sábado, 27 de março de 2010

Se eles se calarem, as pedras gritarão


No Evangelho das missas deste Domingo de Ramos (Lucas 19, 28-40), Jesus entra na cidade de Jerusalém montado em um jumentinho. Quando chegou perto da descida do monte das Oliveiras, a multidão dos discípulos, aos gritos e cheia de alegria, começou a louvar a Deus por todos os milagres que tinha visto. Todos gritavam: “Bendito o rei, que vem em nome do Senhor! Paz no céu e glória nas alturas!” Do meio da multidão, alguns dos fariseus disseram a Jesus: “Mestre, repreende teus discípulos!” Jesus, porém, respondeu: “Eu vos declaro: se eles se calarem, as pedras gritarão”

 

Significado – Comemoramos neste domingo, com muita alegria, a entrada de Jesus em Jerusalém. Nas comunidades são organizadas procissões, o povo abana ramos, até se celebram encenações do evento. Pessoas que dificilmente pisam numa igreja num domingo comum, fazem questão de não perder a procissão nesse dia. Porém, para não reduzirmos a comemoração a mero folclore, é preciso estudar mais de perto o que significava esta entrada em Jerusalém para Jesus e para o evangelista.

 

Zacarias – Uma das coisas que dificultam o nosso entendimento é a nossa pouca familiaridade com o Antigo Testamento. Precisamos relembrar um trecho do profeta Zacarias: "Dance de alegria, cidade de Sião; grite de alegria, cidade de Jerusalém, pois agora o seu rei está chegando, justo e vitorioso. Ele é pobre, vem montado num jumento, num jumentinho, filho de uma jumenta... Anunciará a paz a todas as nações, e o seu domínio irá de mar a mar, do rio Eufrates até os confins da terra" (Zac 9,9-10).

 

Um Novo Rei – Este era um trecho muito importante na espiritualidade do grupo conhecido como os "Anawim", ou "os pobres de Javé", que esperavam ansiosamente a chegada do Messias libertador. Entre este grupo encontravam-se Maria, José e os discípulos de Jesus. Foi com essa espiritualidade que Jesus foi criado. Zacarias havia traçado as características do messias: seria um rei, mas um rei "justo e pobre"; não um rei de guerra, mas de paz! Viria estabelecer uma sociedade diferente da sociedade opressora do tempo de Zacarias (e de Jesus e de nós) - onde os poderosos e violentos oprimiam os pobres e pacíficos!

 

Um Rei pobre – Um rei jamais entraria numa cidade montado em um jumento (o animal de um camponês), mas num cavalo branco de raça! Então Jesus, fazendo a sua entrada assim, faz uma releitura do profeta Zacarias e se identificou com o rei pobre, da paz, da esperança dos pobres e oprimidos!

 

Triunfo de Deus – Por isso, muitas vezes perdemos totalmente o sentido da entrada de Jesus em Jerusalém. Celebramos o evento como se fosse a entrada de um Presidente ou Governador do nosso tempo (com pompa, imponência, e demonstração de poder e força). O contrário do que significou o que Jesus fez! Chamamos o evento da "entrada triunfal de Jesus em Jerusalém" - e realmente foi uma entrada triunfal, mas como triunfo de Deus, que se encarnou entre nós como o Servo Sofredor!

 

Qual Jesus? – O texto de hoje nos convida a revermos as nossas atitudes. Seguimos Jesus – mas será que é o Jesus real, o Nazareno, o rei dos pobres e humildes, o Jesus cumpridor da profecia de Zacarias? Ou inventamos outro – poderoso, nos moldes da nossa sociedade, com força, poder e prestígio?

 

Missão – A entrada em Jerusalém foi o ponto culminante de toda a vida e missão de Jesus – das suas opções concretas em favor dos oprimidos, do seu desafio à religião oficial que escondia o verdadeiro rosto de Deus, das consequências políticas e econômicas da sua proposta de uma sociedade justa e igualitária. Tudo isso levou os poderosos, romanos e judeus, a tramarem sua morte.

 

Incomodar – É importante lembrar que a paixão e morte de Jesus foram consequências da sua vida – é absolutamente impossível entender o que significa a Semana Santa sem ligá-la com o resto da vida de Jesus e com a sua proposta para a sociedade e para a comunidade dos seus seguidores. Jesus não morreu: foi morto porque incomodava – como continua incomodando os que perseveram com o sistema opressor.

