sábado, 15 de novembro de 2014

Os talentos


No Evangelho das missas deste domingo (Mt 25,14-30), Jesus apresenta a parábola dos talentos.

Ambiente – Mais uma vez, o Evangelho apresenta-nos o tema da segunda vinda de Jesus. A catequese que Mateus apresenta neste discurso tem em conta as necessidades da sua comunidade cristã. Estamos no final do séc. I (década de 80). Os cristãos, fartos de esperar a segunda vinda de Jesus, esqueceram o seu entusiasmo inicial… Instalaram-se na mediocridade, na rotina, no comodismo, na facilidade. As perseguições que se adivinham provocam o desânimo e a deserção… Era preciso reaquecer o entusiasmo dos crentes, despertar a fé, renovar o compromisso cristão com Jesus e com a construção do Reino.

Talentos – Por esta razão, Mateus encoraja a todos, para que se lembrem de que a segunda vinda do Senhor acontecerá no final da história humana; e que, até lá, os crentes devem “colocar os seus talentos para render”, vivendo na fidelidade aos ensinamentos de Jesus e comprometidos com a construção do Reino. A parábola fala de “talentos” que um senhor distribuiu entre os servos. Um “talento” significa uma quantia muito considerável… Corresponde a 36 quilos de prata e ao salário de aproximadamente 3.000 dias de trabalho de um operário não qualificado.

A “parábola dos talentos” – Conta que um “senhor” partiu em viagem e deixou a sua fortuna nas mãos dos seus servos. A um, deixou cinco talentos, a outro dois e a outro um. Quando voltou, chamou os servos e pediu-lhes contas do que haviam feito com o que tinham recebido. Os dois primeiros duplicaram a soma recebida; mas o terceiro tinha escondido cuidadosamente o talento que lhe fora confiado, pois conhecia a exigência do “senhor” e tinha medo. Os dois primeiros servos foram louvados pelo “senhor”, ao passo que o terceiro foi severamente criticado e condenado.

O Reino – Provavelmente a parábola, tal como saiu da boca de Jesus, era uma “parábola do Reino”. O “senhor” exigente seria Deus, que reclama para Si uma lealdade a toda a prova e que não aceita meios tons e situações de acomodação e de preguiça. Os servos a quem Ele confia os valores do Reino devem acolher os seus dons e fazer com que eles rendam, a fim de que o Reino seja uma realidade. No Reino, ou se está completamente comprometido, ou não se está.

Dons – No texto de Mateus, o “senhor” é Jesus que, antes de deixar este mundo, entregou bens consideráveis aos seus “servos” (os discípulos). Os “bens” são os dons que Deus, através de Jesus, ofereceu aos homens – a Palavra de Deus, os valores do Evangelho, o amor que se faz serviço aos irmãos e que se dá até a morte, a partilha e o serviço, a misericórdia e a fraternidade, os carismas e ministérios que ajudam a construir a comunidade do Reino… Os discípulos de Jesus são os depositários desses “bens”. A questão é, portanto, esta: como devem ser utilizados estes “bens”? Eles devem dar frutos, ou devem ser cuidadosamente conservados enterrados? Os discípulos de Jesus podem – por medo, por comodismo, por desinteresse – deixar que esses “bens” fiquem infrutíferos?

Os bens – Na perspectiva da parábola, os “bens” que Jesus deixou aos seus discípulos têm de dar frutos. A parábola apresenta como modelos os dois servos que mexeram com os “bens”, que demonstraram interesse, que se preocuparam em não deixar parados os dons do “senhor”, que fizeram investimentos, que não se acomodaram nem se deixaram paralisar pela preguiça, pela rotina, ou pelo medo. Por outro lado, a parábola condena veementemente o servo que entregou intactos os bens que recebeu. Ele teve medo e, por isso, não correu riscos; mas não só não tirou desses bens qualquer fruto, como também impediu que os bens do “senhor” fossem criadores de vida nova.

