quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Magos: verdades e lendas





Evangelho – O Evangelho de Mateus (Mt 1,1) cita que Jesus foi visitado por “alguns magos”.  Descreve que eles foram guiados por uma estrela e que entregaram três presentes para o menino Jesus: ouro, incenso e mirra.  Estas são as únicas informações que temos sobre os magos; tudo o que aparece, além disso, são histórias, tradições, lendas, fábulas.  Vamos ver algumas:

Os três reis magos – No segundo século da era cristã, as comunidades cristãs já diziam que os magos eram reis e eram em número de três. Isto em razão dos presentes recebidos por Jesus: apenas os reis presenteavam com ouro e os três presentes davam a entender que eram três pessoas.  Apareceram também os nomes dos magos: Baltazar (que significa ‘rei da luz’), Melchior (‘protetor de reis’) e Gaspar (‘vencedor de tudo’).  A única evidência histórica que existe nestes nomes é que, na Pérsia (lugar onde havia muitos magos), entre os anos 19 e 65 da era cristã, viveu um príncipe de nome Gundofarr (que apresenta alguma semelhança a Gaspar).
Mais lendas – Passaram-se mais alguns séculos e criaram a descrição física dos magos. Melquior era velho, ponderado, prudente, sisudo, de barba e cabelos longos e grisalhos; Gaspar era jovem, sem barba e louro; Baltazar era negro e totalmente barbado. A ideia da procedência persa dos magos influenciou até as roupas com que aparecem representados: chapéu redondo na cabeça, camisa curta presa por um cinturão, calças estreitas e uma capa por cima. Exatamente como os reis persas se vestiam.
Restos mortais – De acordo com uma tradição medieval, os magos teriam se reencontrado quase 50 anos depois do primeiro Natal, em Sewa, uma cidade da Turquia, aonde viriam a falecer. No ano de 474, os restos mortais dos três magos foram sepultados em Constantinopla e depois transferidos para Milão, na Itália. Em 1164 foram transferidos para a cidade de Colônia, na Alemanha, onde foi erguida a belíssima Catedral dos Reis Magos, que os guarda até hoje.

A Lenda do Quarto Rei Mago – Uma antiga história conta que existia um quarto rei mago, que se chamava Artabam. Os quatro venderam tudo o que tinham e compraram os presentes. Artabam escolheu, como presentes, pedras preciosas: um rubi, uma esmeralda e diamantes. Quando estava a caminho de Belém, escutou gemidos de um homem – assaltado e largado à beira do caminho. Comovido, colocou-o no seu camelo, o levou a uma pousada próxima, cuidando dele até que se recuperasse. Como pagamento entregou o rubi ao dono da pousada.

Sozinho – Procurou a trilha dos outros reis magos, mas a estrela já tinha desaparecido do céu. Continuou sozinho seu caminho, pois no fundo do coração, sabia que algum dia iria encontrar seu Rei. A certa altura da caminhada, avistou uma caravana vindo em sua direção e viu que se tratava de um comboio de escravos, que eram levados para a morte. Sentindo compaixão e amor, pegou a esmeralda e os diamantes e comprou os escravos, libertando-os em seguida.  Quando todos já haviam partido, Artabam ficou sozinho.


Encontro – O Sol se pôs e a escuridão tomou conta do deserto. Não tinha mais presentes para oferecer, não havia mais a estrela-guia, tinha perdido o contato com seus três amigos. Nunca desistiu de encontrar o seu Rei.  Um dia, passando próximo à Jerusalém, encontrou três homens crucificados.  Um deles lhe perguntou o que procurava.  Artabam respondeu que há mais de 30 anos buscava o Rei dos Judeus.  O homem lhe disse: “Pois acaba de encontrar!”.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Jesus no Templo com os Doutores


 

O Evangelho das missas deste domingo (Lc 2,41-52) descreve a viagem da Sagrada Família a Jerusalém por ocasião da Páscoa.  Terminadas as festividades, Jesus permanece no Templo com os Doutores da Lei.  Vamos detalhar este episódio.

Tradição da Páscoa – Por ocasião da Páscoa, a principal festa do povo de Deus, milhares de peregrinos acorriam para a capital, Jerusalém.  No ano em que Jesus completava 12 anos, Ele, com José e Maria, foram fazer a peregrinação anual ao templo de Jerusalém.  A Sagrada Família partiu de Nazaré, onde moravam, e subiram até Jerusalém, numa viagem de 150 km, percorridos em 3 ou 4 dias. Por segurança, os romeiros viajavam em grandes caravanas, junto com os parentes.  Supõe-se que os peregrinos de Nazaré acampavam num jardim chamado Getsêmani, no pé do Monte das Oliveiras.

A época – Era o ano 6 de nossa era.  O rei Arquelau (filho de Herodes) já havia sido deposto, sendo a Judéia governada pelo procurador romano Coponius.  Nesta época, Jesus, com 12 anos, já era considerado adulto, com maturidade religiosa no judaísmo (Filho da Lei ou Bar-mizwah), membro do povo de Israel, passando a fazer leituras nas sinagogas.  Falava o aramaico (no dia-a-dia) e o hebraico (idioma culto e religioso da época).  Algumas perícopes dos Evangelhos dão a entender que Jesus soubesse a língua grega.

No fim da festa – Terminada a Páscoa, os romeiros se reuniam, formando as caravanas e voltavam para casa.  Os homens formavam um grupo separado das mulheres.  Os filhos podiam ir com o pai, ou com a mãe, ou com os parentes.  Conforme a tradição, o local de encontro das caravanas era em El-Birê, 16 km ao norte de Jerusalém, de onde as caravanas partiam cada uma para sua cidade.

Jesus fica em Jerusalém – José imaginava que Jesus estivesse com Maria e esta, por sua vez, pensava que o menino estivesse na caravana dos homens.  Perceberam que Ele não estava na caravana no fim do primeiro dia de viagem.  Já estavam a cerca de 15 km de Jerusalém.  Voltaram para lá e depois de três dias de buscas, encontraram Jesus no Templo.

Jesus no Templo – José e Maria encontraram Jesus no meio dos mestres, ouvindo-os e interrogando-os.  Os mestres da lei eram profundos conhecedores da Lei Judaica (os cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), que ensinavam nos átrios do templo, como Jesus o faria em sua vida pública.  O ensinamento dos mestres era em forma de diálogo.

Diálogo com os mestres – Pela descrição do Evangelho de Lucas, parece que estava ocorrendo uma aula, com todos os mestres e Jesus sentados em círculo, como era a tradição.  A admiração dos mestres estava em Jesus não saber os trechos da Sagrada Escritura (Antigo Testamento) de maneira decorada, como era normal, mas discutia com conhecimento.

“Meu filho, por que agiste assim conosco?” – Maria deve ter dito esta frase mais em tom de alívio do que de repreensão.  Depois de tão profunda aflição e tão grande susto, Maria, mãe amorosa que era, deve ter sentido uma grande alegria e alívio ao reencontrar Jesus.

“Não sabíeis que eu devo estar na casa do meu Pai?” – A tradução ao pé da letra (do grego) desta frase de Jesus é: “ ... que eu devia estar ocupado com os negócios de meu Pai?”.  É a primeira palavra de Jesus citada nos Evangelhos; notar que, como na última frase de Jesus, ele se refere ao Pai.

