sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Gratuidade e Justiça



No Evangelho das missas deste domingo (Mt 10,1-16), o evangelista Mateus apresenta um texto de difícil interpretação, conhecida como a parábola dos operários da vinha.

Chamado – A parábola refere-se a um dono de uma vinha que, ao raiar da manhã, se dirigiu à praça e chamou “clientes” para trabalhar na sua vinha, ajustando com eles o preço habitual: um denário. O volume de tarefas a realizar na vinha fez com que este patrão voltasse a sair no meio da manhã, ao meio-dia, às três da tarde e ao cair da tarde e que trouxesse, de cada vez, novas levas de trabalhadores. O trabalho decorreu sem incidentes, até ao final do dia.

Pagamento – Ao anoitecer, os trabalhadores foram chamados diante do senhor, a fim de receberem a paga do trabalho. Todos – tanto os que só tinham trabalhado uma hora, como os que tinham trabalhado todo o dia – receberam a mesma paga: um denário. Contudo, os trabalhadores da primeira hora (os “clientes” habituais do dono da vinha) ficaram indignados por não terem recebido um tratamento “de favor”.

A resposta final – O dono da vinha afirma que ninguém tem nada a reclamar se ele decide derramar a sua justiça e a sua misericórdia sobre todos, sem exceção. Ele cumpre as suas obrigações para com aqueles que trabalham com ele desde o início; não poderá ser bondoso e misericordioso para com aqueles que só chegam ao fim? Isso em nada deveria afetar os outros…

Naquele tempo... – Esta parábola nasce na realidade agrícola do povo da Galileia. Era uma região rica, de terra boa, mas com o seu povo empobrecido, pois as terras estavam nas mãos de poucos e a maioria trabalhava como arrendatário ou como "boia-fria", como diríamos hoje. Para sobreviver, esses camponeses sem terra alugavam a sua força de trabalho. Juntavam-se na praça da cidade e esperavam que os grandes donos de terra os contratassem para trabalhar nos seus campos ou nas suas vinhas. Normalmente, cada “patrão” tinha os seus “clientes”, isto é, homens que ele contratava regularmente e recebiam um tratamento de favor (eram sempre os primeiros a ser contratados), a fim de que pudessem ganhar uma “jornada” completa (um “denário”, que era o pagamento diário de um trabalhador).

Mensagem – A parábola é dirigida às comunidades de judeus que aderiram ao cristianismo. Os judeus das sinagogas os rejeitavam e ameaçavam expulsá-los de seu convívio. Eles não admitiam que, no cristianismo, os pagãos se considerassem eleitos de Deus, assim como eles próprios se consideravam, conforme sua tradição do Primeiro Testamento. Mateus quer instruir estas comunidades de judeu-cristãos para que compreendam que, pela revelação de Jesus, Deus não se limita ao exclusivismo pretendido pelo judaísmo.

Parábola – Assim, na parábola os trabalhadores de última hora (os gentios), ao receberem seu pagamento, são tratados em pé de igualdade com os primeiros que vieram trabalhar na vinha (o povo de Israel). As parábolas partem de imagens extraídas da vida real. Analisando as imagens utilizadas, vemos que no cenário aparecem o dono da vinha, imagem característica na tradição de Israel, e os trabalhadores desocupados na praça, cena característica de uma cidade grega.

Sustento da vida – O texto nos ensina que a lógica do Reino não é a lógica da sociedade vigente. Na nossa sociedade, uma pessoa vale pelo que produz – logo, quem não produz não tem valor. Assim, se faz pouco caso do idoso, aposentado, doente, portador de deficiência... Na parábola, o patrão (símbolo do Pai) usa como critério de pagamento, não a produção, mas o sustento da vida – também o trabalhador da última hora precisa sustentar a família e por isso recebe o valor suficiente, um denário.

Trabalho – Pode-se analisar nestas imagens o significado do trabalho. O trabalho não é mercadoria que se vende, avaliado pela quantidade da produção que dele resultou. O trabalho é o meio de subsistência das pessoas e da família, bem como é serviço à comunidade, pela partilha de seus frutos. Todos têm direito ao essencial para a sua sobrevivência. Na parábola, a todos foi dado o necessário para a sobrevivência de um dia, independentemente da quantidade de sua produção. A venda do fruto do trabalho por um salário é uma alienação da dignidade do trabalhador. É vender uma parte do seu ser, de seu próprio corpo, do fruto de seu trabalho, para a acumulação de riqueza e prazer do patrão.