Comodismo – Através desta parábola, Mateus incentiva a sua comunidade a estar alerta e vigilante, sem se deixar vencer pelo comodismo e pela rotina. Esquecer os compromissos assumidos com Jesus e com o Reino, demitir-se das suas responsabilidades, deixar na gaveta os dons de Deus, aceitar passivamente que o mundo se construa de acordo com valores que não são os de Jesus, instalar-se na passividade e no comodismo é privar os irmãos, a Igreja e o mundo dos frutos a que têm direito.


Construir – O discípulo de Jesus não pode esperar o Senhor de mãos erguidas e de olhos postos no céu, alheio aos problemas do mundo e preocupado em não se contaminar com as questões do mundo… O discípulo de Jesus espera o Senhor profundamente envolvido e empenhado no mundo, ocupado em distribuir a todos os homens, seus irmãos, os “bens” de Deus e em construir o Reino.

sábado, 8 de novembro de 2014

JESUS E O TEMPLO


O episódio apresentado no Evangelho deste domingo (Jo 2,13-25) mostra Jesus numa cena pouco comum: usando um chicote, ele expulsa os vendedores do Templo e discute com os judeus sobre a destruição do Templo.

O Templo – A cena acontece na Páscoa, março do ano 28 d.C., no Templo de Jerusalém. Trata-se do majestoso edifício construído por Herodes, para demonstrar as suas boas disposições para com o culto a Deus e conseguir a benevolência dos judeus. A construção do Templo iniciou-se em 19 a.C. e ficou pronta no ano 9 d.C. (embora os trabalhos só tivessem sido dados por concluídos em 63 d.C.). No início do ano 28 d.C., o Templo estava no seu 46º ano de construção e ainda não estava terminado, conforme a observação que os dirigentes judeus fizeram a Jesus (Jo 2,20).

Páscoa do ano 28 – João situa o episódio nos dias que antecedem a festa da Páscoa. Era a época em que as grandes multidões se concentravam em Jerusalém, para celebrar a principal festa do calendário religioso judaico. Jerusalém, que normalmente teria por volta de 55.000 habitantes, chegava a ter 125.000 peregrinos nessa ocasião. No Templo, durante a Páscoa, sacrificavam-se cerca de 18.000 cordeiros.

Comércio – Nesta época, o comércio relacionado com o Templo era muito grande. Três semanas antes da Páscoa, começava a emissão de licenças para a instalação dos postos comerciais em volta do Templo. O dinheiro arrecadado com a emissão dessas licenças era direcionado ao sumo-sacerdote. Havia tendas de venda que pertenciam diretamente à família do sumo-sacerdote. Os animais eram vendidos para os sacrifícios e vários outros produtos destinavam-se à liturgia do Templo. Havia também, as tendas dos cambistas, os quais trocavam moedas romanas correntes por moedas judaicas (os tributos dos fiéis para o Templo eram pagos em moeda judaica, pois ali não eram permitidas moedas com a efígie de imperadores pagãos). Este comércio era de grande importância para a economia da cidade e sustentava a nobreza sacerdotal, o clero e os empregados do Templo.

Gesto profético – Os profetas tinham criticado os sacrifícios que Israel oferecia a Deus, considerando-os como ritos estéreis, vazios e sem significado (não representavam amor a Deus). Também, acreditavam que a chegada do Messias estava ligada à purificação e à moralização do culto prestado a Deus no Templo. O profeta Zacarias liga, explicitamente, o “dia do Senhor” (vinda do Messias) com a purificação do culto e a eliminação dos comerciantes que estão “no Templo do Senhor do universo” (Zac 14,21).

O Messias – O comportamento de Jesus no Templo deve ser visto conforme estas profecias. Quando Jesus pega no chicote de cordas e expulsa do Templo os vendedores de ovelhas, bois e pombas, acaba com o lucro dos banqueiros e derruba as mesas dos cambistas (v. 14-16); concretamente, está se revelando como “o messias” e anunciando a chegada de novos tempos, os tempos messiânicos.

O Culto – No entanto, Jesus vai bem mais além dos profetas. Ao expulsar do Templo também, as ovelhas e os bois que serviam para os ritos sacrificais que Israel oferecia a Deus, Jesus mostra que não propõe apenas uma reforma, mas a abolição do próprio culto. O culto prestado a Deus no Templo de Jerusalém era algo sem sentido: ao transformar a casa de Deus num mercado, os líderes judaicos tinham suprimido a presença de Deus. Jesus, o Filho, com a autoridade que Lhe vem do Pai, diz um claro “basta” a uma mentira com a qual Deus não pode continuar a pactuar: “não façais da casa de meu Pai casa de comércio” (v. 16).