Jesus crescia em idade, em sabedoria e em graça diante de Deus – Jesus se preparava para sua missão.  Vinte anos depois (ano 27 d.C.), iniciava sua vida pública, fazendo com que ele superasse os laços familiares.  Deixou sua cidade de origem (Nazaré) e elegeu a cidade de Carfanaum como centro de seu apostolado.  A casa de Pedro (em Carfanaum) se tornaria o novo ponto de referência e os 12 apóstolos a sua nova família.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Jesus nasceu em 25 de dezembro?


Na noite de 24 de dezembro milhões de pessoas em todo o mundo comemoram, com profunda emoção, o que aconteceu em outra noite, há mais de dois mil anos: o nascimento de Jesus Cristo. O dia 25 de dezembro parece ter um toque mágico.  Mas, Jesus nasceu realmente neste dia? Certamente que não. Então, qual seria a data exata?

O Ano – Segundo relatos históricos, o rei Herodes (que perseguiu Jesus, recebeu os magos, mandou matar as crianças de Belém, etc.) morreu no final de março do ano 4 a.C. Como Jesus nasceu antes da morte de Herodes, a data mais aceita é o ano 7 a.C.

O mês – Quanto ao mês do nascimento de Jesus, a única informação está em Lc 2,8: "na mesma região havia uns pastores que estavam nos campos e que durante as vigílias montavam guarda a seu rebanho". Sabe-se que, em dezembro, quando comemoramos o Natal, a temperatura na região de Belém é abaixo de zero e normalmente há geadas. Portanto, certamente não haveria gado, no mês de dezembro, nos pastos próximos a Belém. Atualmente, naquela região, os rebanhos são levados para o campo em março e recolhidos no fim de outubro.

O dia – Desde os primeiros séculos, os cristãos sempre quiseram ter um dia para comemorar o nascimento de Jesus. Mas, não havia informações suficientes para fixar esse dia. O bispo Clemente de Alexandria (séc. III) dizia ser no dia 20 de abril; São Epifânio sugeria o dia 6 de janeiro, enquanto outros falavam em 25 de março ou 17 de novembro. Porém, não havia acordo. Assim, durante os três primeiros séculos, a festa do nascimento de Jesus não teve data certa.

Igreja sacudida – No século IV aconteceria algo que abalaria a Igreja: um presbítero de Alexandria chamado Ário passou a discordar da Igreja quanto à natureza de Cristo. Ário dizia que existia um Deus eterno e não gerado e que Jesus foi criado por esse Deus; portanto, Cristo era criado e não eterno. As idéias de Ário se propagaram e ganharam boa parcela da Igreja. No ano de 325 foi convocado um Concílio Universal da Igreja para resolver a questão ariana. Este concílio aconteceu na cidade de Nicéia, vizinha de Constantinopla. Por grande maioria, as idéias de Ário foram rejeitadas. Para reforçar a idéia, foi criado o credo Niceno-constantinopolitano que rezamos até hoje: “creio em Jesus Cristo nascido do Pai antes de todos os séculos; (Jesus é) Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, da mesma substância do Pai ...”.

Pós-Ário – Apesar da derrota, os partidários de Ário não se deram por vencidos. Muitos bispos continuaram aceitando a doutrina ariana e se recusando a utilizar o credo proposto em Nicéia. Frente a essa situação, o Papa Julio I percebeu que era importante propagar a idéia da divindade de Cristo, combatendo as idéias de Ário. Propôs que fosse comemorada a festa do nascimento de Jesus como a celebração do nascimento do Filho de Deus.

Qual dia? – Foi proposto usar o dia de uma festa bastante popular do Império Romano: “o dia do Sol Invencível”. Era uma celebração pagã muito antiga, desde o tempo do Imperador Aureliano, no século III, em que se adorava o sol como um deus invencível. Como se sabe, no hemisfério norte, à medida que vai chegando dezembro (inverno), os dias vão diminuindo e as noites se prolongando. A escuridão aumenta e o sol fica cada vez mais fraco. No dia 21 de dezembro (dia mais curto do ano) as pessoas se perguntavam: o sol desaparecerá?  Mas, a partir de 22 de dezembro a luz do sol começa a ganhar da escuridão.  No dia 25 de dezembro era comemorado o sol que não morre, o Sol Invencível.

Luz de Natal – Desta forma, a Igreja do século IV batizou e “cristianizou” uma festa pagã, transformando o “dia de natal do Sol Invencível” para “Dia de Natal de Jesus”, o Sol de Justiça, muito mais brilhante que o astro rei.  Assim, o dia 25 de dezembro se converteu no dia de Natal cristão.


Natal – Jesus não nasceu em 25 de dezembro. É uma festa simbólica. Mas, quando vemos ao nosso redor os problemas, preocupações, dores, fracassos, enfermidades, injustiças, misérias, corrupção, mentiras, devemos lembrar e nos perguntar: o mal vencerá o bem? A escuridão ganhará da luz? Cristo desaparecerá? Será vencido pelo mal?  O dia 25 de dezembro é o anúncio que Jesus é o Sol Invencível; jamais será derrotado. O 25 de dezembro é o maior grito de esperança dos homens; todos os que se opuserem a Jesus desaparecerão, porque ele é o verdadeiro Sol Invencível.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Situação política na época do nascimento de Jesus

  
Palestina – Jesus nasceu e viveu na região da Palestina (hoje Israel).  Na época em que ele nasceu, a Palestina era dominada pelo Império Romano (desde o ano 31 a.C.), cujo imperador era Otávio Augusto.  Desde 37 a.C., a região formava um “reino cliente”, com alguma independência de Roma, sendo administrado pelo rei Herodes Magno (“O Grande”).

Império Romano – Portanto, na época do nascimento de Jesus, mais da metade do mundo conhecido era dominado pelo Império Romano (toda a região do Mar Mediterrâneo, a Palestina, norte da África e Egito), sendo a Palestina um reino parcialmente independente, cedido pelo imperador romano a Herodes.  Nesta região, viviam os judeus, um povo com língua (hebraico ou aramaico), religião e costumes próprios.

Rei – Herodes (Magno) era um idumeu (povo que havia invadido a Palestina e assumido a religião judaica, porém excluído pelos judeus), casado com Mariana (judia), com quem teve dois filhos (Alexandre e Aristóbulo), além de outros filhos de casamentos anteriores. Administrativamente, Herodes era um político hábil: trouxe paz para a região, reconstruiu Jerusalém com “obras pagãs” (como teatros e anfiteatros), inaceitáveis para os judeus; instituiu os jogos atléticos em homenagem ao imperador (os jovens competiam nus) e reconstruiu o templo dos judeus com o dobro do tamanho.

Herodes – Era, porém, obcecado pelo poder. Para mantê-lo, tornou-se um tirano e criminoso: mandou matar dois cunhados, 45 aristocratas, os dois filhos que teve com Mariana (depois de deixá-los presos por um ano), mandou afogar seu cunhado no rio Jordão, mandou matar a sogra, mandou queimar vivos dois sábios; cinco dias antes de morrer (aos 70 anos) mandou matar seu filho Antipater.  A morte de sua mulher, Mariana, também é atribuída a ele. Em 36 anos de reinado, não se passou um só dia sem execução de inocentes.  Enciumado com o nascimento de Jesus (Mt 2,1-12), mandou matar todos os meninos com menos de 2 anos, nascidos em Belém.

