, aos crentes, a misericórdia, a sinceridade de coração, a luta pela paz, a perseverança diante das perseguições: essas são as atitudes que correspondem ao compromisso pelo “Reino”. Enquanto que no primeiro grupo de “bem-aventuranças” se constatam situações, no segundo grupo propõem-se atitudes que os discípulos devem assumir.

 

A nova Lei – Ao longo do seu texto, Mateus apresenta cinco longos discursos, nos quais agrupa “ditos” e ensinamentos, provavelmente proferidos por Jesus em várias ocasiões e contextos. Na visão de Mateus, esses cinco discursos traziam uma nova Lei, destinada a substituir a antiga Lei dada ao Povo por meio de Moisés e escrita nos cinco livros do Pentateuco.

 

As bem-aventuranças – As “bem-aventuranças” que Mateus coloca na boca de Jesus, são consideravelmente diferentes das “bem-aventuranças” propostas por Lucas (cf. Lc 6,20-26). Mateus tem nove “bem-aventuranças”, enquanto que Lucas só apresenta quatro; além disso, Lucas prossegue com quatro “maldições”, que estão ausentes do texto mateano; outras notas características da versão de Mateus são a espiritualização (os “pobres” de Lucas são, para Mateus, os “pobres em espírito”) e a aplicação dos “ditos” originais de Jesus à vida da comunidade e ao comportamento dos cristãos. É muito provável que o texto de Lucas seja mais fiel à tradição original e que o texto de Mateus tenha sido mais trabalhado.

 

O Reino – As “bem-aventuranças” são fórmulas freqüentes na tradição bíblica e definem sempre uma alegria oferecida por Deus. Devem ser entendidas no contexto da pregação sobre o “Reino”: Jesus proclama “bem-aventurados” aqueles que estão numa situação de debilidade, de pobreza, porque Deus está a ponto de instaurar o “Reino” e a situação destes “pobres” vai mudar radicalmente; além disso, são “bem-aventurados” porque, na sua fragilidade, debilidade e dependência, estão de espírito aberto e coração disponível para acolher a proposta de salvação e libertação que Deus lhes oferece em Jesus (a proposta do “Reino”).

Os pobres – As quatro primeiras “bem-aventuranças” referidas por Mateus (vers. 3-6) dirigem-se aos “pobres” (as segunda, terceira e quarta “bem-aventuranças” são apenas desenvolvimentos da primeira, que proclama: “bem-aventurados os pobres em espírito”). Saúdam a felicidade daqueles que se entregam confiadamente nas mãos de Deus e procuram fazer sempre a sua vontade; daqueles que, de forma consciente, deixam de colocar a sua confiança e a sua esperança nos bens, no poder, no êxito, nos homens, para esperar e confiar em Deus; daqueles que aceitam renunciar ao egoísmo, que aceitam despojar-se de si próprios e estar disponíveis para Deus e para os outros.

Os “mansos” – Não são os fracos, os que suportam passivamente as injustiças, os que se conformam com as violências orquestradas pelos poderosos; mas, são aqueles que recusam a violência, que são tolerantes e pacíficos, embora sejam, muitas vezes, vítimas dos abusos e prepotências dos injustos… A sua atitude pacífica e tolerante os torna membros de pleno direito do “Reino”.

Os que choram - São aqueles que vivem na aflição, na dor, no sofrimento provocados pela injustiça, pela miséria, pelo egoísmo; a chegada do “Reino” vai fazer com que a sua triste situação se mude em consolação e alegria…

Os que têm fome e sede de justiça – Provavelmente, a justiça deve entender-se, aqui, em sentido bíblico – isto é, no sentido da fidelidade total aos compromissos assumidos para com Deus e para com os irmãos. Jesus dá-lhes a esperança de verem essa sede de fidelidade saciada, no Reino que vai chegar.

Misericordiosos e puros de coração – Os “misericordiosos” são aqueles que têm um coração capaz de compadecer-se, de amar sem limites, que se deixam tocar pelos sofrimentos e alegrias dos outros homens e mulheres, que são capazes de ir ao encontro dos irmãos e estender-lhes a mão, mesmo quando eles falharam. Os “puros de coração” são aqueles que têm um coração honesto e leal, que não pactua com a duplicidade e o engano.

Os “que constroem a paz” – São aqueles que se recusam a aceitar que a violência e a lei do mais forte dirijam as relações humanas; e são aqueles que procuram ser – às vezes com o risco da própria vida – instrumentos de reconciliação entre os homens.

Os perseguidos por causa da justiça – São aqueles que lutam pela instauração do “Reino” e são desautorizados, humilhados, agredidos, marginalizados por parte daqueles que praticam a injustiça, que fomentam a opressão, que constroem a morte… Jesus garante-lhes: o mal não poderá vencer; e, no final do caminho, espera o triunfo, a vida plena.

Os perseguidos por causa de Jesus – Na última “bem-aventurança” (vers. 11), o evangelista dirige-se, em jeito de exortação, aos membros da sua comunidade que têm a experiência de serem perseguidos por causa de Jesus e convida-os a resistir ao sofrimento e à adversidade. Esta última exortação é, na prática, uma aplicação concreta da oitava “bem-aventurança”.

No seu conjunto, as “bem-aventuranças” deixam uma mensagem de esperança e de alento para os pobres e débeis. Anunciam que Deus os ama e que está do lado deles; confirmam que a libertação está para chegar e que a sua situação vai mudar; asseguram que eles vivem já na dinâmica desse “Reino” onde vão encontrar a felicidade e a vida plena.