Três dias – Os líderes judaicos ficam indignados. Qual a autoridade de Jesus para abolir o culto oficial prestado a Deus? A resposta de Jesus é estranha: “destruí este Templo e Eu o reconstruirei em três dias” (v. 19). O evangelista deixa claro que Jesus não se referia ao Templo de pedra, onde Israel celebrava os seus ritos litúrgicos, mas a outro “Templo”, que é o próprio Jesus (o seu corpo). O que é que isto significa? Jesus desafia os líderes que o questionaram a suprimir o Templo que é Ele próprio, mas deixa claro que, três dias depois, esse Templo estará outra vez erigido no meio dos homens. Jesus se refere à sua ressurreição, garantia que Ele vem de Deus e que a sua atuação tem o “selo de garantia” de Deus.


Novo Templo – No entanto, o mais notável aqui, é que Jesus se apresenta como o “novo Templo”. O Templo representava, no universo religioso judaico, a residência de Deus, o lugar onde Deus se revelava e onde se tornava presente no meio do seu Povo. Jesus é, agora, o lugar onde Deus reside, onde se encontra com os homens e onde se manifesta ao mundo. É através de Jesus que o Pai oferece aos homens o seu amor e a sua vida. Aquilo que a antiga Lei já não conseguia fazer – estabelecer relação entre Deus e os homens – é Jesus que, a partir de agora, o faz.

sábado, 1 de novembro de 2014

Comunhão dos Santos


No dia primeiro de novembro, a Igreja celebra o Dia de Todos os Santos e, no dia 2, em feriado nacional, celebramos o Dia de Finados. Sem dúvida alguma, essas duas celebrações passam pela doutrina da Comunhão dos Santos, pela qual rezamos uns pelos outros, pedimos a Deus pelos entes queridos que já estão mortos e aos santos que orem por nós a Deus. E você, sabe o que significa Comunhão dos Santos? Ou que santos são esses? Serão os santos do céu? E o que é Comunhão?

Profissão de Fé – A nossa crença na Comunhão dos Santos é proferida todas as vezes que rezamos o Credo, que é a Profissão de Fé do cristão. Aliás, na maioria das vezes, ele é falado mecanicamente, decorado, sem entendermos ou pensarmos em seu significado. O Dogma da Comunhão dos Santos é uma verdade inserida em nossa Profissão de Fé lá pelos fins do século IV. Ele está fundamentado no Evangelho - "A videira e os ramos" (Jo 15, 1-7) – e nas palavras de Paulo a respeito do Corpo Místico de Cristo (1Cor 12, 12-31).

Simbolizando – Para melhor esclarecer o que significa essa Comunhão dos Santos, vamos nos valer de uma comparação, tomando como exemplo o nosso corpo. Nele, o sangue não está parado. Circula pelo corpo o tempo todo, dia e noite, mesmo sem a gente saber. Se parar a circulação do sangue em uma de nossas mãos, essa mão perde a vida. Vem a gangrena. Precisa ser cortada... Se um coágulo de sangue parar numa veia e impedir a circulação, a pessoa pode morrer logo em seguida. Quando tomamos uma injeção, o medicamento não fica estacionado no lugar da picada, mas entra imediatamente na circulação do sangue e é levado para o corpo todo. Tanto é que se a injeção estiver estragada, poderá matar imediatamente.

Comunhão dos Santos – Passando das coisas materiais para as espirituais, diríamos que a Comunhão dos Santos tem algo de comum com a circulação de nosso sangue no corpo: é a circulação do Amor no "Corpo Místico de Cristo", que é a Igreja. Nós somos os membros desse corpo. E Cristo é a cabeça. Assim, unidos a Cristo, temos a vida divina, já que estamos ligados por meio Dele ao Pai. E estamos também, por meio do Espírito Santo, ligados a todos os nossos irmãos, segundo a oração de Jesus que diz "Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti... Que sejam um, como nós somos um: eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade." (Jo 17, 21-23). Essa unidade, portanto, significa: participar da mesma Vida da Graça, partilhar o mesmo alimento, colocar os dons a serviço dos irmãos, desfrutar o mesmo bem-estar, viver os mesmos sofrimentos, as mesmas alegrias, e alcançar a mútua santificação de todos.