Valores – O Reino de Deus tem valores diferentes da sociedade neoliberal do nosso tempo - a vida é o critério, não a produção. Por isso, quem procura vivenciar os valores do Reino estará na contramão da sociedade dominante. O texto nos convida a imitar o Pai do Céu, lutando por novas relações na sociedade e no trabalho, baseadas no valor da vida, não na produção e consumo. O critério é a gratuidade de Deus Pai, pois tudo o que temos recebemos Dele e, sendo todos seus filhos amados, a comunidade cristã não pode discriminar pessoas, por qualquer motivo que seja.

sábado, 16 de setembro de 2017

“O perdão também cansa de perdoar”

  
A famosa frase do título pertence à música “Regra três”, composta por Toquinho e Vinicius de Morais em 1973. O Evangelho das missas deste domingo (Mt 18,21-35) também nos fala do perdão. Ao contrário da letra da música, fala-nos de um Deus cheio de bondade e de misericórdia que derrama sobre os seus filhos – de forma total, ilimitada e absoluta – o seu perdão. Na foto, João Paulo II concedendo o perdão a Mehmet Ali Agca que atirou contra o Papa em 1981.

“Onde menos vale mais” – Os cristãos são convidados a descobrir a lógica de Deus e a deixarem que a mesma lógica de perdão e de misericórdia sem limites e sem medida marque a sua relação com os irmãos. Apresenta-nos um Deus que ama sem cálculos, sem limites e sem medida; e convida-nos a assumir uma atitude semelhante para com os irmãos que, dia a dia, caminham ao nosso lado.

Texto – Mais uma vez é Pedro que articula em palavras o desafio cristão, "quantas vezes devo perdoar o meu irmão?" e responde ele mesmo, sugerindo "sete vezes", com certeza achando que agir assim seria um exagero. Mas para Jesus, não basta o discípulo agir segundo os critérios desse mundo. Por isso exige "não somente sete vezes, mas setenta vezes sete", ou seja, para quem realmente quer se modelar em Deus, o perdão tem que ser sem limites.

Vingança – A ideia básica inverte a posição sangrenta e vingativa de Lamec em Gn, 4,24, "Se a vingança de Caim valia por sete, a de Lamec valerá por setenta e sete!" O cristão tem que deixar definitivamente por trás todo sentimento de vingança e assumir os novos valores do Reino de Deus, entre os quais tem lugar de destaque, o perdão.

Parábola – Para explicar o perdão sem limites, o evangelista complementa com a parábola dos devedores. Esta parábola ilustra um dos pedidos do Pai Nosso, "perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores". Fazendo esse pedido, estamos querendo o perdão de Deus para que, experimentando-o, consigamos perdoar os nossos devedores.

Pai Nosso – O texto original do Pai Nosso se referia realmente a dívidas financeiras, mas hoje, o texto foi modificado, substituindo-se as “dívidas” por “ofensas”, com uma aplicação mais geral.

O Perdão de Deus depende do nosso? – Não é que o perdão de Deus dependa do nosso - é sempre Deus que toma o iniciativa e nós que respondemos. Mas somos capazes de render nulo o efeito do perdão do Pai, se nós nem queremos perdoar os outros. Assim, o Pai continua querendo nos perdoar, mas nós cortamos o efeito dessa gratuidade divina.

Querer perdoar – Obviamente, o perdão envolve um processo todo, que abrange a parte espiritual, mas também psicológica, da pessoa. Não se consegue eliminar os efeitos das ofensas de uma vez. Mas o importante é o "querer" perdoar. O próprio desejo já é o perdão, pois é somente com a graça divina que nós conseguiremos perdoar mesmo. Mas quando esse desejo é ausente, nem o perdão do Pai penetra a barreira que nós erguemos e o seu perdão fica sem frutos.