Filhos – Herodes morreu entre março ou abril do ano 4 a.C. (aproximadamente dois anos após o nascimento de Jesus); seu reino foi dividido entre seus filhos: Herodes Antipas, que ficou com a Galileia e Pereia (norte); Herodes Filipe, que ficou com as cinco províncias ao leste do rio Jordão; Herodes Arquelau, ficou com a Judéia e Samaria (ao sul). Arquelau se mostrou mais tirano que o pai.  Nos primeiros dias de sua posse matou muitos judeus.  Num só dia foram mortas 3.000 pessoas.

Arquelau – O Evangelho de Mateus deixa bem claro a situação de opressão do povo (Mt 2,16-23), por ocasião do nascimento do Messias: José, Maria e Jesus se refugiaram no Egito, com medo de Herodes e somente depois da morte dele é que retornaram para a Galileia, com medo de Arquelau (que reinava na Judéia e Samaria, apenas). Em razão de inúmeros protestos dos judeus, em 6 d.C., Arquelau foi destituído do cargo pelo Imperador Otávio e a Judéia passou a ter administração direta de Roma, por intermédio de procuradores.  Trinta anos depois, Pôncio Pilatos se tornaria o mais famoso dos procuradores.

Antipas – Herodes Antipas, muito ambicioso, casou-se com a filha do rei da Arábia, ao mesmo tempo em que conquistava a estima e confiança do imperador romano.  Numa viagem a Roma, hospedou-se na casa do irmão, Herodes Filipe, apaixonando-se por Herodíades, mulher do irmão.  Algum tempo depois, Herodíades foi morar na Palestina com Herodes Antipas e levou a filha, Salomé, junto.  A situação de adultério foi denunciada por João Batista, que foi decapitado por vingança de Herodíades.

Como se vê, a plenitude dos tempos, ocasião escolhida por Deus para o nascimento de seu Filho, foi uma época sombria da história de judeus e pagãos. O que nos leva a refletir sobre uma frase de São Tomás de Aquino: “Deus não ama o homem porque o homem seja bom, mas o homem é bom porque Deus o ama”.

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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

“Preparem o caminho para o Senhor”


O texto do Evangelho das missas deste domingo (Lc 3, 1-6) segue-se imediatamente ao “evangelho da infância”, na versão de Lucas. Aqui começa, oficialmente, o Evangelho – isto é, o anúncio da Boa Nova de Jesus. Antes de começar a descrever a ação libertadora e salvadora de Jesus no meio dos homens, Lucas vai apresentar João Batista, o profeta que veio preparar a chegada do Messias prometido por Deus.

Tempo – Lucas começa por situar o quadro de João Batista num determinado enquadramento histórico. Nomeia sete personagens (desde o imperador Tibério César, até ao sumo sacerdote Caifás), num esforço de situar no tempo os acontecimentos da salvação (pelos anos 27/28). Quer deixar claro que esta aventura – Deus que vem ao encontro dos homens para lhes apresentar um projeto de salvação e de felicidade – não é uma lenda, perdida nas brumas do tempo e da memória dos homens… Sua intenção é destacar que se trata de uma história concreta, com acontecimentos concretos, que podem ser ligados a um determinado momento histórico e a uma terra concreta.

João – Num segundo momento, Lucas apresenta a figura de João Batista. Ele é “uma voz que grita no deserto” e que convida a preparar os caminhos do coração para que Jesus, o Messias de Deus, possa ir ao encontro de cada homem. Lucas começa por indicar que a missão profética de João lhe é confiada por Deus: o chamamento de João é apresentado com as mesmas palavras do chamamento de Jeremias, para marcar o caráter profético do seu anúncio.

Profeta – Depois, Lucas situa num espaço geográfico a atividade profética de João: ele prega em “toda a zona do rio Jordão” (Mateus e Marcos, situam-no no deserto)… Trata-se de uma região bastante povoada, sobretudo depois das construções de Herodes e de Arquelau: o anúncio profético de João destina-se aos homens, que são convidados a acolher o Messias que está para fazer a sua aparição no mundo. Finalmente, concretiza-se o âmbito da missão: João “proclama um batismo de conversão, para a remissão dos pecados”…

Isaías – O trecho termina com uma citação tomada de Isaías, que serve para anunciar aos exilados na Babilônia a libertação e o regresso a casa, num novo e triunfal êxodo: "Alguém está gritando no deserto: Preparem o caminho para o Senhor passar! Abram estradas retas para ele! Todos os vales serão aterrados, e todos os morros e montes serão aplanados. Os caminhos tortos serão endireitados, e as estradas esburacadas serão consertadas. E todos verão a salvação que Deus dá."

Reflexão – Concluímos o texto com uma reflexão de João Paulo II sobre este Evangelho do segundo domingo do Advento:

No segundo domingo do Advento ressoa com vigor este convite de São João Batista. Grito profético que continua tendo repercussão através dos séculos. O experimentamos também em nossa época, enquanto a humanidade continua seu caminho através da história. Aos homens do terceiro milênio, em busca de serenidade e de paz, é revelado o caminho que há de percorrer.
Toda a liturgia do Advento faz eco ao precursor, convidando-nos a sair ao encontro de Cristo que vem para salvar-nos. Preparamo-nos para voltar a evocar o nascimento, que aconteceu em Belém há cerca de dois mil anos; renovamos nossa fé em sua vinda gloriosa ao final dos tempos. Dispomo-nos, ao mesmo tempo, a reconhecê-lo presente entre nós: de fato, ele nos visita também nas pessoas e nos acontecimentos cotidianos.
Nosso modelo e guia neste itinerário espiritual típico de Advento é Maria, que é bem-aventurada com maior razão por ter acreditado em Cristo que por ter-lhe gerado fisicamente. Nela, imaculada de todo pecado e cheia de graça, Deus encontrou a ‘boa terra’ na qual semeou a semente da nova humanidade. Que a Virgem Imaculada, solenidade que nos dispomos a celebrar em 8 de dezembro, ajude-nos a preparar bem ‘o caminho do Senhor’ em nós mesmos e no mundo.


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sábado, 28 de novembro de 2015

“A libertação está próxima”


O texto do Evangelho deste domingo (Lucas 21, 25-28.34-36) situa-nos em Jerusalém, pouco antes da Paixão e Morte de Jesus. Estamos na terça ou quarta-feira da semana da Paixão (dia 3 ou 4 de abril do ano 30). Na sexta-feira seguinte, Jesus será preso, condenado e morrerá na cruz.

Apocalipse sinótico – Jesus está no Templo com seus discípulos. É o terceiro ou quarto dia da estadia de Jesus em Jerusalém, o dia dos “ensinamentos” e das polêmicas mais radicais. No início do capítulo 21 de Lucas, Jesus anuncia a destruição do Templo e da cidade de Jerusalém e oferece aos discípulos um amplo e enigmático ensinamento, que ficou conhecido como o “discurso escatológico”. Vamos ao texto.

Advento – No primeiro domingo do Ano Litúrgico, o evangelho de Lucas nos faz mergulhar em um discurso repleto de imagens e símbolos que não são da nossa cultura e época – e por isso nem sempre são fáceis de serem compreendidos pelos ouvintes de hoje. Porém, na literatura apocalíptica, não é necessário interpretar cada imagem detalhadamente – o mais importante não é cada “pedra” do mosaico, mas o padrão inteiro – o que importa não é cada imagem e símbolo, mas a sua mensagem de conjunto.

