Uma das maiores divergências entre os Evangelhos está nos dias em que ocorreram os acontecimentos da Paixão de Cristo. Enquanto os três Evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) indicam a Última Ceia na sexta-feira e a morte de Cristo no sábado (no dia da Páscoa dos Judeus), o Evangelho de João coloca a última ceia na quinta-feira, a morte na sexta-feira e a Páscoa no sábado.
Páscoa Judaica – O calendário judaico é diferente do calendário que usamos atualmente. O primeiro mês é o Nisã (ou Nissan), que começa junto com a primavera (21 de março). A Lei de Moisés (Ex 12,6) mandava que os Judeus comemorassem a Páscoa da seguinte forma: preparassem a Páscoa (imolando um cordeiro) no 14º dia do mês Nisã e, no 15º dia celebrariam a solenidade da Páscoa, observando o estrito repouso.
Naquele tempo ... – No ano 30, ano da morte de Jesus, o 15º dia de nisã aconteceu num sábado. Portanto, os judeus prepararam o cordeiro na sexta-feira (14º dia de nisã) e, ao anoitecer (que os judeus já consideravam o dia seguinte) comeriam o cordeiro assado com pães ázimos (sem fermento).
Divergência – Os três Evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) afirmam que a Última Ceia aconteceu no dia da preparação (em que se sacrificava o cordeiro) e a morte de Jesus no dia da Páscoa (Mt 26, 17-20; Mc 14, 12-17; e Lc 22, 7-12). No Evangelho de João (Jo 19,14-31) Jesus foi condenado e morreu no dia da preparação da Páscoa. João explica que, por não terem comido o cordeiro pascal, os judeus não entravam no pretório de Pilatos durante o julgamento, pois o contato com o ambiente pagão os contaminaria (Jo 18, 28) impossibilitando de comer a ceia noturna.
Portanto ... – Segundo Mateus, Lucas e Marcos, a Última Ceia aconteceu na sexta-feira (14º nisã) e crucificação e morte de Jesus ocorreu no sábado (15º nisã), Páscoa dos judeus; segundo João, a Última Ceia aconteceu na quinta-feira (13º nisã) e crucificação e morte de Jesus ocorreu em 14 nisã, na preparação (véspera) da Páscoa dos judeus.
Soluções – Ao longo dos séculos aconteceram inúmeras tentativas de conciliar esta contradição dos Evangelhos, sem qualquer solução convincente.
Calendários – No ano de 1947 foram descobertos os manuscritos de Qumrán, que eram parte de uma biblioteca de uma seita judaica chamada essênios. Dentre os inúmeros livros ali encontrados, dois deles (Livro dos Jubileus e Livro de Henoc) revelavam que, no tempo de Jesus, estavam em uso dois calendários distintos. Um era o calendário solar (ano de 364 dias) em que as festas importantes (ano novo, festa dos Tabernáculos, Páscoa) caíam sempre às quartas-feiras. O outro calendário (ano com 365 dias), mais recente e mais preciso, tinha como característica que o dia da Páscoa podia cair em qualquer dia da semana.
Duas Páscoas – Portanto, na época de Jesus havia duas datas para a Páscoa: a os judeus mais tradicionais (mais populares), que adotavam o calendário mais antigo e celebravam a Páscoa na quarta-feira (preparavam na terça-feira e comiam após o entardecer), e a dos sacerdotes e classes mais elevadas, que adotavam o novo calendário, em que a festa da Páscoa podia cair em qualquer dia da semana.
Solução – A solução para a divergência pode ser entendida se considerarmos que Jesus com seus apóstolos celebrou a Última Ceia baseando-se no calendário antigo, na terça-feira à noite, como fazia o povo mais simples. Os Evangelhos sinóticos afirmam que Jesus ceou com os apóstolos no dia da Páscoa (quarta-feira ou terça-feira à noite) porque seguiam o calendário antigo; João diz que Jesus ceou “antes da Páscoa”, portanto, segundo o calendário oficial.
Última Ceia na terça – Com a nova data, os acontecimentos ficam distribuídos da seguinte forma: Terça: pela noite, Jesus celebra a Páscoa, vai ao Monte das Oliveiras, é preso e levado ao sumo sacerdote; Quarta: pela manhã acontece a primeira sessão do Sinédrio, que escuta os testemunhos e Jesus passa a noite na prisão dos judeus; Quinta: pela manhã, em nova sessão, o Sinédrio condena Jesus à morte, que é levado à Pilatos, que o interroga e lhe envia a Herodes e Jesus passa a noite na prisão dos romanos; Sexta: Pilatos recebe pela segunda vez Jesus, o condena a ser açoitado e crucificado, morrendo às 3 horas da tarde.
Coerência – A proposta de localização da Última Ceia na terça-feira é bastante coerente, pois distribui todos os acontecimentos que antecederam a morte de Jesus em 3 dias; não haveria tempo hábil para todos estes fatos acontecerem na madrugada e manhã da sexta-feira (como no Evangelho de João). Seria impossível acontecerem no dia da Páscoa (como nos sinóticos), pois a tradição judaica proibia para este dia: carregar armas e encarcerar um réu (Mt 26, 47); acender fogo (Lc 22, 55); caminhar do campo para a cidade (Mc 15, 21); carregar uma cruz; executar uma sentença capital; comprar uma mortalha (Mc 15, 46); preparar aromas (Lc 23, 56).
Liturgia – A Igreja Católica sempre seguiu o Evangelho de João, comemorando a Última Ceia na quinta-feira santa. Estes ritos fazem parte da liturgia, que tem uma finalidade mais pedagógica do que histórica. Assim como celebramos o nascimento de Jesus em 25 de dezembro (sabendo que não é uma data histórica), podemos seguir celebrando a Última Ceia na quinta-feira, pois o objetivo é obter um benefício espiritual.
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