Sinais do Reino – A proposta do texto de hoje é além das nossas forças humanas, mas não além da possibilidade da graça divina. Por isso, temos que sempre pedir o dom do perdão, conforme nos ensina a Oração do Senhor, para que as nossas comunidades sejam verdadeiramente sinais do Reino e não meramente aglomerações de pessoas que partilham as mesmas teorias teológicas, mas sem que essas influenciem na sua vivência, na sua prática. Da nossa parte exige-se esforço, e Deus dará a força, para que vivamos conforme o desafio do Sermão da Montanha "sejam perfeitos, como o Pai do Céu de vocês é perfeito".

sábado, 9 de setembro de 2017

A Correção Fraterna


O Evangelho das missas deste domingo (Mt 18,15-20) sugere-nos uma reflexão sobre a nossa responsabilidade face aos irmãos que nos rodeiam. Publicamos o comentário do padre Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia do Vaticano, sobre os versículos 15 a 18.

Texto – “Naquele tempo, Jesus disse a seus discípulos: ‘Se o seu irmão pecar, vá e mostre o erro dele, mas em particular, só entre vocês dois. Se ele der ouvidos, você terá ganho o seu irmão. Se ele não lhe der ouvidos, tome com você mais uma ou duas pessoas, para que toda a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas. Caso ele não dê ouvidos, comunique à Igreja. Se nem mesmo à Igreja ele der ouvidos, seja tratado como se fosse um pagão ou um cobrador de impostos. Eu lhes garanto: tudo o que vocês ligarem na terra, será ligado no céu, e tudo o que vocês desligarem na terra, será desligado no céu’.

Irmão – A convivência humana está permeada de contrastes, conflitos, pelo fato de que somos diferentes por temperamento, pontos de vista, gostos. O Evangelho tem algo a nos dizer também neste aspecto tão comum e cotidiano da vida. Jesus apresenta o caso de alguém que cometeu algo que é realmente equivocado em si mesmo: ‘Se o seu irmão pecar...’. Não se refere só a uma culpa cometida contra nós. Neste último caso é quase impossível distinguir se o que nos move é o zelo pela verdade ou mais o amor próprio ferido. Em todo caso, seria mais uma autodefesa que uma correção fraterna.

Dignidade – Por que diz Jesus: ‘mostre o erro dele, mas em particular’? Antes de tudo, por respeito ao bom nome do irmão, de sua dignidade. Diz: ‘entre vocês dois’, para dar a possibilidade à pessoa de poder se defender e explicar suas ações em plena liberdade. Muitas vezes, aquilo que, a um observador externo, parece uma culpa, nas intenções de quem fez a ação, não é. Uma franca explicação dissipa muitos mal-entendidos.

Correção – Mas isso não é possível quando o problema se leva ao conhecimento de todos. Qual é, segundo o Evangelho, o verdadeiro motivo pelo qual é necessário praticar a correção fraterna? Não é, certamente, o orgulho de mostrar aos outros os erros que cometeram, para ressaltar nossa superioridade. Nem para desencargo de consciência, para poder dizer: ‘Eu te disse. Eu te adverti! Pior para você, se não me levou a sério’.

Fraterna – Não, o objetivo é ganhar o irmão; é o genuíno bem do outro, para que possa melhorar e não se encontrar com desagradáveis consequências. Se for uma culpa moral, [a correção é] para que não comprometa seu caminho espiritual e sua salvação eterna. Nem sempre depende de nós o bom resultado da correção (apesar das melhores disposições, o outro pode não aceitá-la, fazer-se mais rígido); pelo contrário, depende sempre e exclusivamente de nós o bom resultado... na hora de receber uma correção.

Dever – Não existe somente a correção ativa, mas também a passiva; não existe só o dever de corrigir, mas também o dever de deixar-se corrigir. E aqui é onde se vê, se somos suficientemente maduros para corrigir os demais. Quem quer corrigir alguém tem de estar disposto a ser corrigido. Quando se vê que uma pessoa recebe uma observação e se ouve que responde com simplicidade – ‘Você tem razão, obrigado por ter me dito!’ –, você está diante uma pessoa de valor.

Cisco – O ensinamento de Cristo sobre a correção fraterna deverá ser lido sempre junto ao que Ele diz em outra ocasião: ‘Por que você fica olhando o cisco no olho do seu irmão, e não presta atenção na trave que há no seu próprio olho? Como é que você pode dizer ao seu irmão: ‘Irmão, deixe-me tirar o cisco do seu olho’, quando você não vê a trave no seu próprio olho?’ (Lucas 6, 41-42).


