sábado, 18 de setembro de 2010

As riquezas são para o bem de todos


A liturgia da missa deste domingo faz uma reflexão sobre o lugar que o dinheiro e os outros bens materiais devem assumir na nossa vida: os discípulos de Jesus devem evitar que a ganância ou o desejo imoderado do lucro manipulem as suas vidas; em contrapartida, são convidados a procurar os valores do “Reino”.

 

O administrador astuto – à primeira vista, a história contada por Jesus parece um elogio à pessoa desonesta: um administrador é denunciado ao patrão porque está gerenciando mal os negócios; é chamado e sumariamente demitido, sendo-lhe solicitado que prestasse contas da sua administração. O administrador sabe que naquele momento o seu futuro está em jogo: pergunta-se o que fazer, pesa os prós e contras. Tem a idéia de chamar os devedores e perdoar-lhes parte das dívidas, desde que atestem ter uma dívida menor do que a real, pois desta forma, quando perdesse seu emprego, teria amigos que o receberiam de braços abertos em suas casas. E o próprio Jesus elogia a esperteza do administrador! 

 

Elogio ao desonesto? – A interpretação popular dessa história traz muitos problemas para os pregadores, pois, aparentemente, Jesus está elogiando quem agisse de maneira desonesta. Tal interpretação é moralmente inaceitável, por isso temos que olhar bem a história. Também é preciso levar em consideração que ninguém que tivesse sido trapaceado de uma forma tão gritante, iria elogiar o trapaceiro: a dívida do primeiro homem era correspondente a 3.650 litros de azeite e ficou reduzida a 1.825 litros; o segundo homem devia 27,5 toneladas de trigo e a redução da dívida fez com que ele pagasse 5,5 toneladas a menos! Se o patrão faz um elogio é porque não foi prejudicado nessa operação. Ou seja, certamente o administrador é que deixou de ganhar o que estava acostumado a lucrar com as comissões sobre os negócios.

 

Juros e ágio – Para entender melhor esse contexto, é bom saber que os documentos da época atestam que, frequentemente, se usava o sistema aqui relatado. Como a cobrança de juros era proibida pela Lei, o administrador embutia o ágio na "nota promissória". Na verdade, os administradores deviam entregar ao patrão uma determinada quantia; o que conseguissem a mais ficava com eles. O administrador da história, em vez de se transformar em agiota dos devedores, renunciou à parte que lhe cabia no negócio. Ou seja, foi esperto, porque percebeu que no futuro, mais do que dinheiro, precisaria de amigos. Renunciou ao dinheiro para conquistar amigos.

 

Esperteza – O patrão "elogiou" o administrador desonesto, por sua esperteza! A palavra grega aqui traduzida por "esperteza" significa uma estratégia prática, visando alcançar um fim determinado. Nada tem a ver com a virtude de agir com justiça. Assim, embora possa parecer que a desonestidade estivesse sendo valorizada no relato do evangelista, a interpretação mais exegética diz que o que deve ser imitado não é a desonestidade, mas o bom senso na administração dos bens materiais.

 

Escolha prudente - “Usem o dinheiro injusto para fazer amigos, e assim, quando o dinheiro faltar, os amigos receberão vocês nas moradas eternas”. Jesus ensina o caminho para transformar a riqueza desonesta em uma riqueza boa; aconselha a fazer uma escolha prudente, pois ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro. Não dá para servir a Deus no domingo e, nos outros dias da semana, trabalhar só para amealhar bens e usufruir deles sem discernimento. Deus é partilha, é ajuda ao que precisa, é perdão à dívida do outro; o dinheiro nos faz pensar apenas nos nossos interesses, a preocuparmo-nos em acumular fortunas, guardar tudo para si e não distribuir nada a ninguém.