Comunhão e Santos – Talvez muita gente não entenda isso porque esteja tomando em outro sentido as duas palavras: tanto "comunhão" como "santos". "Comunhão", aqui, não é a comunhão eucarística, o Corpo do Senhor. E Santos não são os santos canonizados pela Igreja, como S. Judas, S. Dimas, São Francisco etc., que viveram a fé em grau elevado e já estão glorificados junto de Deus. Quando falamos "Comunhão dos Santos" nos referimos à "comum união" que existe entre todos os homens, não só entre os fiéis católicos e aqueles que acreditam em Cristo, mas também entre todas as pessoas sem exceção, que a graça de Deus chama a Salvação. Inclusive os ateus, que buscam nas sombras um Deus que ignoram, mas que não está longe pois, “como Salvador, quer que todos os homens sejam salvos" (Constituição sobre a Igreja, 13-16).

Quem está excluído? - Os únicos excluídos da Comunhão dos Santos são os demônios e os autocondenados à morte eterna. Assim, quando fazemos nossa profissão de fé, dizendo "Creio na Comunhão dos Santos", estamos aceitando uma realidade de dimensão universal: incluímos a Igreja Triunfante (os santos que estão no céu, no paraíso), a Igreja Padecente (os santos que estão no Purgatório) e a Igreja Peregrina ou Militante (que somos nós, santos da Terra).

Louvor aos santos – Dentro desse sentido de comunhão terrena e pós-terrena é que se entende por que louvamos os Santos que estão no céu e pedimos suas orações junto a Deus. Eles são os mais íntimos amigos de Deus e chegaram a ser o que são pela graça de Deus. Assim, como um cristão pode e deve orar pelos outros, de igual maneira os santos, que já alcançaram a plenitude em Cristo – e entre eles Maria ocupa o primeiro lugar - podem orar e oram por nós, pecadores, que na Terra lutamos e sofremos. Tornam-se, dessa maneira, os nossos interlocutores, intercessores junto a Jesus Cristo. São para nós modelos de dedicação, amor e fidelidade no cumprimento da missão de viver e anunciar o Evangelho.

Oração pelos que padecem – É também dentro desse sentido de caridade universal ou "Comunhão dos Santos" que rezamos pelos mortos que ainda não chegaram à plena visão de Deus, da mesma maneira como rezamos entre os vivos uns pelos outros, visando a nossa santificação e o bem da comunidade. Esses nossos irmãos falecidos, que vivem essa situação de purificação de suas penas, contam com nossas orações e pedidos para acelerar o seu processo de amadurecimento humano e divino, para poderem estar na Glória de Deus eternamente.

Oração pelos mortos – A prática de rezar pelos mortos tem, pois, raiz nessa doutrina de comunhão fraterna, que deve haver entre todos no Corpo de Cristo. E foi introduzida pela Tradição cristã desde os primórdios do cristianismo. O Dogma da Comunhão dos Santos é, portanto, um "intercâmbio" entre Deus e os homens, entre Céu e Terra, entre a vida terrestre e a vida celeste: Deus, os Santos, as almas no Purgatório, os bons e até os pecadores, estão unidos no amor salvífico da Trindade.

A morte não interrompe a Comunhão dos Santos Ela continua até o final dos tempos, na esperança do encontro dos dois mundos (terreno e celeste), quando tudo e todos serão glorificados e se tornarão um em Cristo.  Eis a glória eterna!  Portanto, podemos rezar pelas almas sem vê-las. Elas podem rezar por nós sem ver-nos. Mas é bom lembrar que a forma mais correta de provar nossa devoção às almas é ocupar-me mais com os vivos do que com os mortos: visitar um irmão doente vale mais do que visitar um cemitério; oferecer um pão a um pobre é melhor do que flores e velas a um cadáver... e, sobretudo, aprender dos mortos a melhorar a nossa vida de cristão. O que adianta a minha devoção às almas, se continuo cometendo os mesmos erros que impediram sua rápida entrada na felicidade da visão de Deus?