Amor – Em alguns casos não é fácil compreender se é melhor corrigir ou deixar passar, falar ou calar. Por este motivo, é importante ter em conta a regra de ouro, válida para todos os casos, que o apóstolo Paulo oferece na segunda leitura (Romanos 13, 8.10) deste domingo: ‘Não fiquem devendo nada a ninguém, a não ser o amor mútuo... O amor não pratica o mal contra o próximo...’.  É necessário assegurar-se, antes de tudo, de que no coração se dê a disposição de acolhida à pessoa. Depois, tudo o que se decida, seja corrigir ou calar, estará bem, pois o amor ‘não faz mal a ninguém’.

sábado, 2 de setembro de 2017

Você conhece a “Epístola de Paulo aos Laodicenses”?



Se você conhece um pouco a Bíblia, deve ter estranhado o título acima, pois deve se lembrar que o Apóstolo Paulo escreveu 13 cartas (ou Epístolas): aos Romanos, 1ª e 2ª aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, 1ª e 2ª aos Tessalonicenses, 1ª e 2ª a Timóteo, a Filemon e a Tito. Mas, de uma Carta aos Laodicenses (cristãos da cidade de Laodicéia) você nunca dever ter ouvido falar...

Explicando... – No final de sua missão, Paulo permaneceu na cidade de Éfeso (Ásia Menor) por três anos (At 20, 31). Nesta ocasião, enviou o discípulo Epafras às cidades de Colossas, Laodicéia e Hierápolis (estas cidades distam menos de 20 km entre si) para estabelecer comunidades cristãs. Paulo, entretanto, nunca visitou essas cidades (Col 2,1).

Evidência – Entre os anos de 55 e 57, quando estava preso, Paulo enviou uma carta aos cristãos de Colossos (Carta aos Colossences, conhecida de todos nós, pois faz parte de nossas Bíblias), na qual faz referência a uma epístola enviada aos cristãos de Laodicéia: “Saúdem os irmãos de Laodicéia, como também Ninfas e a Igreja que se reúne na casa dele. Depois de vocês lerem esta carta, façam que seja lida também na Igreja de Laodicéia. E vocês, leiam a de Laodicéia”. (Col 4,15-16).

Onde está? – O conteúdo da Carta de Paulo aos laodicenses, entretanto, perdeu-se. Isso é um tanto misterioso, porque das outras cartas escritas puderam ser encontradas milhares de cópias. Aliás, a recomendação de Paulo em Col 4,16 demonstra que as Cartas que escrevia eram lidas pelas comunidades vizinhas. Isso atesta a significativa troca de correspondência entre as comunidades; no início, eles formavam coleções de epístolas. Apesar de pequenas, as primeiras comunidades mantinham constante comunicação, testemunhando que a unidade da Igreja se deve mais a um espírito de comunhão do que a uma rígida organização institucional.

Laodicéia – Algumas hipóteses tentam encontrar respostas para o que poderia ter acontecido com a Carta aos Laodicenses, mas antes de tomar contato com elas, é importante saber mais a respeito da Cidade de Laodicéia: localizada na província romana da Frígia, no oeste da Ásia Menor, Laodicéia foi fundada por Antíoco II (261-246 a.C.), que lhe deu este nome em honra de sua mulher, Laodice. Cidade famosa na época de Cristo, por produzir lã e roupas, também era conhecida em todo o mundo oriental por produzir o “pó frígio” – um pó medicinal utilizado para os males dos olhos. Tornou-se tão rica que, quando foi destruída em 60 d.C. por um tremor de terra, os seus cidadãos recusaram a ajuda de Roma e a reconstruíram com os seus próprios recursos. Isso deu fama aos seus cidadãos de soberbos e orgulhosos.

Apocalipse – A cidade é citada no Livro do Apocalipse (Ap 3,14-22), com repreensões à sua riqueza e ao orgulho de seus cidadãos, que acabaram se afastando dos ensinamentos recebidos e passaram a ser considerados apóstatas. “Você diz: ‘Sou rico! E agora que sou rico, não preciso de mais nada'. Pois então escute: Você é infeliz, miserável, pobre, cego e nu. E nem sabe disso. Quer um conselho? Quer mesmo ficar rico? Então compre o meu ouro, ouro puro, derretido no fogo. Quer se vestir bem? Compre minhas roupas brancas, para cobrir a vergonha da sua nudez. Está querendo enxergar? Pois eu tenho o colírio para seus olhos. Quanto a mim, repreendo e educo todos aqueles que amo. Portanto, seja fervoroso e mude de vida!” (Ap 3, 17-19).