 

Folclore? – Realmente acreditamos no rei dos pobres e oprimidos ou só fazemos um folclore no Dia de Ramos: bonito, mas totalmente desvinculado da mensagem verdadeira e profunda do profeta Zacarias e do Evangelho?

sábado, 20 de março de 2010

Atire a primeira pedra


No Evangelho das missas deste domingo (Jo 8,1-11), Jesus é questionado pelos judeus sobre uma mulher surpreendida em adultério.

 

Pegadinha – A Lei judaica prescrevia a pena de morte por apedrejamento para a mulher (Dt 22,23-24) e a lei romana tinha retirado dos judeus o direito de condenar alguém a morte. Portanto, se Jesus dissesse que ela deveria ser apedrejada, ele contrariaria a lei civil dos romanos; se ele negasse esta pena, estaria contra a lei religiosa mosaica. É uma cilada semelhante ao dilema sobre o imposto a César. Que eles não se interessavam pela Lei, fica claro pelo fato de só acusarem a mulher e não o seu parceiro! Uma atitude machista tão comum ainda na nossa sociedade...

 

Homem e mulher – Conforme a tradição da Torá, a pena de morte devia ser aplicada quando um homem cometia adultério com a mulher de outro homem, e os dois adúlteros deviam morrer (Lv 20,10). Entretanto, um homem casado poderia adulterar com uma mulher solteira, sem preocupar-se com a honra de sua esposa. Como o adultério implica parceria, deveriam ter trazido a Jesus tanto a mulher casada como o homem que adulterou com ela.

 

Misericórdia – Após a observação de Jesus (“Quem de vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra”), todos renunciam a apedrejá-la. Santo Agostinho (354-430) assim comenta essa passagem: "Retiraram-se todos, um após outro. Só ficaram duas: a miserável e a Misericórdia. Mas o Senhor, depois de tê-los derrubado com o vigor da justiça, não se dignou ficar olhando a queda deles; afastando o seu olhar, ‘baixou-se de novo para desenhar traços no chão’. Quando aquela mulher ficou sozinha, depois de todos os outros se terem ido embora, levantou os olhos para ela. Ouvimos a voz da justiça, ouçamos também a da bondade....” (“Vai e não tornes a pecar”).

 

Discriminação – Nas palavras de João Paulo II, “Jesus entra na situação concreta e histórica da mulher, situação sobre a qual pesa a herança do pecado. Esta herança exprime-se, entre outras coisas, no costume que discrimina a mulher em favor do homem, e está enraizada também dentro dela. Deste ponto de vista, o episódio da mulher ‘surpreendida em adultério’ (Jo 8, 3-11) parece ser particularmente eloquente. No fim Jesus lhe diz: ‘não tornes a pecar’; mas, primeiro ele desperta a consciência do pecado nos homens... Jesus parece dizer aos acusadores: esta mulher, com todo o seu pecado, não é talvez também, e antes de tudo, uma confirmação das vossas transgressões, da vossa injustiça ‘masculina’, dos vossos abusos?”

 

Mulher – E continua o Papa: “Esta é uma verdade válida para todo o gênero humano... Uma mulher é deixada só, é exposta diante da opinião pública com ‘o seu pecado’, enquanto por detrás deste ‘seu’ pecado se esconde um homem como pecador, culpado pelo ‘pecado do outro’, antes, co-responsável do mesmo. E, no entanto, o seu pecado escapa à atenção, passa sob silêncio... Quantas vezes a mulher paga pelo próprio pecado, mas paga ela só, e paga sozinha! Quantas vezes ela fica abandonada na sua maternidade, quando o homem, pai da criança, não quer aceitar a sua responsabilidade? E ao lado das numerosas ‘mães solteiras’ das nossas sociedades, é preciso tomar em consideração também todas aquelas que, muitas vezes, sofrendo diversas pressões, inclusive da parte do homem culpado, ‘se livram’ da criança antes do seu nascimento. ‘Livram-se’: mas a que preço?”

 

Pecado – Jesus não procura abrandar o pecado ou desculpabilizar o comportamento da mulher. Ele sabe que o pecado não é um caminho aceitável, pois gera infelicidade e rouba a paz… No entanto, também não aceita pactuar com uma Lei que, em nome de Deus, gera morte: os esquemas de Deus são diferentes dos esquemas da Lei. Convida os acusadores a tomar consciência de que o pecado é uma consequência dos nossos limites e fragilidades e que Deus entende isso: “quem de vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra”.