Filho do Homem – O texto nos apresenta a figura do “Filho do Homem” – o título que Jesus mais usava para si mesmo, e que nós pouco usamos. Este título vem de um trecho do livro de Daniel (Dn 7, 13s): “Em imagens noturnas, tive esta visão: entre as nuvens do céu vinha alguém como um filho de homem... Foi-lhe dado poder, glória e reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. O seu poder é um poder eterno, que nunca lhe será tirado. E o seu reino é tal que jamais será destruído”.

Poder de Deus – Então, Jesus recorda aos discípulos a mensagem de ânimo escrita por Daniel aos perseguidos do tempo dos Macabeus (pelo ano 175 a.C.): embora possa parecer que os poderes deste mundo, os impérios opressores sejam mais fortes do que o poder de Deus, isso não passa de uma ilusão, pois na plenitude dos tempos, Deus, por meio do seu Ungido – o Filho do Homem – revelará o seu poder, e estabelecerá um Reino que jamais será destruído.

Libertação – Qualquer interpretação de um texto apocalíptico que amedronta quem a escuta, é necessariamente errada, pois a função da literatura apocalíptica é de animar e dar coragem aos oprimidos e sofredores. Por isso, o ponto central desse texto é uma mensagem de ânimo, coragem e fé: “Quando essas coisas começarem a acontecer, levantem-se e erguem a cabeça, porque a libertação de vocês está próxima.”

Forças – Este trecho tem uma dimensão fortemente cristológica – nos afirma que Jesus, o Filho do Homem, vitorioso, tem em controle todas as forças, sejam elas de guerra ou do mar – símbolo de forças que não podiam ser dominadas, na literatura judaica da época. O versículo acima citado traz uma mensagem cheia de confiança: em contraste com a atitude de covardia dos malvados, os discípulos ficarão com a cabeça erguida, para acolher o juiz justo, o Filho do Homem.

Vigilantes – Mesmo assim, os eleitos devem ficar atentos para não caírem. Devem cuidar muito para que: “Os corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida.” É fácil assumir as atitudes do mundo, sem mesmo notar, a não ser que sejamos vigilantes. Por isso, o texto termina com um conselho válido também para os discípulos dos tempos modernos: “Fiquem atentos e rezem todo o tempo, a fim de terem força”.


Atentos – O Advento é tempo oportuno para examinarmos a nossa vida, para descobrir se realmente estamos atentos, o tempo todo, para não perdermos as manifestações da presença de Jesus no meio de nós. É tempo de nos dedicarmos mais à oração, de renovarmos as nossas forças, de estar atento no meio das preocupações e “barulhos” do mundo moderno, para que os nossos corações continuem sensíveis aos apelos do Senhor, presente em nosso próximo, no nosso dia a dia!

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

“Tu és Rei?”


O Evangelho da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo (Jo 18,33-37), Rei do Universo, apresenta-nos uma cena do processo de Jesus diante de Poncio Pilatos, o governador romano da Judéia. Estamos na manhã do dia 7 de abril do ano 30. Naquela sexta-feira, Jesus já havia sido preso, levado à casa de Anás, julgado pelo Sinédrio e agora estava diante de Pilatos. Cabe lembrar que o Sumo Sacerdote era Caifás; Anás, sogro de Caifás, apesar de ter deixado o cargo de Sumo Sacerdote, continuava a ser um personagem muito influente e foi ele, provavelmente, quem liderou o processo contra Jesus.

Pilatos – Poncio Pilatos, o interlocutor romano de Jesus, governou a Judéia e a Samaria entre os anos 26 e 36. As informações do historiador Flávio Josefo e de Fílon o descrevem como um governante duro e violento, obstinado e áspero, culpado de ordenar execuções de opositores sem um processo legal. As queixas de crueldade apresentadas contra ele pelos samaritanos, no ano 35, levaram Vitélio, o representante romano na Síria, a tomar a decisão de enviá-lo a Roma, para se explicar diante do imperador. Pilatos foi deposto do seu cargo de governador da Judéia no ano 36.

Rei? – O interrogatório de Jesus começa com uma pergunta direta de Pilatos: “Tu és o Rei dos judeus?”. Essa interrogação já revela qual era a acusação apresentada pelas autoridades judaicas contra Jesus: a de que Ele tinha pretensões de ser o Salvador prometido, que pretendia restaurar o reino de David e libertar Israel dos opressores. Esse tipo de acusação fazia de Jesus um agitador político, empenhado em mudar o mundo pela força, pelo poder das armas. Esta acusação tem fundamento? Jesus aceita-a?

Messias – A resposta de Jesus coloca as coisas nos devidos lugares. Ele assume-se como o Messias que Israel esperava e confirma, claramente, a sua qualidade de rei; no entanto, descarta qualquer semelhança com os reis que Pilatos conhece. Os reis deste mundo apóiam-se na força das armas e impõem aos outros homens o seu domínio e a sua autoridade; a sua realeza baseia-se na prepotência e na ambição e gera opressão, injustiça e sofrimento… Jesus, ao contrário, é um prisioneiro indefeso, traído pelos amigos, ridicularizado pelos líderes judaicos, abandonado pelo povo; não se impõe pela força, mas veio ao encontro dos homens para servi-los; não cultiva os próprios interesses, mas obedece em tudo à vontade de Deus, seu Pai; não está interessado em afirmar o seu poder, mas em amar os homens até ao dom da própria vida… A sua realeza é de outra ordem, da ordem de Deus.

Testemunho – A realeza de que Jesus Se considera investido por Deus consiste em “dar testemunho da verdade”. Para o autor do Quarto Evangelho, a “verdade” é a realidade de Deus. Essa “verdade” manifesta-se nos gestos de Jesus, nas suas palavras, nas suas atitudes e, de forma especial, no seu amor vivido até ao extremo, com a doação da vida.

Verdade – A “verdade” (isto é, a realidade de Deus) é o amor incondicional e sem medida que Deus derrama sobre o homem, a fim de fazê-lo chegar à vida verdadeira e definitiva. Essa “verdade” opõe-se à “mentira”, que é o egoísmo, o pecado, a opressão, a injustiça, tudo aquilo que desfigura a vida do homem e o impede de alcançar a vida plena. A “realeza” de Jesus concretiza-se, por um lado, na luta contra o egoísmo e o pecado que escravizam o homem e que o impedem de ser livre e feliz; por outro lado, a realeza de Jesus se realiza na proposta de uma vida feita amor e entrega a Deus e aos irmãos. Esta meta não se alcança pela lógica do poder e da força, mas pelo amor, pela partilha, pelo serviço simples e humilde em favor dos irmãos. É esse “reino” que Jesus veio propor; é a esse “reino” que Ele preside.


Renúncia – A proposta de Jesus provoca uma resposta livre do homem. Quem escuta a voz de Jesus adere ao seu projeto e se compromete a segui-lO, renuncia ao egoísmo e ao pecado e faz da sua vida um dom de amor a Deus e aos irmãos. Passa, então, a integrar a comunidade do “Reino de Deus”.

domingo, 15 de novembro de 2015

“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão”


Estamos no penúltimo domingo do Ano Litúrgico. A Liturgia nos fala do fim do mundo e da sua história. É um convite à ESPERANÇA: O Deus Libertador vai mudar a noite do mundo numa aurora de vida sem fim. As Leituras bíblicas, numa linguagem apocalíptica, nos estimulam a descobrir, os sinais desse mundo novo, que está nascendo das cinzas do reino do mal.