Hipóteses – Na investigação do texto de Paulo aos colossenses, é possível levantar algumas suposições do que poderia ter acontecido à carta endereçada aos laodicenses.

Carta Circular – A primeira hipótese é que Paulo tenha escrito uma “carta circular”, ou seja, uma carta sem destinatário, enviada às Igrejas da região da cidade de Éfeso. Mais tarde, esta carta circular se transformou na “Epístola aos Efésios”, com a inserção das palavras “em Éfeso” no primeiro versículo do texto (Ef 1,1). As cópias mais antigas da “Carta aos Efésios” (Códices Sinaítico e Vaticano) não têm as palavras “em Éfeso”.

Troca do nome aos destinatários – Outra suposição é que a carta original havia sido endereçada aos laodicenses, mas, por causa do seu afastamento da Igreja (Ap 3,14-22), os copistas omitiram o nome de Laodicéia e colocaram os efésios como receptores da carta.

Texto com 20 versículos – No século III, apareceu nas comunidades cristãs um texto intitulado “Epístola de Paulo aos Laodicenses” que, por quase mil anos, gozou de grande estima por parte dos cristãos. O texto não consta de nossas Bíblias e compõe-se apenas um capítulo com 20 versículos. A Carta aparece em documentos da Igreja como a Vulgata Latina (São Jerônimo), no Cânon de Muratori (ano 170), de Fulda (ano 546) e nos Códices Sinaítico e Vaticano.


QUER SABER MAIS? – Se você se interessou pela “Carta de São Paulo aos Laodicenses” e quer ler o texto, solicite por E-mail que lhe enviaremos o texto completo com comentários.

sábado, 26 de agosto de 2017

Pedro e a cátedra do primeiro Papa



No Evangelho das missas deste domingo (Mt 16,13-19), Pedro reconhece Jesus como Messias, é proclamado como base (pedra fundamental) da Igreja e recebe as chaves do Reino dos Céus.

Época – Mateus escreve na década de 80, quando os discípulos de Jesus oriundos do judaísmo estavam sendo expulsos das sinagogas e os cristãos começavam a estruturar-se em uma instituição religiosa própria, na qual a figura de referência era Pedro, já martirizado em Roma. Pedro era lembrado pelo seu testemunho corajoso diante da perseguição do Império Romano.

O que é cátedra? A “cátedra” quer dizer a sede fixa do bispo, colocada na igreja matriz de uma diocese, que por este motivo é chamada “catedral”. É o símbolo da autoridade do bispo e de seu “magistério” (ensinamento evangélico transmitido à comunidade cristã) como sucessor dos apóstolos. Quando o bispo toma posse da Igreja particular que lhe foi confiada, com a mitra e o báculo, senta-se em sua cátedra. Dessa sede guiará, como mestre e pastor, o caminho dos fiéis, na fé, na esperança e na caridade!

Qual foi a “cátedra” de São Pedro? Ele foi escolhido por Cristo como “rocha” sobre a qual edificaria a Igreja (Mt 6,18) e começou seu ministério em Jerusalém, depois da Ascensão do Senhor e de Pentecostes. A primeira “sede” da Igreja foi o Cenáculo e é provável que naquela sala (onde estava presente Maria Santíssima), se reservasse um posto especial a Simão Pedro. Depois, a sede de Pedro foi Antioquia (na Síria, hoje Turquia), cidade evangelizada por Barnabé e Paulo. Nela, “pela primeira vez os discípulos receberam o nome de ‘cristãos’” e Pedro foi o primeiro bispo. De Antioquia a Providência levou Pedro a Roma.

Caminho – Portanto, de Jerusalém (Igreja nascente), Pedro passa pela Antioquia (primeiro centro da Igreja que agrupava pagãos e judeus), chegando a Roma, centro do Império, onde concluiu com o martírio sua carreira ao serviço do Evangelho. Por este motivo, a sede de Roma, que havia recebido a maior honra, recebeu também a tarefa confiada por Cristo a Pedro, de estar ao serviço de todas as Igrejas particulares, para a edificação e a unidade de todo o Povo de Deus.