Comum união – É “pena” que o último ato da vida seja a morte: porque a morte teria muita coisa a ensinar sobre o valor da vida e sobre o maravilhoso e confortador dogma da COMUM UNIÃO entre os santos do Céu e os pecadores da terra. Que tal, refletirmos sobre essas verdades nas nossas intenções das missas dominicais?

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Amarás a teu próximo


No Evangelho das missas deste domingo, Mateus (22,34-40) descreve mais uma discussão entre Jesus e os fariseus. Para testá-lo perguntam: "Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?". Jesus responde: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento e amarás teu próximo como a ti mesmo”. Para reflexão deste Evangelho, reproduzimos o comentário do padre Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia de Roma.

Espelho – “Amarás teu próximo como a ti mesmo”. Acrescentando as palavras “como a ti mesmo”, Jesus nos pôs diante de um espelho ao que não podemos mentir; deu-nos uma medida infalível para descobrir se amamos ou não o próximo. Sabemos muito bem, em cada circunstância, o que significa amar-nos a nós mesmos e o que queríamos que os outros fizessem por nós. Jesus não diz, se se presta bem atenção: “o que o outro faz a ti, faça a ele”. Isto seria a lei do talião: “Olho por olho, dente por dente”. Diz: o que tu queres que o outro te faça, faça tu a ele (Mt 7, 12), que é bem diferente.

Mandamento – Jesus considerava o amor ao próximo como “seu mandamento”, aquele no qual se resume toda a Lei. “Este é meu mandamento: que vos ameis uns aos outros assim como eu vos amei” (Jo 15, 12). Muitos identificam todo o cristianismo com o preceito do amor ao próximo, e não carecem de razão. Mas devemos tentar ir um pouco mais além da superfície das coisas. Quando se fala de amor ao próximo, a mente vai em seguida às “obras” de caridade, às coisas que há que fazer pelo próximo: dar-lhe de comer, de beber, visitá-lo; em resumo, ajudar o próximo. Mas isto é um efeito do amor, não é ainda o amor. Antes da beneficência vem a benevolência, antes que fazer o bem, vem o querer bem.

Pureza – A caridade deve ser “sem fingimento”, isto é, sincera (literalmente “sem hipocrisia”, Rm 12, 9); deve-se amar “com coração puro” (1 Pd 1,22). Pode-se de fato fazer a caridade e a esmola por muitos motivos que nada têm a ver com o amor: para admoestar-se, para passar por benfeitor, para ganhar o paraíso, até por remorsos de consciência.

Caridade – Muita caridade que fazemos a países do Terceiro Mundo não está ditada pelo amor, mas por remorso. Damo-nos conta da escandalosa diferença que existe entre nós e eles e nos sentimos em parte responsáveis por sua miséria. Pode-se carecer de caridade inclusive ao “fazer caridade”! Seria um erro fatal contrapor entre si o amor do coração e da caridade dos fatos, ou refugiar-se nas boas disposições interiores para os demais para encontrar nisso uma desculpa à própria falta de caridade ativa e concreta.

Obras – Se encontras um pobre faminto e tremendo de frio, dizia São Tiago, de que lhe serve se lhe diz: “Pobrezinho, vê, acalenta-te, coma algo!”, mas não lhe dás nada do que necessita? “Filhos”, acrescenta São João, “não amemos de palavra nem de boca, mas com obras e segundo a verdade” (1 Jo 3, 18). Não se trata, portanto, de desvalorizar as obras exteriores de caridade, mas fazer que estas tenham o fundamento em um genuíno sentimento de amor e de benevolência.

Olhar – A caridade do coração ou interior é a caridade que todos podemos exercitar, é universal. Não é uma caridade que alguns – os ricos e os sãos – só podem dar e os outros – os pobres e os enfermos – só receber. Todos podem dá-la e recebê-la. Também é concreta. Trata-se de começar a olhar com olhos novos as situações e as pessoas com as quais vivemos. Que olhos? É simples: os olhos com os quais queríamos que Deus nos olhasse! Olhos de desculpa, de benevolência, de compreensão, de perdão...