 

Embora seja possível discutir e debater sobre interpretações minuciosas desse trecho do Evangelho de Lucas, uma coisa é inegável: Jesus quer advertir os seus seguidores sobre a tentação de escravizar-se com o dinheiro e, ao mesmo tempo, exigir que a partilha material seja ponto marcante da vivência dos seus discípulos!

sábado, 11 de setembro de 2010

O Filho Pródigo


A parábola do filho pródigo mostra a paternal misericórdia de Deus para com a fraqueza humana. Apresentamos parte do sermão proferido (dezembro de 399) por Santo Agostinho que trata principalmente do arrependimento humano e do perdão de Deus:

 

O homem que tem dois filhos é Deus que tem dois povos: o filho mais velho é o povo judeu; o mais novo, os gentios. O patrimônio que este recebeu do Pai é a inteligência, a mente, a memória, o engenho e tudo o que Deus nos deu para que O conhecêssemos e Lhe déssemos culto. Tendo recebido este patrimônio, o filho mais novo "partiu para um país muito distante". Distância significa: o esquecimento de seu Criador. "Dissipou sua herança vivendo dissolutamente": gastando e não ajuntando; malbaratando tudo o que tinha e não adquirindo o que não tinha, isto é, consumindo toda sua capacidade em luxúria, em ídolos, em todo tipo de desejos perversos, aos que o texto denominou meretrizes.

 

Não é de admirar que essa orgia acabasse em fome. Fome não de pão visível, mas da verdade invisível. E, por causa da fome, "foi pôr-se a serviço de um dos senhores daquela região": entenda-se o diabo, o senhor dos demônios, sob cujo poder caem todos os curiosos.

 

À margem de Deus, por entregar-se a seus próprios recursos, foi submetido à servidão e lhe tocou o ofício de apascentar porcos, o que significa a servidão mais extrema e imunda que costuma alegrar os demônios: não foi por acaso que o Senhor, quando expulsou a legião dos demônios, permitiu que entrassem na piara de porcos.

 

Alimentava-se então das vagens de porcos sem poder saciar-se. Vagens são as vistosas doutrinas do mundo: servem para ostentar, mas não para sustentar; alimento digno para porcos, mas não para homens: próprias para dar deleitação aos demônios, mas não justificação aos fiéis.

 

Até que, por fim, tomou consciência do lugar em que tinha caído; do quanto tinha perdido; Quem tinha ofendido e a quem se tinha submetido. Reparai no que diz o Evangelho: "Entrando em si..."; primeiramente, voltou-se para si e só assim pôde voltar para o pai. Voltando para si mesmo, encontrou-se miserável: "Quantos empregados, diz ele, há na casa de meu pai, que têm pão em abundância, e eu, aqui, morrendo de fome!"

 

Levantou-se e voltou. Ele, caído por terra depois de contínuos tropeços. O pai o vê ao longe e sai-lhe ao encontro. É dele que fala o Salmo: "Entendeste meus pensamentos de longe" (Sl 139,2). Que pensamentos? Aqueles que o filho tinha em seu interior: "Levantar-me-ei e irei a meu pai, e dir-lhe-ei: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como a um dos teus empregados". Ele ainda nada tinha dito, só pensava em dizer. O pai, porém, ouvia como se o filho já o estivesse dizendo.

 

Embora tivesse ainda somente a disposição de falar ao pai, cogitando em seu interior: "Levantar-me-ei e irei a meu pai, e dir-lhe-ei...", o pai, que de longe já conhece essas cogitações, foi ao seu encontro.

 

Que significa "ir ao encontro" senão antecipar-se pela misericórdia? Pois, "estava ainda longe, quando seu pai o viu, e, movido pela misericórdia, correu-lhe ao encontro". Por que foi movido pela misericórdia? Porque o filho tinha confessado sua miséria. "E correndo-lhe ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço", isto é, pôs o braço sobre o pescoço dele.

 

E o pai ordena que o vistam com a primeira veste, aquela que Adão perdera ao pecar. Tendo recebido o filho em paz, tendo-o beijado, ordena que lhe dêem uma veste: a esperança de imortalidade, conferida no batismo. Ordena que lhe dêem um anel, penhor do Espírito Santo; calçado para os pés, como preparação para o anúncio do Evangelho da paz, para que sejam formosos os pés dos que anunciam a boa nova.

 

Estas coisas Deus faz através de seus servos, isto é, os ministros da Igreja. Acaso eles podem, por si próprios, dar veste, anel e calçados? Não, apenas cumprem seu ministério, desempenham seu ofício; quem dá é Aquele de cujo depósito e de cujo tesouro são extraídos estes dons.

 

Mandou também matar o bezerro cevado, isto é, que fosse admitido à mesa em que o alimento é Cristo morto. Mata-se o bezerro para todo aquele que, de longe, vem para a Igreja, na qual se prega a morte de Cristo e no Seu corpo o que vem é admitido. Mata-se o bezerro cevado porque o que se tinha perdido foi encontrado.

sábado, 4 de setembro de 2010

As condições para ser seguidor de Jesus


No Evangelho das missas deste domingo (Lc 14, 25-33) Jesus se dirige às multidões com palavras bastante duras: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo”.

 

Caminho – Com estas palavras Ele traça as coordenadas do “caminho do discípulo”: é um caminho em que o “Reino” deve ter a primazia sobre as pessoas que amamos, sobre os nossos bens, sobre os nossos próprios interesses e esquemas pessoais. Quais são então, na perspectiva de Jesus, as exigências fundamentais para quem quer seguir o “caminho do discípulo” e chegar a sentar-se à mesa do “Reino”? Jesus põe três exigências, todas elas subordinadas ao tema da renúncia.

 

A primeira – Exige o preferir Jesus à própria família.  A este propósito, Lucas põe na boca de Jesus uma expressão muito forte. Literalmente, podemos traduzir o verbo “misséô” como “odiar” (“quem não odeia o pai, a mãe… não pode ser meu discípulo”). À primeira vista, a leitura pode nos chocar! Pode até parecer que Jesus esteja ensinando algo que não condiz muito com os ensinamentos cristãos. Para ser discípulo, é preciso odiar alguém? Não. Segundo a maneira semita de falar (no caso de Jesus, ele falava o aramaico), “odiar” significa “pôr em segundo lugar algo porque, entretanto, apareceu na vida da pessoa um valor que ainda é mais importante”. É evidente que Jesus não está pedindo o ódio a ninguém, muito menos a esses a quem nos ligam laços de amor… Está, sim, exigindo que as relações familiares não nos impeçam de aderir ao “Reino”. Se for necessário escolher, a prioridade deve ser do “Reino”.

 

A segunda – Exige a renúncia à própria vida. O discípulo de Jesus não pode viver fazendo opções egoístas, colocando em primeiro lugar os seus interesses, os seus esquemas, aquilo que é melhor para ele; mas tem de colocar a sua vida ao serviço do “Reino” e fazer da sua vida um dom de amor aos irmãos, se necessário até a morte. Foi esse, de fato, o caminho de Jesus e o discípulo é convidado a imitar o mestre.

 

A terceira – Exige a renúncia aos bens. Jesus sabe que os bens podem facilmente transformar-se em deuses, tornando-se uma prioridade, escravizando o homem e levando-o a viver em função deles; assim sendo, que espaço fica para o “Reino”? Por outro lado, dar prioridade aos bens significa viver de forma egoísta, esquecendo as necessidades dos irmãos. Ora, viver na dinâmica do “Reino” implica viver no amor e deixar que a vida seja dirigida por uma lógica de amor e de partilha… Pode-se, então, viver no “Reino” sem renunciar aos bens?

 

Exigências – Com este rol de exigências, fica claro que a opção pelo “Reino” não é um caminho de facilidade e, por isso, talvez não seja um caminho que todos aceitem seguir. É por isso que Jesus recomenda que as implicações e as consequências da opção pelo “Reino” sejam bem pesadas. A parábola do homem que, antes de construir uma torre, pensa se tem com que terminar a construção e a parábola do rei que, antes de partir para a guerra, pensa se pode opor-se a outro rei com forças superiores, convidam os candidatos a discípulos a tomar consciência da sua força, da sua vontade, da sua decisão em corresponder aos desafios do Evangelho e em assumir, com radicalidade, as exigências do “Reino”.

sábado, 28 de agosto de 2010

Humildade e hospitalidade


O Evangelho deste domingo coloca-nos no ambiente de um banquete em casa de um fariseu. Deve tratar-se da refeição solene de sábado, que se tomava por volta do meio-dia, na volta da sinagoga, para a qual eram convidados hóspedes. Durante a refeição, discutia-se as leituras escutadas durante o ofício sinagogal.

 

Fariseus – Os fariseus formavam um dos principais grupos religioso-político da sociedade palestina dessa época. Dominavam os ofícios sinagogais e estavam presentes em todos os passos religiosos dos israelitas. A sua preocupação fundamental era transmitir a todos o amor pela Torah (cinco primeiros livros da Bíblia), quer escrita, quer oral. Tratava-se de um grupo sério, verdadeiramente empenhado na santificação do Povo de Deus; mas, ao absolutizarem a Lei, esqueciam as pessoas e passavam por cima do amor e da misericórdia. Consideravam-se “puros” e desprezavam o povo do país, que por causa da ignorância e da vida dura que levava, não podia cumprir integralmente os preceitos da Lei.

 

Banquete – Conscientes das suas capacidades, da sua integridade e superioridade, não eram propriamente modelos de humildade. Isso talvez explique o ambiente de luta pelos lugares de honra que o Evangelho faz referência. É bom lembrar, que estamos no contexto de um “banquete”. O “banquete”, no mundo semita, é o espaço do encontro fraterno, o lugar onde os convivas partilham do mesmo alimento e estabelecem laços de comunhão, de proximidade, de familiaridade, de irmandade. Jesus aparece, muitas vezes, envolvido em banquetes, não porque fosse “comilão e beberrão”, mas porque, ao ser sinal de comunhão, de encontro, de familiaridade, o banquete anuncia a realidade do “reino”.

 

Reino – As palavras que Jesus dirigiu aos convidados que disputavam os lugares de honra não era exatamente uma novidade, pois já o Antigo Testamento aconselhava a não ocupar os primeiros lugares. Mas o que era uma exortação moral no Antigo Testamento, nas palavras de Jesus converte-se numa apresentação do “Reino” e da lógica do “Reino”: o “Reino” é um espaço de irmandade, de fraternidade, de comunhão, de partilha e de serviço, que exclui qualquer atitude de superioridade, de orgulho, de ambição, de domínio sobre os outros; quem quiser entrar nele, tem que se fazer pequeno, simples, humilde e não ter pretensões de ser melhor, mais justo ou mais importante do que os outros.

 

Lógica do Reino – Jesus põe em evidência – em nome da lógica do “Reino” – a prática de convidar para o banquete apenas os amigos, os irmãos, os parentes, os vizinhos ricos. Os fariseus escolhiam cuidadosamente os seus convidados para suas refeições: não era conveniente convidar alguém de “nível menos elevado”, pois a “comunidade de mesa” criava vínculo entre os convidados e não era interessante estabelecer laços com gente “desclassificada e pecadora” (por exemplo, nenhum fariseu se sentava à mesa com alguém pertencente ao “povo da terra”, desclassificado e pecador).

 

Retribuição – Por outro lado, também os fariseus tinham a tendência – própria de todas as pessoas, de todas as épocas e culturas – de convidar aqueles que podiam retribuir da mesma forma… A questão é que, dessa forma, tudo se tornava um intercâmbio de favores e não gratuidade e amor desinteressado.

 

Convidados – