domingo, 27 de maio de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 18 – O quarto Evangelho

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 27/05/2001

O texto – Por volta do ano 100 d.C. começou a circular nas comunidades cristãs uma quarta compilação dos atos de Jesus. Usando um grego pobre mas correto, o autor montou um texto que parece ter um objetivo único: proclamar que Jesus é o Messias (Jo 20, 31). Com uma característica totalmente distinta dos 3 primeiros evangelhos, usou fontes próprias, fazendo longas análises teológicas sobre os atos do Senhor, chegando até a perder o contato com a realidade histórica.

Ainda o texto – Com certeza o autor conhecia os outros evangelhos e a coleção Q, mas utilizou-os muito pouco, existindo, talvez, um maior contato com o Evangelho de Lucas. Mesmo assim o texto é totalmente independente dos 3 primeiros. A melhor explicação para a composição do texto (com inúmeras adições, remendos, diversos estilos de redação) seria uma personalidade coletiva, ou seja, um Evangelho composto por muitos autores que relatavam a tradição da comunidade de Éfeso.

O autor – O seu autor é desconhecido, mas o texto exige uma pessoa ligada ao ambiente cristão e conhecedora da geografia da Palestina. A Igreja primitiva atribuiu este texto ao apóstolo João (o discípulo que Jesus amava, filho de Zebedeu), porém existem muitos fatos que não sustentam esta afirmação.

Três problemas – Existem três fatos que não sustentam a autoria do quarto Evangelho ao apóstolo João: uma tradição da Igreja, com vários testemunhos, afirma que o apóstolo João teria morrido mártir juntamente com seu irmão Tiago no ano de 44 d.C.; o texto não apresenta grande valor histórico, além de não se reconhecer no autor uma testemunha ocular dos acontecimentos; o texto se apresenta como um tratado teológico, como uma síntese dos ensinamentos de Pedro e Paulo.

Quem seria o autor? – Atualmente, a maioria dos estudiosos não aceita o apóstolo João como autor do 4º Evangelho; alguns citam João, o antigo (o presbítero João, de Éfeso, que, segundo Papias, era distinto do apóstolo João e pessoa influente na comunidade), outros o atribuem a algum cristão ligado ao apóstolo João, enquanto outros preferem uma autoria coletiva da comunidade de Éfeso.

João morreu em 44 d.C.? – As informações são bastante contraditórias: alguns documentos citam que o apóstolo João morreu martirizado, junto com seu irmão Tiago, no ano 44 (Papias no ano 100 e Orígenes no ano 220); outros apresentam João vivo após esta data (Paulo em Gal 2,9, escrita em 52-53 d.C., relata uma reunião ocorrida no ano 49 d.C. com a presença de João; Irineu, bispo de Lion; Jerônimo, no ano 400).

A idade de João – Se considerarmos João como o mais jovem dentre os apóstolos, a menor idade que poderíamos lhe atribuir seria de, aproximadamente, 14 anos, pois a tradição judaica considerava o homem adulto após os 12 anos, quando ele terminava o curso escolar e passava a aprender uma profissão (normalmente a mesma do pai). Em Mt 4, 21, João já trabalhava como pescador com seu irmão (mais velho) Tiago e seu pai Zebedeu quando foi chamado por Jesus. Se este episódio aconteceu em março do ano 28 d.C., concluímos que João nasceu por volta do ano 14 (ou antes). Esta data coloca dificuldades tremendas em aceitar que o apóstolo João ainda estivesse vivo nos últimos anos do 1º século, pois exigiria 86 anos de idade. A afirmação de Irineu de que João permaneceu em Éfeso até o tempo do imperador Trajano (98 – 116 d.C.) deve ser aceita com restrições. A expectativa média de vida no século I era de 30 anos: um terço das crianças morriam antes dos 6 anos; 60% antes dos 16 anos; 75% da população morria antes de completar 26 anos; e 90% antes dos 46 anos; menos de 3% atingia a idade de 60 anos.

sábado, 19 de maio de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 17 – Os problemas do texto de Mateus

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 19/05/2001

A difícil missão de Mateus – Como vimos, o objetivo do autor de Mateus era catequizar os judeus, apresentando Jesus como o Messias, o Cristo descrito e profetizado no Antigo Testamento, o novo Moisés. Para isso, o autor se ampara, por inúmeras vezes, em profecias (130 citações) do Antigo Testamento para justificar palavras e atos de Jesus.

Os 22 livros – Os judeus do século I (entre eles Jesus) não possuíam um catálogo (cânon) das escrituras, mas uma variedade de textos dotados de valor religioso. Flavio Josefo, escritor e historiador do primeiro século, afirmou que, antes de 70 d.C., os judeus se utilizavam de apenas 22 livros. Três séculos mais tarde, São Jerônimo, ao traduzir os textos para o latim, também deixou escrito que eram 22 os livros lidos nas sinagogas no tempo de Jesus.

Justificativas – Ao catequizar os judeus era necessária uma explicação "conforme as escrituras", ou "para que se cumprisse o que diziam as escrituras". Mas os 22 livros judeus já não eram mais suficientes, havendo a necessidade de buscar-se fundamento em outros escritos. Abriu-se assim o leque de citações, citando qualquer texto judaico em que uma explicação cristã pudesse lhe ser atribuída. Os 45 livros que compõem o Antigo Testamento em nossas Bíblias atuais nada mais são que uma ampliação (necessária à catequese) dos 22 livros dos judeus lidos nas sinagogas no tempo de Cristo.

Mateus – Sem qualquer dúvida, o objetivo principal do evangelista foi apresentar os principais eventos da vida de Jesus como realização das profecias dos livros judaicos, indicando-o como o Messias esperado pelos judeus. Talvez na ânsia de relacionar os fatos da vida de Cristo às passagens do A.T., o autor distorceu algumas citações, tomou trechos com outro significado, fez montagens de vários versículos de livros diferentes e, principalmente, citou livros não usados pelos judeus. O próprio São Jerônimo (viveu entre 347 e 420, foi dos grandes doutores da Igreja, principalmente por seus trabalhos bíblicos; foi o autor da Vulgata Latina) critica o evangelista afirmando que ele "põe na boca do Salvador passagens do Antigo Testamento que não seguem a tradução correta dos LXX".

Citações que não existem – Em Mateus 13,57 podemos ler: "Jesus lhes disse: ‘Um profeta só é desprezado em sua pátria e sua casa’.", em que Jesus parece citar um trecho desconhecido das Escrituras judaicas. Em Mt 2, 23, o autor de Mateus cita que Jesus veio morar em Nazaré, para que se cumprisse a profecia: "Ele será chamado nazoreu". Não se sabe a qual profeta ou a que livro judaico o autor de Mateus quis se referir. O termo nazoreu não tem equivalência nem com Nazareno (morador em Nazaré), nem com um membro da seita dos nazorenianos. Muito menos deve se referia a Nazir (o Santo Deus por excelência), citado por Jz 13,5.

Fora do contexto – Em Mt 2,18, ao comentar o massacre dos meninos em Belém, ele cita Jr 31,15: "Uma voz fez ouvir em Ramá, prantos e longo lamento: é Raquel que chora seus filhos e não quer ser consolada, porque eles já não existem", um texto que não se insere no assunto (acomodação), pois trata da morte dos que não voltaram da guerra com o inimigo. A tradução usada pelo autor é totalmente distorcida (faça a comparação de Mt 2,18 com Jr 31,15).

Distorções – Em Mt 4,15-17, o fato de Jesus abandonar Nazaré e ir morar em Cafarnaum, foi interpretado pelo autor de Mateus como o cumprimento da profecia de Isaías, estabelecida em Is 8,23-9,1. O autor, porém, distorceu o texto, adaptando-o aos seus objetivos. O texto original de Isaías diz: "Num primeiro momento, o Senhor cobriu de opróbio a terra de Zabulon e a terra de Neftali, mas em seguida cobriu de glória a rota do mar, o Além-Jordão e o distrito das nações. O povo que caminhava nas trevas viu uma grande luz. Sobre aqueles que habitavam a terra da sombra, uma luz resplandeceu." O texto de Isaías citado em Mt 4,15-17 é: "Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, Além-Jordão, Galiléia das Nações! O povo que jazia nas trevas viu uma grande luz; para os que jaziam na região sombria da morte levantou-se uma luz."

Mais distorções – Na entrada messiânica em Jerusalém (Mt 21,1-19), para justificar o evento da jumenta, o autor de Mateus se utiliza de uma profecia de Zacarias (Zc 9,9). Como a profecia não é suficiente para fundamentar o fato, o autor distorce a citação, com frases (talvez) de Isaías 62,11. Eis os textos: (Isaías 62,11) "Dizei a filha de Sião: eis que a tua salvação vem a ti ..."; (Zacarias 9, 9) "Estremece de alegria, filha de Sião! Prorrompe em aclamações, filha de Jerusalém. Eis que o teu rei vem ao teu encontro; ele é justo e vitorioso, humilde, montado num jumento – sobre um jumento novo." Vejam agora o autor de Mateus (21, 5) citando o ‘profeta’: "Dizei à filha de Sião: Eis que o teu rei vem a ti, humilde e montado numa jumenta e num jumentinho, filho de um animal de carga."

Morte de Judas – Na tentativa de uma explicação profética para a morte de Judas Iscariotes (Mt 27, 9), o autor de Mateus é obrigado a juntar versículos de Zacarias (Zc 11, 12) e de Jeremias (Jr 18, 2). Confira.

sábado, 12 de maio de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 16 – Mateus: o novo Pentateuco

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 12/05/2001


O novo Moisés – O Evangelho de Mateus salienta a figura de Cristo sobre o fundo do novo testamento, fazendo as vezes de novo Moisés, com a clara intenção de provar aos judeus que Cristo era o Messias tão aguardado pelo povo, que veio promulgar o Antigo Testamento.

Os destinatários – O autor de Mateus escreveu seu texto com um objetivo exclusivo: catequizar o público judaico. Isto fica claro quando utiliza-se de termos e costumes judaicos sem qualquer explicação. Seria difícil um leitor não-judeu entender tais expressões como Cidade Santa (Jerusalém), Lugar Santo (Templo de Jerusalém), Casa de Israel ou Povo Eleito (Judeus) ou Filho de Davi (Jesus).

As expressões – O termo "Reino dos Céus" ou a equivalente "Reino de Deus" é citada 33 vezes sem qualquer explicação; "Pai Celeste" aparece 20 vezes; "a consumação do século" aparece 5 vezes. Cita termos exclusivamente judaicos: as cidades de Israel, a terra de Israel, a Cidade do Grande Rei, os filhos do Reino, receber a terra por herança, a carne e o sangue, o jugo da Lei, as portas do inferno, ligar e desligar, os filhos da geena. Estas expressões não têm qualquer sentido para um não-judeu.

A autoridade do Evangelho – O texto do Evangelho de Mateus foi o primeiro a ser aceito por todas as comunidades cristãs. Era considerado como a catequese oficial dos Apóstolos, sendo o texto mais utilizado pelos pregadores cristãos dos primeiros séculos.

O novo Pentateuco – O Pentateuco são os cinco primeiros livros do Antigo Testamento, também designados como "A Lei", e seguidos de forma radical pelos judeus. Como que em uma comparação com o Pentateuco, o autor de Mateus compôs cinco sermões temáticos (três quintos do Evangelho) que apresentam de maneira bem didática os ensinamentos de Cristo: O ‘Sermão da Montanha’ (cap. 5-7), as ‘instruções aos Apóstolos’ (cap. 10), as ‘sete parábolas’ sobre o Reino (cap. 13), o ‘sermão comunitário’ do Reino de Deus (cap. 18) e o ‘sermão escatológico’ sobre o fim dos tempos (cap. 24-25).

As fontes do texto – Todo o texto de Mateus (com exceção da Infância) foi baseado em Marcos e no documento Q. O texto pode ser dividido em 5 partes, onde realça a didática do autor: A infância de Jesus (cap. 1 e 2), obtida junto a comunidades judaicas; Preparação da Missão, onde descreve as atividades de João Batista no deserto e as tentações de Jesus (Mt 3,1 a 4,11); Missão na Galiléia, com o Sermão da Montanha (cap. 5 a 7), os milagres (cap. 8 e 9), debates sociais (cap. 11 e 12) e parábolas (cap. 13); Missão em Jerusalém, descreve a viagem, a entrada triunfal e prediz a destruição do templo e o fim do mundo (cap. 19 a 25); e Paixão e Ressurreição (cap. 26 a 28) o seu texto é mais catequético.

Alguns problemas – Como vimos o objetivo do autor de Mateus era catequizar os judeus, apresentando Jesus como o Messias, o Cristo descrito e profetizado no Antigo Testamento, o novo Moisés. Para isso, o autor se ampara, por inúmeras vezes, em profecias (130 citações) do A.T., alterando palavras, ou compondo textos de vários profetas para justificar palavras e atos de Jesus. Mas isto é assunto para a próxima semana ...

VOCÊ SABIA QUE ...

... o autor de Mateus comete apenas um erro geográfico ao descrever em Mt 19,1 "... partiu da Galiléia e veio para o território da Judéia além do Jordão", pois a Galiléia e a Judéia estão do mesmo lado do rio Jordão. Talvez trate de uma descrição imprecisa, pois era comum os discípulos evitarem cruzar a Samaria, viajando pela região transjordânica e retornando por Jericó (cruzando 2 vezes o rio).

sábado, 28 de abril de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 15 – O terceiro Evangelho

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 28/04/2001

O novo texto – Entre os anos 80 e 90 d.C. surgiu um terceiro texto (também anônimo), que a Igreja primitiva identificou como sendo de autoria de Mateus. Foi o texto mais rapidamente reconhecido e absorvido pelas comunidades cristãs, com inúmeras citações em textos primitivos da Igreja, entre eles Papias (130 d.C.), Clemente de Roma (95 d.C.), Policarpo (150 d.C.), Hermas (120 d.C.), etc. O Evangelho de Mateus aparece como o primeiro Evangelho em nossas Bíblias porque até meados do século XX era considerado o primeiro texto (cronologicamente) escrito.

O autor – O autor deste terceiro relato sobre a vida de Cristo era um judeu letrado e profundo conhecedor das Escrituras Judaicas (livros do Antigo Testamento lidos na época). Conhecia e respeitava as tradições judaicas, mas interpelava rudemente os chefes religiosos de seu povo. Além de sua cultura e grande conhecimento da língua grega, outra característica do autor era a sua didática, sendo reconhecido como ‘um homem perito na arte de ensinar’.

Ainda o autor – A atribuição do texto ao apóstolo Mateus é duvidosa (senão impossível), pois dificilmente ele estaria vivo na época da composição deste Evangelho (entre 80 e 90 d.C.). Supondo que o apóstolo Mateus tivesse a mesma idade de Cristo, no ano 80 ele deveria estar com 87 anos, o que representa uma idade muito avançada para a época. Entre os exegetas modernos é quase unanimidade a não atribuição do 3º Evangelho ao apóstolo Mateus (Levi, ou Marcos Levi, equivalente às formas de Matias ou Matatias). É importante lembrar que o apóstolo Mateus aparece uma única vez em todos os quatro Evangelhos: no momento em que é convocado por Cristo para segui-lo (Mt 9,9 ou Mc 2,13-17 ou Lc 5, 27-32). Estava presente também na reunião dos apóstolos após a morte de Jesus (At 1,13).