Máscara – Quando isto sucede, todas as relações mudam. Caem, como por milagre, todos os motivos de prevenção e hostilidade que impediam de amar a certa pessoa e esta nos começa a aparecer pelo que é na realidade: uma pobre criatura que sofre por suas fraquezas e suas limitações, como tu, como todos. É como se a máscara que os homens e as coisas se puseram caísse e a pessoa aparecesse pelo que verdadeiramente é.

sábado, 18 de outubro de 2014

Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus


No Evangelho das missas deste domingo, Mateus (22,15-21) descreve mais uma discussão entre Jesus e os fariseus.

Pegadinha – Os fariseus se reuniram para criar uma maneira de surpreender Jesus. Foram até Ele e perguntaram se era correto pagar o tributo a César (o Imperador de Roma). Percebendo a malícia, Jesus pediu que lhe mostrassem a moeda. Ao apresentarem uma moeda de um denário, perguntou: “De quem é esta imagem e esta inscrição?” Ao lhe responderem que era de César, Jesus disse: “Então, dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

O texto – Com esse texto, entramos em um bloco de quatro unidades, que apresentam diversas controvérsias entre Jesus e lideranças judaicas diferentes: os fariseus, os herodianos e os saduceus. A discussão do trecho deste domingo talvez seja a mais conhecida, mas muitas vezes tem sido interpretada de maneira errada, projetando sobre Jesus os nossos preconceitos políticos e sociais.

Herodianos – É necessário entender que não se tratava de uma pergunta sincera feita a Jesus, mas, de uma armadilha preparada por membros de dois grupos politicamente opostos e antagônicos: os herodianos (submissos à dominação romana) e os fariseus (muitos dos quais olhavam os herodianos como impuros, pela sua colaboração com o poder estrangeiro).

Cilada – Se Jesus respondesse que era lícito pagar o imposto, correria o risco de ser apresentado pelos fariseus como um opressor do povo. Se Ele negasse, poderia ser denunciado pelos herodianos como subversivo político. Era uma situação semelhante àquela que aparece em João 8, 1-11 (a mulher adúltera), pois qualquer resposta deixaria Jesus em maus lençóis. Como naquela ocasião, Jesus se mostrou verdadeiro Mestre, escapando da cilada e, ainda por cima, oferecendo um ensinamento importante.

A Moeda – Primeiro Ele deixa claro que entendeu a “jogada”: “Hipócritas, por que me armais uma cilada?” Depois, coloca os seus interlocutores contra a parede, pedindo uma moeda do imposto e perguntando: “De quem são esta efígie e esta inscrição?” A inscrição seria “Tibério César Filho do Divino Augusto, Sumo Pontífice” - demonstrando as pretensões de divinização do Império Romano. Com a resposta: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, Jesus joga para os seus ouvintes uma questão essencial: o que é que pertence a César e o que é que pertence a Deus?

Império – A divindade pertence a Deus, não ao Império Romano nem a César. Assim, Ele evita confirmar o projeto nacionalista violento de muitos judeus da sua época e condena também qualquer projeto que divinizasse o poder civil. Uma advertência muito atual para os nossos dias, quando o único poder imperial hegemônico (muito semelhante à situação do Império Romano do tempo de Jesus) reivindica para si o direito de impor as suas decisões sobre todas as nações, taxando de “terrorista” quem discorda da sua dominação ideológica, econômica e militar. O poder civil existe para cuidar do povo – que é de Deus – e não para explorá-lo. Desta forma, Jesus nega as aspirações imperialistas e, evitando uma resposta direta à pergunta, enfatiza e relativiza todo e qualquer poder, pois o verdadeiro poder só pertence a Deus.

Neoliberalismo – Nos nossos dias, ainda existem poderes com as mesmas aspirações dos romanos. Embora não digam abertamente, os defensores do neoliberalismo desenfreado divinizam um sistema ganancioso que só visa o lucro e explora o povo sofrido. As palavras de Jesus nos lembram de que nenhum cristão pode compactuar com qualquer sistema – seja político, econômico ou religioso – que atribua a si o que pertence a Deus.