Linguagem apocalíptica – o estilo do texto é um modo alternativo de falar, bem compreendido pelo povo de então: usa imagens fortes e misteriosas, cheias de elementos simbólicos, mas o importante não são as imagens e sim o conteúdo que querem revelar; não pretende adivinhar o futuro, mas falar da realidade do povo; não pretende assustar, mas animar o povo em momentos difíceis.

Apocalipse de Daniel – Na 1ª leitura, encontramos o Apocalipse de Daniel (Dn 12,1-3). O Povo judeu se encontrava oprimido sob a dominação dos gregos. Muitos judeus, apavorados pela perseguição, abandonavam até a fé… Deus enviou o seu anjo Miguel como defensor dos que se mantiveram fiéis no caminho de Deus. O objetivo deste livro era animar o povo a resistir diante dos opressores e lembrar que a vitória final será dos justos que perseverarem fiéis... É a primeira profissão de fé na RESSURREIÇÃO, que se encontra na Bíblia. Esse texto está em conexão com o evangelho, que nos fala da segunda vinda de Cristo e prefigura a vinda de Cristo libertador.

Apocalipse de Marcos – No trecho do Evangelho, (Mc 13, 24-32), na época em que foi escrito por Marcos, as comunidades cristãs estavam agitadas e assustadas por causa de guerras e calamidades, como a destruição do templo, no ano 70 d.C. Para tranquilizar os cristãos, o autor também usa a linguagem apocalíptica, descrevendo a catástrofe do Sol e das estrelas e o aparecimento do Filho do Homem sobre as nuvens para julgar os bons e os maus. Esse "Discurso escatológico" de Cristo é o último antes da Paixão. Jesus anuncia a destruição de Jerusalém e o começo de uma nova era, com a sua vinda gloriosa após a ressurreição.

Fim do mundo? – Não é uma reportagem, mas uma CATEQUESE sobre o fim dos tempos. A intenção não era assustar, mas conduzir a comunidade a discernir os fatos catastróficos e o futuro da comunidade cristã dentro da História. Não deviam dar ouvidos a pessoas que anunciavam o fim do mundo, pelo contrário, precisavam entender como o início de um mundo novo, vendo nos sofrimentos sinais de vida: como dores de parto, que prenunciavam o nascimento de uma nova vida…

Quando vai acontecer isso? – A resposta para a ocasião em que os fatos ocorrerão é dada através da imagem da figueira: quando começa a brotar, o agricultor sabe que está chegando o verão e se alegra porque se aproxima a época da colheita. Quanto ao dia e hora, só o Pai sabe, mais ninguém... Para nós, o mais importante não é saber quando isso irá acontecer, mas sim estar vigilantes e preparados para ele.

E as sombras que vemos no Mundo de hoje? – O desabamento de tantas certezas, que julgávamos indestrutíveis, o desaparecimento de pessoas que julgávamos insubstituíveis, o abandono de certas práticas religiosas que pareciam indispensáveis, o esquecimento de tantos valores éticos e morais que tanto apreciamos... O abandono da fé de tantas pessoas, que julgávamos fervorosas... A violência, a corrupção, a opressão andam soltas...   Como devemos ver tudo isso? Será o fim do mundo?

Mundo novo – A Palavra de Deus reafirma que Deus não abandona a humanidade e está determinado a transformar o mundo velho do egoísmo e do pecado num mundo novo, de vida e de felicidade para todos os homens. A humanidade não caminha para a destruição, para o nada: caminha ao encontro da vida plena, ao encontro de um mundo novo. Nós cristãos devemos ver a vida presente em estado de gestação, como germe de uma vida, cuja plenitude final só alcançaremos em Deus. Esse mundo sonhado por Deus é uma realidade escatológica.


Novo dia – Desde já um novo dia está surgindo, por isso, devemos ser para os nossos contemporâneos sinais de esperança dessa realidade: gente de fé, com uma visão otimista da vida e da história, que caminha, alegre e confiante, ao encontro desse mundo novo que Deus nos prometeu. O Senhor não nos abandona em nossa caminhada: Ele vem sempre ao nosso encontro para nos indicar o caminho. Da nossa parte, devemos estar atentos aos sinais de Deus, confiantes nas palavras de Cristo, que nos garante: "O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão".

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

A oferta da viúva




O Evangelho deste domingo (Mc 12,38-44) situa-nos em Jerusalém, nos dias que antecedem a prisão, julgamento e morte de Jesus. Estamos na segunda ou terça-feira (dia 3 ou 4 de abril do ano 30). Na próxima sexta-feira (dia 7 de abril) Jesus será preso, condenado, crucificado e morrerá na cruz. No domingo (dia 9 de abril) ressuscitará.

Cenário – Por esta altura, agravam-se as polêmicas de Jesus com os representantes do Judaísmo oficial. A cada passo fica mais claro que o projeto do Reino (proposto por Jesus) é incompatível com a visão religiosa dos líderes judaicos. Num ambiente carregado de dramatismo, adivinha-se o inevitável choque decisivo entre Jesus e a instituição judaica e prepara-se o cenário da Cruz.

Figueira seca – Jesus tem consciência de que os líderes da comunidade judaica tinham transformado a religião de Moisés – com os seus ritos, exigências legais, proibições e obrigações – numa proposta vazia e estéril. Mal servida e manipulada pelos seus líderes religiosos, a comunidade judaica tinha-se transformado numa figueira seca (Mc 11,12-14. 20-26), onde Deus não encontrava os frutos que esperava (o culto verdadeiro e sincero, o amor, a justiça, a misericórdia).

O próprio Templo – o espaço onde se desenrolavam abundantes ritos cultuais e suntuosas cerimônias litúrgicas – tinha deixado de ser o lugar do encontro de Deus com a comunidade israelita e tinha-se tornado um lugar de exploração e de injustiça, “um covil de ladrões” (Mc 11,15-19).

Teatro – Jesus tem presente tudo isto quando ensina nos átrios do Templo, rodeado pelos discípulos. À sua volta desenrola-se esse folclore religioso, feito de ritos externos, de grandes gestos teatrais, frequentemente vazios de conteúdo. Os “doutores da Lei” (fariseus e escribas) são mais um elemento no quadro desse culto de mentira que Jesus tem diante dos olhos.

Viúva – Em contraponto, Jesus repara no “átrio das mulheres”, onde uma viúva deposita, no tesouro do Templo, a sua humilde oferta (dons voluntários eram feitos com frequência, tendo por finalidade, por exemplo, cumprir votos). As viúvas, no ambiente palestino de então (sobretudo quando não tinham filhos que as protegessem e alimentassem), eram o modelo clássico do pobre, do explorado, do débil.

Verdadeiro culto – Jesus convida os discípulos a perceber a essência do verdadeiro culto, da verdadeira atitude religiosa. Em profundo contraste com o quadro dos doutores da Lei, Jesus aponta aos discípulos a figura de uma pobre viúva, que se aproxima de um dos treze recipientes situados no átrio do Templo, onde se depositavam as ofertas para o tesouro do Templo.

Insignificante – A mulher deposita duas simples moedas (dois “leptá”, diz o texto grego. O “leptá” era uma moeda de cobre, a menor e insignificante das moedas judaicas); contudo, aquela quantia insignificante era tudo o que a mulher possuía. Ninguém, exceto Jesus, repara nela ou manifesta admiração pelo seu gesto. Apenas Jesus – que lê os fatos com os olhos de Deus e sabe ver para além das aparências – percebe naquelas duas insignificantes moedas oferecidas a marca de um dom total, de um completo despojamento, de uma entrega radical e sem medida.