Roma – A sede de Roma, depois destas migrações de São Pedro, foi reconhecida como a sede do sucessor de Pedro e a “cátedra” de seu bispo representou a do apóstolo encarregado por Cristo de apascentar todo seu rebanho. Testificam isso os mais antigos Padres da Igreja, como Santo Irineu, Tertuliano e São Jerônimo.

Santo Irineu – Irenaeus (130 a 202, bispo de Lyon), em seu livro “Contra as heresias” (ano 180), descreve a Igreja de Roma como a “maior e mais antiga, conhecida por todos, fundada e constituída em Roma pelos dois gloriosos apóstolos Pedro e Paulo”, e acrescenta: “Com esta Igreja, por sua exímia superioridade, deve estar em acordo a Igreja universal, ou seja, os fiéis que estão por toda parte”.

Tertuliano – Tertuliano (160 a 220) foi um dos maiores escritores cristãos. No livro “Prescrições contra todas as heresias”, afirma: “Esta Igreja de Roma é bem-aventurada! Os apóstolos derramaram nela, com seu sangue, toda a doutrina”. A cátedra do bispo de Roma representa, portanto, não só seu serviço à comunidade romana, mas também sua missão de guia de todo o Povo de Deus.

São Jerônimo – São Jerônimo (347 a 420), doutor da Igreja, fez a tradução da Bíblia para o latim. Em seu livro “As Cartas”, dá um testemunho particularmente interessante, porque menciona explicitamente a “cátedra” de Pedro, apresentando-a como porto seguro de verdade e de paz. Assim escreve: “Decidi consultar a cátedra de Pedro, onde se encontra essa fé que a boca de um apóstolo exaltou; venho agora pedir alimento para minha alma ali, onde recebi a veste de Cristo. Não sigo outro primado senão o de Cristo; por isso, ponho-me em comunhão com tua beatitude, ou seja, com a cátedra de Pedro. Sei que sobre esta pedra está edificada a Igreja”.


Vaticano – No altar principal da basílica de São Pedro encontra-se o monumento à cátedra do apóstolo Pedro (obra do artista Bernini): é um grande trono de bronze, sustentada pelas estátuas de quatro doutores da Igreja – dois do Ocidente (Santo Agostinho e Santo Ambrósio) e dois do oriente (São João Crisóstomo e Santo Atanásio).

sábado, 19 de agosto de 2017

Como aconteceu a Assunção de Maria?



Neste domingo a Igreja comemora a Assunção de Maria, conforme o dogma publicado pelo Papa Pio XII (1950): “A Virgem Imaculada, que fora preservada de toda a mancha de culpa original, terminando o curso da sua vida terrena, foi elevada à glória celeste em corpo e alma”.

Mistério – Os detalhes da morte, enterro e assunção da Virgem Maria são um dos maiores mistérios do Novo Testamento. A Igreja usa o texto da Carta de São Paulo (1Cor 15, 20-23) e do Apocalipse (Ap 11, 19; 12, 1), para fundamentar o dogma. Nenhuma descrição ou fato histórico é citado. Apresentamos aqui as descobertas mais recentes sobre o assunto:

Cronograma – Um cronograma aproximado da vida de Maria seria o seguinte: nasceu no ano 20 a.C., aproximadamente, filha de Ana e Joaquim. No final do ano 7 a.C. (com 13 anos) deu à luz Jesus, na cidade de Belém. Maria assistiu a crucificação e morte de Jesus em abril do ano 30 d.C., com 50 anos de idade. Segundo Hipólito de Tebas (autor bizantino do século VII), a Virgem Maria viveu onze anos após a morte de Jesus, morrendo no ano de 41 d.C. (com 61 anos de idade).

João Paulo II – Em catequese, no dia 9 de julho de 1997, o Papa João Paulo II disse que o primeiro testemunho de fé na assunção da Virgem Maria aparece nas histórias apócrifas, intituladas "Transitus Mariae", cujo núcleo original remonta aos séculos II e descreve a morte, o sepultamento, o túmulo e a ascensão de Maria aos Céus. Segundo a palavra do Pontífice este texto reflete uma intuição da fé do povo de Deus.