Dualismo – O texto de forma alguma justifica um dualismo entre o espiritual (de Deus) e o material (de César). Pelo contrário, mostra que o poder político, econômico e religioso deve estar a serviço do bem comum, pois, se não for assim, está roubando o que é de Deus: o seu povo. Não se pode entregar às garras de um poder opressor, seja ele estrangeiro ou nacional, o que pertence ao Pai. O poder é legítimo quando está a serviço da vida e do bem-estar comum; é ilegítimo quando está a serviço somente de uns poucos privilegiados. “Dar a Deus o que é de Deus” não se resume em rituais religiosos; refere-se à construção de uma sociedade solidária, justa e fraterna, na qual todos possam “ter a vida e a vida em abundância” (Jo 10, 10). À medida que lutamos por esse objetivo, estamos dando “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Banquete do Reino


No Evangelho das missas deste domingo (Mt 22,1-14), o evangelista Mateus apresenta a parábola dos convidados para o banquete nupcial.

O Evangelho – Jesus se dirige aos sacerdotes e anciãos do povo e conta a parábola do rei que preparou um banquete nupcial para o seu filho. Mandou chamar os convidados, mas eles não quiseram vir. Chamou todas as pessoas que encontrou, maus e bons, e a sala do banquete encheu-se de convidados. Ao entrar na sala, o rei viu um homem que não estava vestido com o traje nupcial e mandou retira-lo da festa. No final conclui: “Na verdade, muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos”.

Situação – Continuamos em Jerusalém, nos dias que antecedem a Páscoa. Os dirigentes religiosos judeus aumentam a pressão sobre Jesus. Instalados nas suas certezas e seguranças, já decidiram que a proposta de Jesus não vem de Deus; por isso, rejeitam de forma absoluta o Reino que ele anuncia.

Banquete – O “banquete” era, na cultura semita, o lugar do encontro, da comunhão, do estreitamento de laços familiares entre os convivas. Além disso, o “banquete” era também a cerimônia através da qual se confirmava o “status” das pessoas e o seu lugar dentro da escala social. Quem organizava um “banquete” procurava fazer uma seleção cuidadosa dos convidados: a presença de gente “desclassificada” faria descer consideravelmente, aos olhos de toda a comunidade, o “status” da família; e, por outro lado, a presença à mesa de pessoas importantes realçava a importância e a honra da família.

Reino – O sentido da parábola é óbvio… Deus é o rei que convidou Israel para o “banquete” do encontro, da comunhão, da chegada dos tempos messiânicos (as bodas do “filho”). Os sacerdotes, os escribas, os doutores da Lei recusaram o convite e preferiram continuar agarrados aos seus esquemas, aos seus preconceitos, aos seus sistemas de autossalvação. Então, Deus convidou para o “banquete” do Messias esses pecadores e desclassificados que, na perspectiva da teologia oficial, estavam excluídos da comunhão com Deus e do Reino.

Pecadores – Esta parábola explicita bem o cenário em que o próprio Jesus se move… Ele aparece, com frequência, participando de “banquetes” ao lado de gente duvidosa e desclassificada. Os líderes de Israel, no entanto, sempre reprovaram que Jesus mantivesse esse contato com essas pessoas… Para eles, os publicanos e as prostitutas, por exemplo, estavam definitivamente excluídas da comunidade, da salvação. Sentá-los à mesa do “banquete” do Reino era algo que os líderes de Israel achavam absolutamente inapropriado.

Traje – A segunda parte da parábola fala do convidado que se apresentou na festa sem o traje nupcial. O rei que organizou o “banquete” mandou, então, lançá-lo fora da sala onde se realizava a festa. A parábola constitui uma advertência àqueles que aceitaram o convite de Deus para a festa do Reino, aderiram à proposta de Jesus e receberam o Batismo.