O encontro com Deus passa por gestos simples e humildes, que podem passar completamente despercebidos, mas que são sinceros, verdadeiros, e expressam a entrega generosa e o compromisso total. O verdadeiro crente não é o que cultiva gestos teatrais e espampanantes, que impressionam as multidões e que são aplaudidos pelos homens; mas é o que aceita despojar-se de tudo, prescindir dos seus interesses e projetos pessoais, para se entregar completa e gratuitamente nas mãos de Deus, com humildade, generosidade, total confiança, amor verdadeiro. É este o exemplo que os discípulos de Jesus devem imitar; é esse o culto verdadeiro que eles devem prestar a Deus.

sábado, 31 de outubro de 2015

As bem-aventuranças


No Evangelho das missas deste domingo serão lidas as bem-aventuranças, também chamado de Sermão da Montanha (Mt 5,1-12).

Verdadeiro Apóstolo – O Sermão da Montanha nos apresenta um retrato das qualidades do verdadeiro discípulo, daquele que, no seguimento de Jesus, procura viver os valores do Reino de Deus. Basta uma leitura superficial para ver que a proposta de Jesus está na contramão da proposta da sociedade vigente – tanto a do tempo de Jesus, como a de hoje. O texto de Mateus deixa claro que o seguimento de Jesus exige uma mudança radical na nossa maneira de pensar e viver.
 
"Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” – Este versículo chama a atenção pelo fato de estar com o verbo no presente: o Reino já é dos pobres em espírito e dos perseguidos por causa da justiça. O Senhor promete a felicidade na bem-aventurança eterna e, ao mesmo tempo, já nesta vida (“deles é”, não diz “deles será”). As bem-aventuranças são o mais surpreendente código de felicidade, e não se trata de uma felicidade qualquer: é uma felicidade incomparável, interior e profunda, embora ainda não possuída de modo perfeito e completo na vida terrena.
 
Os pobres em espírito – No Antigo Testamento, o pobre está já delineado não só como uma situação socioeconômica, mas como um valor religioso muito elaborado: é pobre quem se apresenta diante de Deus com uma atitude humilde, sem méritos pessoais, considerando a sua realidade de homem pecador, necessitado do perdão divino, da misericórdia de Deus para ser salvo. Assim, além de viver com uma sobriedade e uma austeridade de vida reais, efetivas, é necessário que aceite e queira tais condições de pobreza não como algo imposto pela necessidade, mas, voluntariamente, com afeto.

Pobreza – A ‘explicação’ de Mateus, “em espírito”, sublinha a exigência dessa mesma pobreza: não é pobre em espírito quem só é assim porque é obrigado pela sua situação econômico-social, mas também aquele que, além disso, é pobre querendo essa pobreza de modo voluntário. Esta atitude religiosa de pobreza está muito relacionada com a chamada infância espiritual. O cristão considera-se diante de Deus como um filho pequeno que não tem nada como propriedade; tudo é de Deus, o seu Pai, e tudo que tem deve a Ele. De qualquer modo, a pobreza em espírito – ou seja, a pobreza cristã – exige o desprendimento dos bens materiais e austeridade no uso deles.
 
Bem-aventurados os humildes, porque possuirão a terra. A tradução preferiu um termo mais suave do que “os mansos”, que são os que sofrem serenamente e sem ira, ódio ou abatimento, as perseguições injustas e as contrariedades. De fato só os humildes são capazes da virtude da mansidão, pois não dão demasiada importância a si próprios. A “terra” é a nova terra prometida, isto é, o Céu.

Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Refere-se aos aflitos, e muito particularmente os que têm o coração cheio de mágoa por terem ofendido a Deus e que, com vontade de reparação, choram e lamentam os seus pecados.
 
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. A idéia de justiça na Sagrada Escritura é uma idéia de natureza religiosa: justo é aquele que cumpre a vontade de Deus, e justiça corresponde à santidade, vocação a que todos são chamados.
 
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. São, em geral, os que têm uma intenção reta, os que são capazes de um amor puro, limpo e nobre, os que têm um olhar reto e íntegro; está, portanto, englobada a castidade, mas não é só ela.
 
Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus (uma tradução mais expressiva do que pacíficos). São os que promovem a paz entre os homens e dos homens com Deus, fundamento sério de toda a paz no mundo.


Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Jesus deixa clara a conseqüência de assumir esse projeto de vida: a perseguição! Um sistema baseado em valores antievangélicos não pode agüentar quem a contesta e questiona: algo que a história dos mártires testemunha muita bem.

sábado, 24 de outubro de 2015

Jesus teve compaixão




No Evangelho das missas deste domingo (Mc 10,46-52), Jesus continua sua viagem para Jerusalém. Para evitar pisar nas terras da Samaria (os samaritanos eram considerados impuros), Jesus e seus discípulos partiam da Galiléia, atravessavam o Rio Jordão, viajavam em direção ao sul pela região da Decápole e Peréia e, novamente, atravessavam o Rio Jordão e entravam na Judéia.

Local e época – Os fatos descritos no Evangelho deste domingo acontecem quando o grupo liderado por Jesus entra no território da Judéia e se aproxima da cidade de Jericó. Faltam 37 quilômetros para chegar a Jerusalém. Estamos no mês de março do ano 30. Em menos de um mês (7 de abril do ano 30), Jesus será preso, condenado e crucificado. A multidão encontra um cego chamado Bartimeu, sentado na beira do caminho, pedindo esmola. Ao ouviu dizer que era Jesus de Nazaré quem estava passando, o cego começou a gritar: “Jesus, Filho de Davi, tenha pena de mim!”. Então Jesus parou e disse: “Chamem o cego!” e perguntou: “O que é que você quer que eu faça? - perguntou Jesus”. “Mestre, eu quero ver de novo!” respondeu ele. “Vá; você está curado porque teve fé!” - afirmou Jesus.

Rumo a Jerusalém – Estamos no fim da caminhada central de Jesus, desde Cesaréia de Felipe até a sua morte e ressurreição em Jerusalém. No texto de hoje, Marcos encerra o bloco todo da caminhada com o último milagre que ele relata de Jesus – a cura do cego Bartimeu.

Pressa? – O texto começa com um senso de urgência – chegaram a Jericó e logo saíram. Parece que têm pressa para caminhar até Jerusalém. E lá está o cego Bartimeu. Onde? Sentado à beira do caminho! Enquanto Jesus está "a caminho" com os seus discípulos, o cego está à beira do caminho! Simboliza todos os que não conseguem caminhar no discipulado, mas estão parados, à beira do seguimento de Jesus.

Grito – Mas este texto está bem carregado de sentido. Logo que Bartimeu ouve que é Jesus que passa, ele grita fortemente! "Filho de Davi, tem piedade de mim!" É de novo um dos temas centrais da Bíblia – o grito do pobre e sofrido! Desde o grito do sangue de Abel, passando pelo grito do Êxodo, de Jó, dos pobres nos Salmos, de Bartimeu, de Jesus na Cruz, dos martirizados do Apocalipse, o tema do grito do sofrido perpassa toda a Escritura, com a garantia de que Deus ouve esse grito. Mas a reação dos transeuntes é típica – mandam que Bartimeu se cale! O poder dominante sempre quer abafar o grito do excluído! E isso não mudou até o dia de hoje! Até nas igrejas existe quem não quer ouvir o grito, e faz tudo para abafar qualquer iniciativa popular. Mas Deus ouve!