 

Caminho novo – Sua postura convida que os acusadores da mulher interiorizem a lógica de Deus – a lógica da tolerância e da compreensão. Quando os escribas e fariseus se retiram, Jesus nem sequer pergunta à mulher se ela está ou não arrependida: convida-a, apenas, a seguir um caminho novo, de liberdade e de paz (“vai e não tornes a pecar”). A lógica de Deus não é uma lógica de morte, mas uma lógica de vida; a proposta que Deus faz aos homens através de Jesus não passa pela eliminação dos que erram, mas por um convite à vida nova, à conversão, à transformação, à libertação de tudo o que oprime e escraviza; e destruir ou matar em nome de Deus ou em nome de qualquer moral é uma ofensa inqualificável a esse Deus da vida e do amor, que apenas quer a realização plena do homem.

 

Homem novo – O episódio põe em relevo, por outro lado, a intransigência e a hipocrisia do homem, sempre disposto a julgar e a condenar… os outros. Jesus denuncia aqui, a lógica daqueles que se sentem perfeitos e auto-suficientes, sem reconhecerem que estamos todos a caminho e que, enquanto caminhamos, somos imperfeitos e limitados. É preciso reconhecer, com humildade e simplicidade, que necessitamos todos da ajuda do amor e da misericórdia de Deus para chegar à vida plena do Homem Novo. A única atitude que faz sentido, neste esquema, é assumir para com os nossos irmãos a tolerância e a misericórdia que Deus tem para com todos os homens.

 

“O Senhor é bom, o Senhor é lento na cólera, o Senhor é misericordioso, mas o Senhor também é justo e cheio de verdade (Sl 85,15). Concede-te o tempo para te corrigires, mas preferes gozar esse tempo mais do que mudares de vida. Foste mau ontem, sê bom hoje; passaste este dia no mal, pelo menos amanhã muda a tua conduta” (Santo Agostinho).

sábado, 13 de março de 2010

O Filho Pródigo


No Evangelho das missas deste domingo, Jesus apresenta a “parábola do filho pródigo”, uma parábola que é exclusiva de Lucas.

 

A Parábola – Esta parábola conta a história de um homem que tinha dois filhos. Um dos filhos pede a sua parte na herança e viaja para longe, gastando toda fortuna. Ficando sem dinheiro, chegou a passar fome e resolve retornar para a casa do seu pai, pedindo desculpas. O pai o recebe com festa e alegria. O outro filho, que ficou trabalhando com o pai, se revolta contra o irmão.

 

Lucas – Todo o capítulo 15 de Lucas é dedicado ao ensinamento sobre a misericórdia: em três parábolas, Lucas apresenta uma catequese sobre a bondade e o amor de um Deus que quer estender a mão a todos os que a teologia oficial excluía e marginalizava. O Evangelho apresenta-nos o Deus/Pai que ama de forma gratuita, com um amor fiel e eterno, apesar das escolhas erradas e da irresponsabilidade do filho rebelde. E esse amor lá está, sempre à espera, sem condições, para acolher e abraçar o filho que decide voltar. É um amor entendido na linha da misericórdia e não na linha da justiça dos homens.

 

O pai e os dois filhos – A parábola apresenta-nos três personagens de referência: o pai, o filho mais novo e o filho mais velho. Vejamos um pouco destas figuras.

 

O pai – A personagem central é o pai. Trata-se de uma figura excepcional, que conjuga o respeito pelas decisões e pela liberdade dos filhos, com um amor gratuito e sem limites. Esse amor manifesta-se na emoção com que abraça o filho que volta, mesmo sem saber se esse filho mudou a sua atitude de orgulho e de auto-suficiência em relação ao pai e à casa. Trata-se de um amor que permaneceu inalterado, apesar da rebeldia do filho; trata-se de um pai que continuou a amar, apesar da ausência e da infidelidade do filho. A conseqüência do amor do pai simboliza-se no “anel” que é símbolo da autoridade (Gn 41,42) e nas sandálias, que é o calçado do homem livre.