O texto – O autor do “Transitus Mariae” usa o pseudônimo de Melitão. Existiu um Melitão, Bispo de Sardes, no ano de 150, mas não deve ser o mesmo. O autor diz que escutou de São João apóstolo a seguinte história: Maria vivia em sua casa, quando recebeu a visita de um anjo anunciando que, em três dias, seria elevada aos céus. Então ela pediu ao anjo que gostaria que todos os apóstolos estivessem reunidos.

Morte – Três dias depois, Maria morreu na presença de todos os apóstolos. Pedro recebeu uma mensagem de Cristo: ele deveria tomar o corpo de Maria e levar à direita da cidade, até o oriente, onde encontraria um sepulcro novo. Ali deveria depositar o corpo de Maria e aguardar um novo aparecimento de Cristo.

Enterro – Os apóstolos assim fizeram: colocaram o corpo num caixão, saíram de Jerusalém, à direita da cidade, entraram no Vale de Josafat (ou vale do Cedron), no caminho para o Monte das Oliveiras, depositaram o corpo no sepulcro, fecharam com uma pedra e ficaram esperando.

Assunção – Cristo ressuscitado apareceu, saudando a todos: “A paz esteja convosco”. Pedro disse: “Senhor, se possível, parece justo que ressuscite do corpo de sua mãe e a conduza contigo ao Céu”.  Jesus disse: “Tu que não aceitasse a corrupção do pecado não sofrerás a corrupção do corpo no sepulcro”. E os anjos a levaram ao paraíso. Enquanto ela subia, Jesus falou aos apóstolos: “Do mesmo modo que estive com vocês até agora, estarei até o fim do mundo”. E desapareceu entre as nuvens junto com os anjos e Maria.

Impressionante descoberta – A arqueologia estudou durante anos os detalhes da pequena igreja existente no local descrito pelo texto “Transitus Mariae” sem nada encontrar. Em 1972, uma chuva torrencial alagou a igreja e exigiu a reconstrução do piso. Ao remover o piso, apareceu um grande porão, com uma câmara funerária do primeiro século. Todas as descrições do livro apócrifo estavam confirmadas.

QUER LER MAIS – Se você se interessou pelo assunto, nós podemos lhe oferecer a história completa do “Túmulo de Maria” escrita pelo teólogo católico Ariel Alvarez Valdes (17 páginas, em espanhol) com fotos e desenhos do túmulo. Também podemos oferecer o texto completo do livro apócrifo “Transitus Mariae”, escrito no século II (16 páginas, em espanhol). Solicite por E-mail.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

POR QUE JESUS MULTIPLICOU OS PÃES DUAS VEZES?




A multiplicação dos pães é descrita duas vezes no Evangelho de Mateus (14,13-21 e 15, 29-39) e no Evangelho de Marcos (6, 34-44 e 8, 1-9). Os outros evangelistas descrevem o milagre apenas uma vez (Lc 9, 10-17 e Jo 6, 1-14). Por que os evangelistas repetirem a narração? Ou Jesus teria realizado dois milagres?

Mesmos detalhes – Nas duas narrações são descritos os mesmos detalhes: a) Jesus foi às margens do lago da Galileia; b) uma grande multidão se reuniu em torno dele; c) as pessoas ficaram com fome; d) Jesus perguntou onde encontrar comida; e) disseram que era impossível de obter; f) alguém ofereceu alguns pães e peixes; g) Jesus fez as pessoas se sentarem no chão; h) tomou o pão, abençoou-o e distribuiu para a multidão; i) todos comeram e ficaram saciados; j) sobraram várias cestas de pão.

Um ou dois milagres? – A pergunta dos apóstolos ("Como é que alguém poderia dar-lhes pão suficiente aqui no deserto? em Mc 8, 4) seria tola, se os discípulos já tivessem visto Jesus realizar a primeira multiplicação – como não lembrar de outra multidão alimentada milagrosamente? Portanto, historicamente, deve ter havido um único milagre dos pães, que desdobrou-se em duas versões, como se fossem dois eventos diferentes.