O manto – Com um fino toque de ironia, o texto mostra como, por causa da atitude de Jesus, os mesmos que mandaram o cego calar-se agora são obrigados a convidá-lo para falar com Jesus. Mas para isso, Bartimeu tem que lançar fora o manto – a única coisa que ele possuía, a sua única segurança. Como os primeiros discípulos no Lago (Mc 1,18.20), ele aprende que não é possível seguir Jesus sem deixar algo, sem arriscar a segurança humana para experimentar a mão de Deus.

Ver Jesus – Mas Jesus não parte imediatamente para a ação. Ele respeita a liberdade do cego e pergunta "o que quer que faça por você". Pois Jesus não obriga ninguém a se libertar – há quem prefira ficar sentado à beira do caminho, na sua comodidade e não opte pela libertação. Mas Bartimeu quer ver de novo – diferente do cego de Jo 9, ele via uma vez e tinha perdido a visão. Aqui ele simboliza a comunidade de Marcos pelo ano 70, que tinha perdido a clareza da fé e precisava do toque de Jesus para voltar a ver claramente.


Seguir Jesus – Curado, Bartimeu recebe licença para ir, para seguir a sua vida. Mas ele faz outra opção: "no mesmo instante o cego começou a ver de novo e seguia Jesus pelo caminho". Ele usava para Jesus um titulo não muito adequado "filho de Davi" (Jesus fez muitas restrições a este titulo messiânico), mas ele tem a prática certa – segue Jesus pelo caminho. Aqui Marcos faz contraste com a figura de Pedro, que tinha o título certo "Tu és o Messias", mas a prática errada! Não quis que Jesus caminhasse para a morte! Assim, em Marcos, o modelo de discípulo não é Pedro, mas Bartimeu: mais importante do que os títulos e expressões teológicas, sem negar a sua importância relativa, é a prática dos seguimentos de Jesus! Um alerta para todos nós, para que a nossa prática seja coerente com a nossa fé, no seguimento de Jesus, em favor do Reino de Deus.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

“Aquele que quiser ser o maior de todos será o servo de todos”





No esquema do evangelho de Marcos, o texto de hoje (Mc 10, 35-45) situa-se quase no fim da caminhada de Jesus com os seus discípulos para Jerusalém, o lugar do desfecho de toda a sua missão. Estamos no mês de março do ano 30; no próximo dia 7 de abril do ano 30 Jesus será preso, condenado e crucificado.

Paixão – Pela terceira vez, ele tem dado aos seus mais íntimos colaboradores o anúncio sobre a sua paixão de morte: "Eis que somos subindo para Jerusalém, e o Filho do Homem vai ser entregue aos chefes dos sacerdotes e aos doutores da Lei. Eles o condenarão à morte e o entregarão aos pagãos. Vão caçoar dele, cuspir nele, vão torturá-lo e matá-lo".

Cegos – E de novo, a colocação mais do que clara de que significa ser o messias de Deus não surte efeito – os discípulos, cegados pela ideologia dominante, são incapazes de entender o sentido da vida de Jesus, e por conseguinte, o sentido de ser discípulo dele. Como Pedro, depois do primeiro anúncio, e todos os Doze depois do segundo, João e Tiago conseguem resistir o ensinamento de Jesus numa tentativa de impor a sua própria agenda!

Tiago e João – Apesar de ouvirem que Jesus veio para dar a sua vida em serviço de todos, os irmãos pedem os primeiros lugares quando Jesus entrasse na sua glória. O desejo de dominar estava muito enraizado neles. É tão gritante o descompasso entre o ensinamento de Jesus e os desejos dos dois irmãos que Mateus, relatando a mesma história, suaviza o texto de Marcos, fazendo com que a mãe deles fizessem o pedido! (Mt 10,20). A queixa de Deus no Antigo Testamento de que o seu povo era um povo de "cabeça dura", se atualiza nos Doze!!

Dominação – Mas não podemos pensar que eram só os dois filhos de Zebedeu que sentiram o gosto pela dominação. É interessante notar a reação dos outros dez diante do pedido feito: "Quando os outros dez discípulos ouviram isso, começaram a ficar com raiva de Tiago e João". Porque ficaram com raiva? Não porque achavam sem sentido o pedido dos dois, mas porque, no fundo, cada um deles queria ter o lugar de honra e poder!! O vírus de dominação é mais do que contagioso!!

Primeiro e servo – Mais uma vez, Jesus demonstra paciência histórica com os seus seguidores. Contrasta o sistema de organização da sociedade com aquele que queria para a comunidade dos seus discípulos: "entre vocês não devem ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servo de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se o servo de todos".

Servir e ser servido – E deixa bem claro o motivo – não em razão de uma humildade qualquer, mas porque ele nos deu o exemplo: "porque o Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos". Ser discípulo de Jesus, é ter o mesmo ideal, a mesma prática do que ele!

Poder – O texto torna-se muito atual para os dias de hoje. Infelizmente o contraste feito por Jesus entre os seus seguidores e o sistema da sociedade secular nem sempre se verifica. Existe, talvez nos últimos anos de forma mais acentuada, uma busca de status e do poder dentro do seio das igrejas, talvez especialmente entre o clero mais jovem.


Igreja – Mas ninguém pode se achar imune diante desta tentação, pois está bem enraizada dentro de todos nós. Somente uma mística bem cultivada do seguimento de Jesus, fundamentada na Palavra da Escritura, poderá nos ajudar para que realmente construamos uma Igreja onde e demonstra que "entre vocês não deve ser assim".

sábado, 10 de outubro de 2015

O CAMELO E O BURACO DA AGULHA


No Evangelho deste domingo é apresentado o texto de São Marcos (Mc 10,17-30) em que o jovem rico perguntou a Cristo o que deveria fazer para conseguir a vida eterna.

O jovem rico – Jesus lhe indicou os Dez Mandamentos da Lei de Deus.  Tendo o jovem respondido que já os observava desde a juventude, o Senhor aconselhou-lhe que vendesse as suas posses, distribuísse aos pobres e o seguisse.  Ao ouvir estas palavras, o jovem afastou-se entristecido, pois era proprietário de grandes posses. 

O camelo – Esta atitude do jovem ocasionou as seguintes observações de Cristo: Em verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no reino dos céus. Digo-vos ainda: é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” (Mc 10,25 e Mt 19,24).