Quatro razões – Os estudiosos citam quatro fundamentos que distanciam Mateus da autoria do terceiro Evangelho, todos eles relativos ao texto ser incompatível com a descrição de uma testemunha ocular dos fatos: a forma impessoal de escrever (relatos frios de fatos distantes), a sua teologia pós-apostólica, a sua dependência do texto de Marcos (não incluindo qualquer detalhe nas narrações) e, por último, as indicações topográficas e geográficas muito vagas.

A Época em que foi escrito – O texto deve ser datado entre 80 e 90 d.C. (com certeza após 80 d.C., pois o autor parece se envolver na polêmica do judaísmo sinagogal ortodoxo, manifestado em Jâmnia no ano 80 d.C.), o que faz com que vários estudiosos coloquem sua composição após 90 d.C. ou, até mesmo, após o ano 100 d.C. Outra característica que coloca o Evangelho em tempos mais tardios é o envolvimento do autor em questões polêmicas sobre Jesus, próprias do final do primeiro século, como ilegitimidade do nascimento, residência em Nazaré e não em Belém, o roubo do corpo de Jesus, etc.

O texto – Podemos afirmar que o autor (escrevendo em grego) "garimpou os fatos da vida de Jesus", pois a análise do Evangelho mostra a montagem de textos de diferentes estilos, recortados e alinhados de forma não cronológica. O texto é claramente dirigido aos judeus convertidos ao cristianismo, tendo como objetivo básico apresentar Jesus como o Messias, o Cristo descrito e profetizado no Antigo Testamento, o novo Moisés. Para isso, o autor se ampara, por inúmeras vezes, em profecias do A.T. (130 citações), algumas distorcidas ou alteradas, ou ainda compondo textos de vários profetas, para justificar palavras e atos de Jesus. Mas isto é assunto para a próxima semana ...

VOCÊ SABIA QUE ...

... o chamado "Sermão da Montanha" é uma situação fictícia criada pelo autor do Evangelho de Mateus (Cap. 5, 6 e 7) para juntar todos os discursos de Jesus proclamados nos 2 anos e 6 meses de sua pregação, como se todos os pronunciamentos do Mestre tivessem ocorrido num mesmo local e em um único discurso. Nos outros Evangelhos (inclusive Marcos, usado como fonte pelo autor de Mateus) os sermões são distribuídos em toda vida pública de Jesus. A tradição em torno das Bem-aventuranças foi tão grande na Igreja primitiva, que logo se identificou uma montanha onde teria acontecido tal sermão.

sábado, 21 de abril de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 14 – Os problemas do Evangelho de Lucas

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 21/04/2001

Uma dúvida – Como vimos na semana passada, Lucas conheceu a Boa Nova cristã através de Paulo (2º viagem apostólica, entre 50 e 52), na cidade de Entioquia, passando a acompanhar Paulo em suas viagens. Assim, Lucas permaneceu distanciado da comunidade dos apóstolos, tendo em Paulo (que também não conheceu Cristo) a sua maior fonte de informações. Este distanciamento das fontes de informações e o direcionamento do texto aos gentios, levaram Lucas a fazer várias citações inexatas em seu Evangelho.

Falhas Históricas – No início do Capítulo 2 (Lc 2, 1-5), Lucas tenta localizar o nascimento de Jesus no cenário político da Palestina, citando um "edito de César Augusto mandando recensear o mundo inteiro". Os decretos (editos) dos imperadores romanos são todos conhecidos pelos registros oficiais e por historiados do século I, mas não existe qualquer referência a esse decreto; o termo "mundo inteiro" é um exagero do autor, pois o imperador só tinha poder sobre o império romano; na citação que "esse primeiro recenseamento teve lugar na época em que Quirino era governador da Síria" talvez esteja o maior erro histórico, pois Sulpicius Quirinus (Cyrenius) governou a Síria a partir de 6 d.C., enquanto Herodes foi o rei da Judéia até 4 a.C, o que dá um hiato de 10 anos; a necessidade de cada qual se recensear em sua própria cidade também não tem base histórica, como também a obrigatoriedade de se apresentar com a esposa.