 

O filho mais novo – É um filho ingrato, insolente e obstinado, que exige do pai muito mais do que aquilo a que tem direito (a lei judaica previa que o filho mais novo recebesse apenas um terço da fortuna do pai - Dt 21,15-17) mas, ainda que a divisão das propriedades pudesse fazer-se em vida do pai, os filhos não acediam à sua posse senão depois da morte deste (Sir 33,20-24). Além disso, abandona a casa e o amor do pai e dissipa os bens que o pai colocou à sua disposição. É uma imagem de egoísmo, de orgulho, de auto-suficiência, de frivolidade, de total irresponsabilidade. Acaba, no entanto, por perceber o vazio, o sem sentido, o desespero dessa vida de egoísmo e de auto-suficiência e por ter a coragem de voltar ao encontro do amor do pai.

 

O filho mais velho – É o filho “certinho”, que sempre fez o que o pai mandou, que cumpriu todas as regras e que nunca pensou em deixar esse espaço cômodo e acolhedor que é a casa do pai. No entanto, a sua lógica é a lógica da “justiça” e não a lógica da “misericórdia”. Ele acha que tem créditos superiores aos do irmão e não compreende nem aceita que o pai queira exercer o seu direito à misericórdia e que acolha, feliz, o filho rebelde. É a imagem desses fariseus e escribas que interpelaram Jesus: porque cumpriam à risca as exigências da Lei, desprezavam os pecadores e achavam que essa devia ser também a lógica de Deus.

 

Lógica de Deus – A “parábola do pai bondoso e misericordioso” pretende apresentar-nos a lógica de Deus. Deus é o Pai bondoso, que respeita absolutamente a liberdade e as decisões dos seus filhos, mesmo que eles usem essa liberdade para procurar a felicidade em caminhos errados; e, aconteça o que acontecer, continua a amar e a esperar ansiosamente o regresso dos filhos rebeldes. Quando os reencontra, acolhe-os com amor e reintegra-os na sua família. Essa é a alegria de Deus. É esse Deus de amor, de bondade, de misericórdia, que se alegra quando o filho regressa que nós, às vezes filhos rebeldes, temos a certeza de encontrar quando voltamos.

 

Convite – A parábola pretende ser também um convite a deixarmos-nos arrastar por esta dinâmica de amor no julgamento que fazemos dos nossos irmãos. Mais do que pela “justiça”, que nos deixemos guiar pela misericórdia, na linha de Deus.

sábado, 6 de março de 2010

Se vocês não se converterem ...


No Evangelho das missas deste domingo (Lucas 13,1-9), a pregação de Jesus tem como base dois acontecimentos contemporâneos ao seu ministério: o assassinato dos galileus por Pilatos e a queda de uma torre em Jerusalém. Esta passagem é somente encontrada no Evangelho de Lucas, e ensina os discípulos que Jesus é compassivo com as falhas, fraquezas, e limitações humanas, mas que também tem exigências, para quem quer segui-lo. Ele nos convida à conversão antes que seja tarde demais!

 

Intimidação – A notícia da morte dos galileus provavelmente foi trazida a Jesus por fariseus que queriam intimidá-lo. Em Jerusalém, alguns galileus foram mortos por Pilatos sob suspeição de serem agitadores, e eram considerados pecadores. O próprio Jesus, galileu, também visto como agitador, corria igual perigo.

 

Castigo e Conversão – Jesus responde com outro fato: a torre que desabara em Jerusalém matando várias pessoas, o que era tido como castigo de Deus. Jesus descarta o sofrimento e a morte como castigo de Deus. Tanto aqueles galileus que foram mortos por Pilatos como os dezoito judeus que morreram sob a torre de Siloé, que desabou em Jerusalém, não eram mais pecadores nem mais culpados do que qualquer outro morador de Jerusalém. O que livra da morte é, realmente, a conversão daqueles que se julgavam justos e santos.

 

Quem pecou – Na época, sofrer desgraças como doença, pobreza ou morte prematura, era visto como castigo de Deus por ser pecador. Podemos lembrar da pergunta feita a Jesus, referente ao homem cego de nascença, no Evangelho de João: "Os discípulos perguntaram: Mestre, quem foi que pecou, para que ele nascesse cego? Foi ele ou seus pais?"(Jo 9,2).

 

Teologia da Retribuição – É a tal chamada "Teologia da Retribuição", onde Deus premia ou castiga segundo os méritos da pessoa, ou melhor, segundo o que o sistema vigente entende por méritos. Assim se anula a gratuidade e a bondade misericordiosa de Deus, e os excluídos da sociedade são vistos como culpados do seu próprio sofrimento. Infelizmente essa teologia, tão anti-evangélica está muito presente hoje, quando a religião, ou o pagamento do dízimo se entendem como "investimento" para receber retornos de Deus.