Estranho – Sem qualquer dúvida, a desproporção, o contraste quase absurdo, causa estranheza aos dizeres de Jesus.  Os pesquisadores apresentam três explicações possíveis para a esquisita comparação:

a) JESUS TERIA USADO UM DITO POPULAR
          A primeira explicação sugere que Jesus realmente tenha dito tal frase, se utilizando de uma expressão (ditado) popular.  Parece que Ele quis mostrar a dificuldade da salvação, recorrendo a uma comparação absurda.  Cale lembrar que esta frase usada por Jesus em Mc 10,25 nunca foi encontrada em qualquer outro texto judaico, embora outras estranhas comparações tenham aparecido:
          - “Ninguém imagina, nem mesmo em sonho, uma palmeira de ouro, ou um elefante que passe pelo buraco de uma agulha” (Talmud (352).
          - “Pode um etíope mudar a própria pele? Ou um leopardo apagar as malhas do pêlo de que se reveste?” (Jr 13,23).
          Se Cristo vivesse nos dias atuais e se utilizasse de um ditado dos nossos dias, talvez dissesse: “Nem que chova canivete, um rico entrará no reino dos céus”.

b) CAMELO OU CORDA
          Na segunda explicação supõe-se que houve um erro na transcrição dos textos dos Evangelhos. Antes da invenção da imprensa, os textos eram copiados manualmente por copistas e sujeitos a inúmeros erros.  Dentre estas falhas, o escriba deve ter escrito camelo (Kámelos, em grego) no lugar de corda (Kámilos, em grego).  Kámilos era uma corda de grande diâmetro, usada para prender os barcos no porto.  Esta cópia do Evangelho (com a palavra trocada) teria sido usada como original por outros copistas, chegando até nossos dias. 
          Esta explicação foi apresentada por S. Cirilo de Alexandria (444) e aceita por outros textos do século V como o Tractatus de Divitiis, atribuído ao bispo Fastídio (410-450).
          Portanto, se aceitarmos esta justificativa, as verdadeiras palavras de Jesus foram (Mc 10,25): “É mais fácil uma corda passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”.

c) A PORTA DE JERUSALÉM
          A terceira explicação se refere a uma descoberta recente: alguns textos da época de Jesus reportam a existência de uma pequena passagem (ou buraco) nos muros da cidade de Jerusalém, chamado de “Buraco da Agulha”.  Devemos lembrar que Jerusalém era cercada por altos muros e grandes portões que eram fechados durante a noite.  O Buraco da Agulha era uma passagem (talvez usada para entrar ou sair ilegalmente da cidade) onde os animais de carga só podiam passar se fossem despojados da bagagem e dobrassem os joelhos; os homens só transitavam por aí se se curvassem.

          Fica a dúvida: teria Jesus se referido a esta passagem em seu discurso aos discípulos?

domingo, 4 de outubro de 2015

E os dois serão uma só carne


O texto do Evangelho das missas deste domingo acontece durante a última viagem de Jesus a Jerusalém. Estamos em fevereiro do ano 30. Em pouco mais de um mês, Jesus será preso, condenado e crucificado. Alguns fariseus, tentando obter uma prova para condenar Jesus, perguntam: “Um homem pode mandar a sua esposa embora?”

Matrimônio – O tema deste domingo é o matrimônio. Em nossos dias, o que ameaça o matrimônio é a separação e o divórcio, enquanto que, nos tempos de Jesus, era o repúdio. Este, certamente, um mal pior, porque implicava uma injustiça contra a mulher, pois somente o homem tinha o direito de repudiar a esposa. Lamentavelmente, esse costume ainda persiste em certas culturas...

Judaísmo – No judaísmo, duas correntes de opiniões se contrapunham: para uma delas, era lícito repudiar a própria mulher por qualquer motivo (até se “o feijão queimasse”), e a decisão do marido era soberana, conforme o seu julgamento ou vontade; para a outra, ao contrário, era preciso um motivo grave, previsto pela Lei. Os fariseus submeteram esta questão a Jesus, esperando que adotasse uma postura a favor de uma ou outra tese. Mas, receberam uma resposta que não esperavam: “Foi por causa da dureza do coração de vocês que Moisés escreveu esse mandamento.  Mas, desde o início da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe, e os dois serão uma só carne. Portanto, eles já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar”.

Moisés – A lei de Moisés sobre o repúdio é vista por Cristo como algo não desejado, mas tolerado por Deus (como a poligamia ou outras desordens) por causa da dureza de coração e da imaturidade humana. Jesus não critica Moisés pela concessão feita; reconhece que, nesta matéria, o legislador humano não pode deixar de levar em conta a realidade. Mas, volta a propor a todos o ideal originário da união indissolúvel entre o homem e a mulher (uma só carne) que, ao menos para seus discípulos, deverá ser a única forma possível de matrimônio.

Sacramento – Contudo, Jesus não se limita a reafirmar a lei; acrescenta-lhe a graça. Ou seja, os esposos cristãos não só têm o dever de se manterem fiéis até a morte, como têm também a ajuda necessária para fazê-lo. Da morte redentora de Cristo vem uma força – o Espírito Santo – que permeia todo aspecto da vida do crente, inclusive o matrimônio. Este, inclusive, é elevado à dignidade de sacramento e de imagem viva de sua união com a Igreja na cruz (Ef 5, 31-32). Dizer que o matrimônio é um sacramento significa que ele se converte em um modo de unir-se a Cristo, por meio do amor ao outro, tornando-se um verdadeiro caminho de santificação.

Crise - O ideal de fidelidade conjugal nunca foi fácil (adultério é uma palavra que ressoa sinistramente até na Bíblia) e hoje, mais difícil ainda. A crise que a instituição do matrimônio atravessa em nossa sociedade é visível e as legislações civis que permitem o divórcio apenas poucos meses depois de vida em comum, indiretamente, o estimulam. Palavras como: “estou farto desta vida”, “se é assim, cada um por si!”, “vou embora”, são pronunciadas entre cônjuges na primeira dificuldade.

Descartável – Vive-se também, no matrimônio, a mentalidade comum do “usar e jogar fora”. Se um aparelho ou uma ferramenta sofre algum dano ou uma pequena avaria, não se pensa em repará-lo, pensa-se só em substituir. Essa mentalidade, no matrimônio, é mortífera. O que se pode fazer para conter esta tendência, causa de tanto mal para a sociedade e de tanta tristeza para os filhos? Substituir a mentalidade do “usar e jogar fora” pela do “usar e remendar”. Quase ninguém faz remendos mais. Mas se não se fazem na roupa, deve-se praticar esta arte na vida a dois (Veja Ef 4, 26-27; Col 3, 13; Ga 6, 2).

Santidade – O importante a compreender é que o matrimônio não se gasta com crises e superações, mas se aperfeiçoa e melhora. Se olharmos para a vida dos santos, perceberemos que o caminho que leva à santidade é feita de vazios, aridez e muita força de vontade e cansaço. Muitos chegaram a duvidar de que estivessem no caminho certo. Seguiram adiante só por fé e só depois de passar por crises, entenderam o quanto é mais profundo e mais desinteressado o amor a Deus. Os casais também atravessam, frequentemente, crises em seu matrimônio. Se, com boa vontade e ajuda, conseguem supera-las, percebem que, se antes ambos se amavam pela satisfação que isso lhes proporcionava, hoje talvez se amem um pouco mais com um amor de ternura, livre de egoísmo e capaz de compaixão; amam-se pelas coisas que passaram e sofreram juntos.


Acolhimento – Apesar de tudo, a vida dos homens e das mulheres é marcada pela fragilidade própria da condição humana. Nem sempre, apesar do esforço e boa vontade, as pessoas conseguem ser fiéis aos ideais que Deus propõe. A vida de todos nós está cheia de fracassos, de infidelidades, de falhas. Nessas circunstâncias, a comunidade cristã deve usar de muita compreensão para os que, muitas vezes sem culpa, não conseguiram a vivência desse projeto de amor. Em nenhuma circunstância os divorciados devem ser marginalizadas ou afastados da comunidade cristã, que deve acolher, integrar, compreender, ajudar a quem as circunstâncias da vida impediram de viver o projeto ideal de Deus. Não se trata de renunciar ao “ideal” proposto; trata-se de testemunhar a bondade e a misericórdia de Deus para com todos aqueles a quem a partilha de um projeto comum fez sofrer e que, por diversas razões, não puderam realizar esse ideal que um dia, diante de Deus e da comunidade, se comprometeram a viver.