Falhas com a geografia – Em Lc 4, 43-44, Jesus é impedido pelas multidões de sair da cidade de Cafarnaum, dizendo: "Devo anunciar também a outras cidades a Boa Nova do Reino de Deus, pois é para isto que fui enviado". E Lucas completa: "E pregava pelas sinagogas da Judéia". Fica claro que o autor, não familiarizado com a geografia da região, se engana, citando a distante Judéia, quando o correto seria Galiléia (pois Cafarnaum fica na Galiléia, próxima ao lago de Genesaré). No texto equivalente (Mc 1, 39), Marcos cita corretamente a Galiléia.

Mais problemas geográficos – Ao descrever a ressurreição da filha da viúva de Naim, em Lc 7, 11-17, o autor escreve que "essa notícia difundiu-se pela Judéia inteira e por toda a redondeza", não reconhecendo que a cidade de Naim se situava na Galiléia, próxima de Nazaré e do Monte Tabor, e muito distante da Judéia. No interrogatório de Jesus por Pilatos, em Lc 23, 1-7, novamente Lucas comete um erro geográfico. Ao citar a resposta dos chefes dos sacerdotes e da multidão à pergunta de Pilatos sobre qual o motivo da condenação de Jesus, ele escreve "Ele revoluciona o povo, ensinando por toda a Judéia, desde a Galiléia, onde começou, até aqui". Novamente ele erra, pois parece que considera a Galiléia uma província da Judéia. Notar que esta falha não aprece nos outros Evangelhos. Ao descrever o fracasso da pregação de Jesus em Nazaré, em Lc 4, 16-30, Lucas detalha o modo como Cristo foi expulso da cidade: "Eles se levantaram, lançaram-no fora da cidade, e o conduziram até uma escarpa da colina sobre a qual estava construída a cidade, para daí o precipitarem abaixo.". A descrição é totalmente irreal, pois a cidade de Nazaré não está, e nunca esteve, sobre uma colina, não existindo a encosta citada no texto.

Casas com telhas ? – Ao descrever a cura do paralítico que foi introduzido na casa onde estava Jesus pelo telhado (Lc 5, 17-20), Lucas cita: "Como não encontravam um jeito de introduzi-lo, por causa da multidão, subiram ao terraço e, através das telhas, desceram-no com a maca no meio dos assistentes, diante de Jesus". O autor, influenciado pelo estilo grego de construir casas, inseriu "telhas" nas casas da palestina. As casas da região onde Cristo viveu tinham apenas lajes; daí as palavras de Jesus "Publicai de cima dos telhados" (Mt 10, 27), onde no Oriente era o lugar usual para conversas e divulgação de notícias. Existem textos paralelos de Mc e Mt que confirmam a história, porém sem citar as "telhas" de Lucas.

Lucas desconhecia os judeus – No capítulo 5, Lucas descreve a refeição com os pecadores na casa de Mateus-Levi: "Os fariseus e escribas murmuravam, dizendo aos discípulos de Jesus: por que comeis e bebeis com os coletores de impostos e pecadores", onde mostra pouca familiaridade com o povo judeu, pois os escribas são fariseus. Mateus cita apenas "os fariseus" (Mt 9,11), enquanto que Marcos escreve "os escribas dos fariseus" (Mc 2,16). No Evangelho da Infância", quando descreve a circuncisão de João Batista (Lc 1, 59-66), Lucas cita que "no oitavo dia, foram circuncidar o menino. Queriam dar-lhe o nome de seu pai, Zacarias, ...". Novamente Lucas se mostra totalmente alheio aos costumes do povo judeu, pois raramente se atribuía o nome do pai a uma criança.