 

Benção – É claro que também essa teologia funciona em favor da elite dominante, pois a sua riqueza é explicada como proveniente da bênção de Deus. Jesus não autoriza tal interpretação, e falando também do outro acidente em Jerusalém que matou dezoito pessoas, mostra que Deus não castiga assim. Esses acontecimentos trágicos podem servir para que todos pensem na insegurança da vida, e na urgência de conversão, enquanto ainda há tempo! Todos nós precisamos estar preparados para enfrentar o julgamento de Deus, através de uma vida digna de discípulos.

 

Parábola – Na segunda parte, Jesus conta a parábola da figueira. Serve para ilustrar as oportunidades que Deus concede para a conversão. O Antigo Testamento tinha utilizado a figueira como símbolo de Israel (Os 9,10), inclusive como símbolo da sua falta de resposta à aliança (Jer 8,13). Deus espera, portanto, que Israel (a figueira) dê frutos, isto é, aceite converter-se à proposta de salvação que lhe é feita em Jesus; dá-lhe, até, algum tempo (e outra oportunidade), para que essa transformação ocorra. Deus revela, portanto, a sua bondade e a sua paciência; no entanto, não está disposto a esperar indefinidamente, pactuando com a recusa do seu Povo em acolher a salvação. Apesar do tom ameaçador, há no cenário de fundo desta parábola uma nota de esperança: Jesus confia em que a resposta final de Israel à sua missão seja positiva.

 

Reflexão – Quaresma é um tempo oportuno para uma reflexão sobre a nossa vida cristã. É claro que todos nós somos pecadores, e então em permanente necessidade de conversão. A parábola nos anima diante das nossas fraquezas, pecados e tropeços na caminhada, pois Deus é compassivo, e em Jesus sempre nos convida a voltar ao bom caminho. Do outro lado, a Quaresma também deve nos estimular para que busquemos na verdade caminhos de conversão, descobrindo onde e como somos "figueiras sem frutos", buscando o "adubo" da oração, da Palavra de Deus, dos sacramentos, da Campanha da Fraternidade, para que voltemos a produzir os frutos devidos a verdadeiros discípulos de Jesus.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Jesus, Moisés e Elias


O Evangelho das missas deste domingo (Lc 9,28b-36) apresenta a Transfiguração. Jesus toma consigo Pedro, João e Tiago e sobe para um monte. Lá as suas vestes se tornam brancas luminosas e aparecem Moisés e Elias para conversar com ele. Todos foram envolvidos por uma nuvem, quando escutaram uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O”.

 

Catequese – O relato da transfiguração de Jesus não é um relato histórico, mas uma criação literária dos evangelistas, com a finalidade de deixar um ensinamento teológico, uma idéia válida para a vida dos cristãos. A narrativa é feita com o estilo literário de uma teofania (manifestação de Deus), caracterizado por fenômenos espantosos e supranaturais, nuvens e voz celestial, que indicam a comunicação de Deus (confira na primeira leitura da missa).

 

Ambiente – Estamos no final da “etapa da Galileia”; durante essa etapa, Jesus anunciou a salvação aos pobres, proclamou a libertação aos cativos, fez os cegos recobrar a vista, deu liberdade aos oprimidos, proclamou o tempo da graça do Senhor (Lc 4,16-30). À volta de Jesus já se formou esse grupo dos que acolheram a oferta da salvação (os discípulos). Testemunhas das palavras e dos gestos libertadores de Jesus, eles já descobriram que Jesus é o Messias de Deus (Lc 9,18-20).

 

Cruz – Também já ouviram dizer que o messianismo de Jesus passa pela cruz (Lc 9,21-22) e que os discípulos de Jesus devem seguir o mesmo caminho de amor e de entrega da vida (Lc 9,23-26); mas, antes de subirem a Jerusalém para testemunhar a erupção total da salvação, recebem a revelação do Pai que, no alto de um monte, atesta que Jesus é o Filho bem amado. Os acontecimentos que se aproximam ganham, assim, novo sentido.

 

Monte – Para o homem bíblico, o “monte” era o lugar sagrado por excelência: a meio caminho entre a Terra e o Céu, era o lugar ideal para o encontro do homem com o mundo divino. É, portanto, no monte que Deus Se revela ao homem e lhe apresenta os seus projetos.