Por que um milagre e duas narrações? – Os primeiros cristãos viram que a multiplicação dos pães era um prenúncio da Eucaristia que Jesus celebrou na Última Ceia. No Evangelho de João, depois da multiplicação, Jesus pede para que as pessoas não fiquem apenas com o pão que enche o estômago, mas que busquem outro pão, o que dá a vida eterna. Esse fato, explica o “enigma” das duas narrativas. Vejamos:

Necessidade – O milagre narrado ocorreu em território judeu (Mc 6,32), o que poderia parecer um convite exclusivo aos judeus para participar na Eucaristia. Assim, quando os primeiros cristãos começaram a pregar aos pagãos, quiseram deixar claro que eles também eram chamados a participar da Eucaristia. A maneira encontrada foi criar uma narração paralela da multiplicação dos pães, realizada em território pagão (Mc 7,31).

Os números – A primeira multiplicação (para os judeus), se fez com cinco pães (Mc 6,38), número simbólico que representava o Pentateuco, a Lei de Moisés, o alimento da alma. Na segunda narração (para os pagãos), são sete pães (Mc 8,5), pois de acordo com o Genesis, haveria 70 nações pagãs no mundo. Na primeira multiplicação comeram 5.000 pessoas (Mc 6,44), ou seja, 5 (número sagrado judeu) vezes 1000 (multidão, o povo judeu). Na segunda, comeram 4.000 pessoas (Mc 8, 9), ou seja, 4 (pontos cardeais da Terra) vezes 1000 (multidão, povos da Terra). Na primeira multiplicação sobraram 12 cestas (Mc 6,43), representando as 12 tribos de Israel; na segunda, sobraram sete cestos (Mc 8,8), porque 70 eram as nações pagãs.

Pessoas – Na primeira narrativa, as pessoas vieram de cidades vizinhas (Mc 6,33), representando o povo judeu mais perto de Jesus. Na segunda, as pessoas vieram "de longe" (Mc 8,3), ou seja, das nações pagãs longe do judaísmo. Na primeira, as pessoas reuniram-se em grupos de 100 e 50 pessoas para comer (Mc 6,40), como fizera o povo de Israel, no deserto (Ex 18, 25, Dt 1,15). Na segunda, as pessoas se organizaram espontaneamente, representando a liberdade das nações pagãs.

Pastor esperado – Na primeira narrativa, Jesus sente pena "porque eram como ovelhas sem pastor" (Mc 6, 34), referência à profecia de Ezequiel (Ez 34,5-6.13). Na segunda, sente pena "porque estavam três dias sem comer" (Mc 8, 2), indicando que até os pagãos são amados e cuidados por Deus. No primeiro milagre, as pessoas se sentam "sobre a grama verde" (Mc 6,39), uma alusão ao Salmo 22, bem conhecido dos judeus. No entanto, no segundo milagre as pessoas se sentam "sobre a terra" (Mc 8,6), simbolizando o mundo inteiro, de onde vieram os pagãos.

Palavras – No primeiro texto, as sobras foram coletadas em doze " kófinos " (Mc 6,43), cestos de vime usados pelos judeus. No segundo, foram sete "spyrís" (Mc 8,8), vaso de cordas usados pelos pagãos. Nos dois textos, Jesus tomou os pães e "deu graças" (Mc 6,41 e Mc 8,6), o que significa bendizer a Deus pela comida antes de comer. No texto para os judeus é usada a palavra euloguéin (usada no círculo familiar judaico), enquanto no texto pagão usou-se eujaristéin (usada no ambiente grego).


Concluindo – Jesus realizou o milagre da multiplicação dos pães às margens do lago da Galileia, após um longo dia de pregação com os judeus das regiões vizinhas. Com a consciência de que Jesus era o Messias esperado, aquele milagre adquiriu enorme importância, pois tornou-se uma antecipação da celebração da Eucaristia. A necessidade de levar o Evangelho a outros povos gerou a segunda narração, uma cena que não existiu historicamente, mas que reflete perfeitamente a vontade de Jesus: que ninguém fique longe do Pão, do seu amor, de sua amizade. Hoje este continua a ser o sonho de nossa Igreja: que aqueles que estão confusos, alienados e desorientados venham para a comunidade cristã e se sintam confortáveis nela, sem ser marginalizado ou rejeitado, para que Jesus possa ser o Pão repartido.