VOCÊ SABIA QUE ...

... existem outras dezenas de pequenas falhas e dúvidas no Evangelho de Lucas. Se você quiser receber um texto com uma análise completa sobre o Evangelho de Lucas, solicite por carta ou E-mail.

sábado, 14 de abril de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 13 – O texto do Evangelho de Lucas

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 14/04/2001

O texto – O trabalho redacional do autor deste Evangelho é notável. Com um grego correto e elegante, vocabulário rico e variado, pode ser considerado como a melhor peça literária do Novo Testamento. Lucas, que pode ser considerado um escritor de grande talento, elaborou sua obra sem a preocupação com um arranjo histórico ou cronológico na descrição dos fatos.

As Fontes – No início do seu Evangelho, Lucas deixa claro que pesquisou todos os fatos que aconteceram com Jesus, para depois escrever seu texto. Com toda certeza, durante a redação, Lucas tinha em mãos o Evangelho de Marcos e o ‘Documento Q’. Dos 1098 versículos do Evangelho de Lucas (o maior, em número de versículos) 218 foram tirados do ‘documento Q’, 350 do Evangelho de Marcos e 530 colhidos dos ensinamentos de Paulo e da comunidade da Antioquia.

As partes – O texto de Lucas pode ser dividido nas seguintes partes:

- Evangelho da Infância (Cap. 1 e 2), onde descreve a anunciação, a visita de Maria à Isabel, o nascimento de João, a viagem a Belém, o nascimento de Jesus e sua vida oculta. Utilizou com fonte a tradição da Igreja.

- Preparação da Missão (3,1 a 4,13), Lucas utiliza como base o Evangelho de Marcos.

- Missão na Galiléia (4,14 a 9,50), Lucas esquematiza o texto sobre a mesma matriz de Marcos.

- Missão em Jerusalém (9,51 a 21,38), embora o autor use pequenas perícopes citadas por Marcos, todas as situações são alocadas no âmbito de uma viagem a Jerusalém. Neste trecho fica bem clara a utilização do ‘Documento Q’.

- Paixão e Ressurreição (Cap. 22 a 24), se utiliza da mesma estrutura dos demais Evangelhos, se baseando em Marcos.

Destaques – O que se destaca no Evangelho de Lucas são os textos próprios e inéditos (metade dos versículos), pesquisados pelo autor (veja Lc 1,3): a infância de Jesus (cap. 1 e 2), alguns milagres (Lc 7,1-17; Lc 13,10-17; Lc 14,1-5; Lc 17,12-19), as parábolas do bom samaritano, do rico insensato, da figueira estéril, do construtor, do gerente astuto, etc..

Uma questão – Entre os três Evangelhos sinóticos (Marcos, Lucas e Mateus), Lucas é o que apresenta a maior quantidade de textos inéditos. Como sabemos, Lucas passou a acompanhar Paulo em suas viagens após o ano 50 d.C., permanecendo distanciado da comunidade dos apóstolos e tendo Paulo (que também não conheceu Cristo) como maior fonte de informações. Como poderia escrever metade de seu Evangelho com fatos inéditos ? Estaria Lucas apto a fazer tantas inserções na história da vida de Cristo como fez ? Onde ele teria obtido tantos fatos novos que não se encontram nos outros textos ? Estes dados talvez respondam o porquê que o Evangelho de Lucas é o mais impreciso, com grande quantidade de adições, nomes trocados e erros históricos. Mas isto é assunto para a próxima semana ...

VOCÊ SABIA QUE ...