Batizados – Mateus escreve no final do século I (anos 80), quando os cristãos já tinham esquecido o entusiasmo inicial e viviam instalados numa fé pouco exigente. Consideravam que já tinham feito uma opção definitiva, ao serem batizados, e que já tinham assegurado a salvação. Mateus diz-lhes: cuidado, porque não basta entrar na sala do “banquete”; é preciso, além disso, vestir um estilo de vida que ponha em prática os ensinamentos de Jesus. Quem foi batizado e aderiu ao “banquete” do Reino, mas recusou o traje do amor, da partilha, do serviço, da misericórdia, do dom da vida e continua vestido de egoísmo, de arrogância, de orgulho, de injustiça, não pode participar na festa do encontro e da comunhão com Deus. Deus chamou todos os homens e mulheres para participarem no “banquete”; mas só serão admitidos aqueles que responderem ao convite e mudarem completamente a sua vida.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O Reino de Deus será entregue a uma nação que produzirá seus frutos


No Evangelho das missas deste domingo (Mateus 21,33-43), Jesus reuniu os sacerdotes e anciãos do povo e contou a parábola da vinha:

Parábola – “Um proprietário plantou uma vinha, arrendou-a a vinhateiros e viajou para o estrangeiro. Quando chegou o tempo da colheita, o proprietário mandou seus empregados aos vinhateiros para receber seus frutos, que foram espancados e mortos. O proprietário mandou mais empregados, que foram mortos da mesma forma. Finalmente, o proprietário enviou-lhes o seu filho (herdeiro), que também foi morto.

Pergunta – Pois bem, quando o dono da vinha voltar, o que fará com esses vinhateiros? Os sumos sacerdotes e os anciãos do povo responderam: ‘Com certeza mandará matar de modo violento esses perversos e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entregarão os frutos no tempo certo’. Então Jesus lhes disse: ‘Por isso, eu vos digo: o Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos’.”

Julgamento final – A parábola de hoje é a segunda numa série de três, referentes ao julgamento final de Deus sobre o seu povo (na semana passada tivemos a parábola dos dois irmãos e, no próximo domingo, a da festa de casamento).

O texto – Com certeza, o texto que lemos nas bíblias atuais é resultado de uma longa história de transmissão oral e redação. Da boca de Jesus, a história visava à sorte da Vinha, terminando no versículo 41; a transmissão oral pré-sinótica concentrou a atenção na sorte do Filho, acrescentando os versículos 42, 43 e 44, tirados do Salmo 117; finalmente, Mateus transforma a parábola numa alegoria da História da Salvação: deixa claro que o advento do novo povo (versículo 41) está ligado ao destino Daquele que fala e que deve ser condenado e morto, para depois ressuscitar.

Alegoria – "Os mensageiros" são os profetas que foram mortos pelo povo de Israel, culminando com Jesus, como o Filho. "O Reino" provavelmente se refere à promessa da benção em plenitude, dos últimos tempos. "O Povo" se refere à Igreja, no caso de Mateus composta principalmente de judeu-cristãos, mas também de gentios convertidos, que juntos formam o Novo Povo de Deus, o verdadeiro Israel. Essa conclusão do versículo 43 é a principal contribuição de Mateus à interpretação da parábola, e é mais suave do que a própria parábola, pois os maus vinhateiros não serão destruídos, mas perderão a promessa.

Promessa – Como o texto de Mateus foi escrito num contexto de polêmica entre a sua comunidade e o judaísmo formativo do fim do primeiro século, ele queria ensinar para a sua comunidade que a promessa antiga feita ao Povo de Deus foi retirada das autoridades farisaicas e das suas comunidades, e dada à comunidade da Igreja.


Frutos – Mas isso não nos dá motivo para comodismo. Como o povo original perdeu a promessa porque "não deu fruto" também a Igreja não a possui de modo incondicional. Também as comunidades cristãs têm que "dar fruto"- os frutos de justiça, fraternidade, solidariedade e partilha. A História da Salvação nos mostra que Deus não se deixa manipular, nem permite que qualquer comunidade ou religião se torne "dona" Dele, e que o seu verdadeiro povo é aquele que se dedica à construção dos valores do Reino de Deus. O texto convida a um sério exame e revisão das nossas práticas e estruturas eclesiais e eclesiásticas, para que a nossa Igreja cristã não chegue a merecer o destino dos vinhateiros, que por não terem correspondido à Aliança, viram a promessa retirada deles e dada a outro povo "que produzirá os seus frutos" (v43).