sábado, 3 de março de 2012

DEUS, ABRAÃO E O SACRIFÍCIO DE ISAAC

A primeira leitura das missas deste domingo nos apresenta um texto de difícil compreensão: Deus pede a Abraão o sacrifício de seu filho Isaac. Vamos analisar este texto. 

Tradições – Entre os capítulos 12 e 36 do Gênesis é apresentada uma série textos sobre a origem das tradições do povo hebreu. São as chamadas “tradições patriarcais”: relatos únicos, originalmente independentes uns dos outros, sem grande unidade e sem qualquer cunho histórico. Eram antigas histórias, mitos, lendas sobre o povo hebreu, que circularam na região da Palestina dois milênios antes de Cristo. 

Lendas – Nesses capítulos (Gn 12-36) aparecem vários tipos de histórias: os chamados “mitos de origem”, que descreviam como aconteceu a “tomada de posse” de um lugar por um patriarca do clã; as “lendas cultuais”, que narravam como um deus tinha aparecido nesse lugar ao patriarca do clã; indicações mais ou menos concretas sobre a vida dos clãs nômades que viveram na região e reflexões teológicas posteriores, destinadas a apresentar aos crentes israelitas modelos de vida e de fé. 

Início da lenda – O relato do sacrifício de Isaac (Gn 22) é uma “lenda cultual”. Nasceu muito antes de os patriarcas bíblicos terem se instalado na região. Havia uma lenda primitiva (que não é descrita em Gênesis) que contava que os cananeus (povo que habitava Canaã, a Terra Prometida) faziam sacrifícios humanos em um lugar sagrado, oferecendo crianças a um deus. A lenda dizia que esse deus tinha salvado uma criança que seria oferecida em sacrifício, substituindo-a por um animal. A partir daí, nesse lugar, os sacrifícios de crianças tinham sido substituídos por sacrifícios de animais. Foi essa a primeira etapa da tradição que nos é hoje proposta. 

Abraão e Isaac – Numa segunda fase, esta história primitiva foi aplicada à figura de Abraão, quando o seu clã se instalou na região. O pai cananeu da história primitiva, que levava o filho para ser oferecido em sacrifício, foi identificado com o patriarca Abraão. A tradição acabou por englobar o clã de Isaac, que se tornou, assim, o filho destinado ao sacrifício de que falava a velha lenda pré-israelita. 

Catequese – Por volta do século VIII a.C., os teólogos pegaram a antiga lenda cultual e puseram-na ao serviço da sua catequese. Na reflexão dos catequistas de Israel, a antiga lenda cultual tornou-se uma catequese sobre uma “prova” em que o justo Abraão manifestou a sua obediência radical e a sua confiança em Deus. 

Na Bíblia – Por fim, o redator de Gênesis acrescentou ao texto outros elementos teológicos. Foi, certamente, ele que ligou a lenda do sacrifício de Isaac com o monte santo dos sacrifícios do Templo de Jerusalém; foi ele, também, que acrescentou à história a ideia de que o comportamento de Abraão para com Deus mereceu uma recompensa e que essa recompensa iria, no futuro, derramar-se sobre todos os descendentes de Abraão. 

Prova – Todo o conteúdo da história está em “testar”, “pôr à prova”: Deus vai “submeter Abraão a um teste”. A “prova” a que Abraão é submetido é especialmente dramática: Deus pede-lhe que tome Isaac, o seu único filho, e o ofereça em sacrifício sobre um monte. Contudo, Isaac não é apenas o filho único e amado de Abraão, mas o herdeiro da promessa que Deus fez a Abraão: é a garantia de um futuro, de uma descendência numerosa que irá tomar posse da terra; é a garantia que deu sentido à peregrinação de Abraão desde que Deus o mandou deixar a sua terra, a sua família e a casa de seus pais. Deus que parece retomar o que havia dado. Por que essa mudança de planos? Quais são, na realidade, os desígnios de Deus? Pode-se confiar num Deus que muda de ideia dessa forma?  Como confiar num Deus que se contradiz? 

Abraão – Do princípio ao fim, Abraão não abre a boca a não ser para dizer “aqui estou”. De resto, Abraão não discute, não argumenta, não procura obter respostas para esse drama incompreensível, em que parece que Deus voltou atrás ao que lhe havia prometido. Abraão age, apenas. Levanta-se de madrugada, prepara as coisas para o holocausto, põe-se a caminho. Já no “monte do sacrifício”, Abraão constrói o altar, amarra a vítima e puxa a faca para matar o filho. O silêncio de Abraão, a rapidez da resposta e a forma determinada como age mostram a entrega, a confiança absoluta em Deus, a obediência levada até às últimas consequências. 

Resultado – Percorrido o longo e angustiante caminho da “prova”, chega finalmente o momento em que Deus, pela voz do seu mensageiro, faz o balanço e constata o resultado. A “prova” é conclusiva: todo o comportamento de Abraão, ao longo desta “crise”, testemunha que ele “teme o Senhor”. A recompensa? A obediência de Abraão irá gerar plenitude de vida e de bênçãos, uma descendência numerosa “como as estrelas do céu ou como a areia que está na margem do mar”. 

Mensagem – A história do sacrifício de Isaac destina-se, sobretudo, a propor a atitude que deve assumir diante de Deus aquele que crê. Abraão é apresentado como o protótipo do homem de fé ideal, que sabe escutar Deus e acolher os seus projetos com obediência incondicional, com confiança total… Mesmo que as propostas de Deus sejam incompreensíveis ou que os desafios de Deus interfiram com os projetos do homem, o crente ideal deve acolher os planos de Deus e realizá-los com fidelidade. Foi para deixar esta lição aos seus concidadãos que os teólogos foram buscar esta velha lenda.

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