... em algumas partes de seu Evangelho, Lucas fez uma cópia perfeita do texto de Marcos? Compare de Lc 4,31 até 6,19 com Mc 1,21 até 3, 12. Depois compare de Lc 8,4 até 9,50 com Mc 4,1 até 9,40. Compare de Lc 18,15 até 21,38 com Mc 10,14 até 13,37. Você sabia que a comparação dos textos de Lc 8,40 até Lc 9,27 com Mc 5,21 até Mc 8,38 pode provar que o Evangelho de Marcos foi escrito em partes (várias versões) ? Solicite por carta ou E-mail um estudo sobre as várias versões do Ev. de Marcos.

sábado, 7 de abril de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 12 – O segundo Evangelho escrito

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 07/04/2001


O novo texto – Poucos anos após a redação do texto de Marcos, surgiu um segundo texto (também anônimo), que a Igreja primitiva identificou como sendo de autoria de Lucas. O testemunho mais antigo é de Irinaeus (Santo Irineu, bispo de Lyon, na Gália, nasceu em 130 e morreu em 202) em carta no final do século II, que identifica o autor desde Evangelho com o médico Lucas. Em nossas Bíblias, este texto é editado como o 3º Evangelho.

Época da redação – A composição deste Evangelho pode ser datada entre os anos 70 e 80 d.C. pois a análise dos versículos Lc 19,43-44 e Lc 21,20-24 nos dá um paralelo bastante próximo das descrições históricas da tomada de Jerusalém em 70 d.C., indicando que o autor, ao escrever o seu Evangelho já tinha conhecimento da destruição da cidade. Portanto este 2º Evangelho foi escrito mais de 40 anos após a morte de Cristo.

O autor – Lucas era de origem pagã (gentio, não judeu, veja Col 4,10-14), nascido na Antioquia, conhecia a cultura grega, dominava a língua grega com perfeição e exercia a profissão de médico (Col 4, 14). Aparece pela primeira vez na comunidade cristã, pouco depois do ano 50 d.C., em Trôade (Ásia Menor) como companheiro de Paulo em sua segunda viagem missionária. Foi companheiro inseparável de Paulo, acompanhando-o na terceira viagem (At 20, 6s), bem como nas duas vezes em que ele esteve preso em Roma (veja At 27, 1; 2Tm 4, 11).

Ainda Lucas – Podemos apontar 3 características de Lucas:

O autor era um grego culto – utiliza-se de um rico vocabulário com termos não usuais (261 palavras só aparecem neste evangelho), além do prólogo do texto (Lc 1, 1-4), característica de redações gregas;

O autor é perito em medicina – em diversas situações em que apareciam pessoas doentes, o Lucas fornece mais detalhes que os outros textos.

O autor é também discípulo e companheiro de Paulo - existe bastante afinidade entre os textos de Lucas e Paulo. Existem 103 vocábulos comuns que só aparecem nos escritos desses dois discípulos no Novo Testamento.

Não era apóstolo nem testemunha dos atos de Jesus (não conheceu Cristo) – o próprio autor admite (Lc 1, 1-4) que redigiu seu Evangelho a partir de dados obtidos pela tradição da Igreja.

Atos dos Apóstolos – Além de seu Evangelho, Lucas também é o autor dos "Atos dos Apóstolos" (livro do Novo Testamento que é editado em nossas Bíblias após os 4 Evangelhos, descrevendo a pregação dos apóstolos e a formação das primeiras comunidades cristãs). Na verdade, Lucas chama o Evangelho de primeiro livro e o Atos dos Apóstolos de segundo livro (veja em At 1,1).

(na próxima semana falaremos sobre o segundo Evangelho)

VOCÊ SABIA QUE ...

... a pregação de Cristo se deu entre os anos 27 e 30, enquanto que Lucas ingressou na comunidade após o ano 50 d.C. (portanto mais de 30 anos depois). Sua atuação se deu apenas como companheiro de Paulo em suas viagens, portanto distanciado da comunidade dos apóstolos em Jerusalém. Também não conheceu Maria, mãe de Jesus, que provavelmente deve ter morrido antes do ano 40. Portanto, não é correto afirmar que Lucas "ouviu da própria mãe de Jesus" os fatos sobre o nascimento e infância de Cristo narrados em seu Evangelho.