 

Catequese – A Transfiguração é uma catequese sobre Jesus, o Filho amado de Deus, que através da cruz concretiza um projeto de vida. O episódio está cheio de referências ao Antigo Testamento. O “monte” situa-nos num contexto de revelação (é “no monte” que Deus Se revela e que faz aliança com o seu Povo); a “mudança” do rosto e as vestes de brancura resplandecente recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (Ex 34,29); a nuvem indica a presença de Deus conduzindo o seu Povo através do deserto (Ex 40,35; Nm 9,18.22;10,34). Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); além disso, são personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva (Dt 18,15-18; Mal 3,22-23). Eles falam com Jesus sobre a sua “morte” (“exodon” – “partida”) que ia dar-se em Jerusalém. A palavra usada por Lucas situa-nos no contexto do “êxodo”: a morte próxima de Jesus é, pois, vista por Lucas como uma morte libertadora, que trará o Povo de Deus da terra da escravidão para a terra da liberdade.

 

A Nova Aliança – A mensagem fundamental, portanto, é esta: Jesus é o Filho amado de Deus, através de Quem o Pai oferece aos homens uma proposta de aliança e de libertação. O Antigo Testamento (Lei e Profetas) e as figuras de Moisés e Elias apontam para Jesus e anunciam a salvação definitiva que n’Ele irá acontecer. Essa libertação definitiva irá acontecer na cruz, quando Jesus cumprir integralmente o seu destino de entrega, de dom, de amor total. É esse o “novo êxodo”, o dia da libertação definitiva do Povo de Deus. E o “sono” dos discípulos e as “tendas”? O “sono” é simbólico: os discípulos “dormem” porque não querem entender que a “glória” do Messias tenha de passar pela experiência da cruz e da entrega da vida; a construção das “tendas” (alusão à “Festa das Tendas”, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em tendas, no deserto) parece significar que os discípulos queriam deter-se nesse momento de revelação gloriosa, de festa, ignorando o destino de sofrimento de Jesus.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Jesus foi tentado?


O trecho do Evangelho lido neste domingo (Lc 4,1-13) apresenta-nos uma catequese sobre as tentações de Jesus.

 

Desonra? – Muitos têm dificuldade em aceitar que Jesus foi tentado pelo Diabo. No fundo é porque consideram a tentação como algo desonroso para a pessoa, como uma fraqueza, uma deficiência. Mas não é assim. A tentação não é nem boa e nem má. É simplesmente inevitável. Passa a ser boa ou má segundo a decisão que cada indivíduo toma diante dela.

 

Coisas estranhas – Como podemos dizer que as tentações de Jesus são as mesmas que as nossas?  A primeira tentação acontece no deserto. Mas, na segunda, o Diabo aparece transportando-o pessoalmente ao Templo de Jerusalém. Como o transportou? Levantando-o? Voando? Isto seria aceitar que o Diabo realizou um impressionante prodígio. De onde tirou poder para fazer milagres, quando a tradição bíblica sustenta que só Javé pode fazê-los? Na terceira tentação, o Diabo aparece levando-o a um alto monte, de onde lhe mostra todos os reinos e países do mundo. Existe na Terra esta extraordinária montanha, de onde se pode contemplar semelhante espetáculo?

 

Criação literária – E como pôde Jesus permanecer quarenta dias no deserto sem comer e, principalmente, sem beber? A desidratação não perdoa ninguém. Tudo isso nos leva a supor que, embora Jesus tivesse tido tentações durante sua vida, o modo como elas estão aqui contadas não é histórico. Trata-se mais de uma criação literária dos evangelistas, com a finalidade de deixar um ensinamento religioso, uma idéia válida para a vida dos cristãos. Nenhum exegeta sustenta que Jesus foi realmente levado ao deserto, que ali teve fome e foi tentado, que depois foi levado ao Templo de Jerusalém e terminou em cima de um monte. Toda esta coreografia é uma criação dos evangelistas para deixar-nos um ensinamento.

 

Por que os evangelistas escolheram essas três tentações? Aqui está a chave e o segredo de todo o relato! Escolheram-nas para traçar um paralelo com aquilo que aconteceu com o povo de Israel, logo após a saída do Egito, quando os israelitas entraram no deserto, conduzidos por Deus. Ali permaneceram durante quarenta anos e sofreram especialmente três tentações. Levando em conta esses detalhes, os autores bíblicos apresentam Jesus como o novo povo de Israel, que veio substituir o antigo, pois o povo de Israel, toda vez que fora tentado, tinha sido derrotado. Jesus, ao contrário, sai vitorioso das mesmas tentações e agora forma o novo povo, a nova herança de homens e pode realizar o programa libertador encomendado por Deus ao antigo Israel que, por sua infidelidade, não o pôde levar avante.

 

No deserto – O cenário da primeira tentação de Jesus é o deserto: durante quarenta dias sem comer, Ele sente fome e o Tentador o provoca para converter as pedras em pão. O povo de Israel teve a mesma experiência: depois de sair da opressão do Egito,  durante quarenta anos experimentou uma fome parecida, caindo em tentação. Rebelou-se contra Moisés, desejou poderes especiais para fazer aparecer alimento e até chegou a desejar voltar para a escravidão do Egito. Muitos anos depois Moisés lhes jogaria na cara essa fraqueza, dizendo que deviam ter pensado que nem só de pão vive o homem, mas também de tudo o que sai da boca de Javé (Dt 8,3). Mas quando sobreveio a mesma tentação a Jesus, ele negou-se a usar seus poderes, derrotando o Diabo com as mesmas palavras de Moisés.

 

No Templo – O segundo encontro entre Jesus e o Diabo se deu no Templo, sobre um precipício de mais de cem metros. Ele é convidado a jogar-se dali, para provar que Deus sempre cuida dele. Também o povo de Israel havia passado por semelhante situação: em Masá, no deserto, houve falta d’água e embora soubessem que Javé nunca os havia abandonado, os israelitas exigiram de Moisés que fizesse aparecer água. Caíram na tentação de usá-lo para Deus. E mesmo assim, Deus lhes fez o milagre. Moisés, porém, os censurou: “Não tenteis o Senhor vosso Deus como tentastes em Masá” (Dt 6,16). Essa mesma tentação assaltava agora Jesus. Mas o Senhor, lembrando-se de Moisés, voltou a citá-lo ao Diabo, para vencê-lo.

 

Na montanha – A terceira tentação se dá numa montanha altíssima, de onde Jesus contempla todos os reinos. Dessa vez Satanás lhe propõe que abandona o serviço exclusivo do Pai e converta-se em um adorador seu. O povo de Israel, igualmente, teve essa tentação no deserto: abandonar Javé e fazer para si um ídolo, um bezerro de ouro para adorá-lo (Êx 32). Moisés dirigiu um discurso ao povo antes de entrar na Terra Prometida, pedindo-lhe que não se deixasse tentar por outros deuses, pois “só se deve adorar e prestar culto a Deus” (Dt 6,13). Jesus viveu essa mesma tentação de adorar a outro fora de Deus Pai. E superou-a novamente com as palavras de Moisés que lhe serviram de arma vencedora.

 

Em substituição ao perdedor – Israel havia sido derrotado em todas as provas do deserto, por isso os profetas acreditaram que Deus mandaria um Messias, com força suficiente para vencer todas as tentações e converter em realidade as antigas esperanças do povo. Com o advento do Senhor, os evangelistas sugerem que se inaugura um “novo povo de Israel”, formado por Jesus Cristo e pelos seus seguidores, os cristãos. E dessa vez conseguirá, sim, pois Jesus saiu triunfante das tentações e todo aquele que viver unido a Ele poderá vencer igualmente as tentações. Para isso, os autores colocaram as tentações só no início de sua vida pública, mostrando que, se alguém se esforça em vencê-las, logo tem desimpedido o caminho para o êxito e assegura o triunfo final, como Jesus.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Felizes são vocês...


No trecho do Evangelho lido neste domingo (Lc 6,17.20-26), Jesus proclama as bem-aventuranças.

 

Época – Estamos na Galiléia e Jesus já é conhecido em toda a região, reunindo multidões por onde passa. Estamos no mês de agosto/setembro do ano 28 (lembrar que Jesus foi batizado há quase um ano e, há quatro meses, iniciou o seu ministério proclamando-se o Messias na sinagoga de Nazaré).

 

Dois textos – As bem-aventuranças são apresentadas por dois evangelistas: Mateus e Lucas. Enquanto Mateus apresenta a proclamação bem-aventuranças bem no início do ministério de Jesus, na Galileia (logo após o chamado dos quatro primeiros discípulos), em Lucas esta proclamação é situada após alguns milagres, atritos com os fariseus, o chamado de Mateus e a escolha dos Doze apóstolos. Em Mateus, a proclamação se faz no alto de uma montanha e apenas ao grupo de discípulos. Em Lucas, ela é feita em um lugar baixo e plano, aos discípulos e a uma grande multidão. Mateus cita quatro bem-aventuranças que não estão em Lucas (categorias da tradição profética de Israel): mansidão, misericórdia, pureza de coração e promoção da paz.

 

Ungido – Para entendermos todo o alcance e significado deste texto, devemos recordar que ele está situado na primeira parte do Evangelho de Lucas que é dominada pelo episódio da sinagoga de Nazaré, onde Jesus enuncia o seu programa: “o Espírito do Senhor está sobre Mim porque Me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-Me a proclamar a libertação aos cativos…” (Lc 4,18-19). As bem-aventuranças de Lucas inserem-se em todo este ambiente: a libertação chegou com Jesus e dirige-se aos pobres.

 

Mensagem – Lucas inicia este “discurso da planície” com quatro bem-aventuranças (que equivalem às nove de Mateus). Os destinatários destas bem-aventuranças são os pobres, os que têm fome, os que choram, os que são perseguidos. Os “pobres” de Lucas são as pessoas privadas de bens e à mercê da prepotência e da violência dos ricos e dos poderosos. São os desprotegidos, os explorados, os pequenos e sem voz, as vítimas da injustiça, que com frequência são privados dos seus direitos e da sua dignidade pela arbitrariedade dos poderosos. Por isso, eles têm fome, choram, são perseguidos.

 

Pobres? – Serão os pobres os primeiros destinatários da salvação de Deus. Por quê? Por que a proposta libertadora de Deus é para uma classe social, em exclusivo? Não! Porque eles estão numa situação intolerável de debilidade e Deus, na sua bondade, quer derramar sobre eles a sua bondade, a sua misericórdia, a sua salvação. Depois, a salvação de Deus dirige-se prioritariamente a eles porque, na sua simplicidade, humildade, disponibilidade e despojamento, os pobres estão mais abertos para acolher a proposta que Deus lhes faz em Jesus.

 

Bem-aventurados – As bem-aventuranças manifestam, numa outra linguagem, o que Jesus já havia dito no início da sua atividade na sinagoga de Nazaré: Ele é enviado pelo Pai ao mundo, com a missão de libertar os oprimidos. Aos pequenos, aos privados de direitos e de dignidade, aos simples e humildes, Jesus diz que Deus os ama de uma forma especial e que quer oferecer-lhes a vida e a liberdade plenas. Por isso eles são “bem-aventurados”.

 

Maldições – As “maldições” (ou os quatro “ais”) aos ricos que preenchem a segunda parte do Evangelho deste domingo são o reverso da medalha. Denunciam a lógica dos opressores, dos instalados, dos poderosos, dos que pisam os outros, dos que têm o coração cheio de orgulho e de auto-suficiência e não estão disponíveis para acolher a novidade revolucionária do “Reino”. As advertências aos ricos não significam que Deus não tenha para eles a mesma proposta de salvação que apresenta aos pobres; mas significam que, se eles persistirem numa lógica de egoísmo, de prepotência, de injustiça, de auto-suficiência, não têm lugar nesse “Reino” que Jesus veio propor.

 

Nova lógica – A proposta de Jesus apresenta uma nova compreensão da existência, bem distinta da que predomina no nosso mundo. A lógica do mundo proclama “felizes” os que têm dinheiro (mesmo quando esse dinheiro resulta da exploração dos mais pobres), os que têm poder (mesmo que esse poder seja exercido com prepotência e arbitrariedade), os que têm influência (mesmo quando essa influência é obtida à custa da corrupção e dos meios ilícitos). A lógica de Deus exalta os pobres, os desfavorecidos: é a esses que Deus Se dirige com uma proposta libertadora e a quem convida a fazer parte da sua família.

 

Boa Nova – O anúncio libertador que Jesus traz é, portanto, uma Boa Nova que enche de alegria os corações amargurados, os marginalizados, os oprimidos. Com o “Reino” que Jesus propõe aos homens, anuncia-se um mundo novo, um mundo de irmãos, no qual a prepotência, o egoísmo, a exploração e a miséria serão definitivamente banidos e onde os pobres e marginalizados terão lugar como filhos iguais e amados de Deus.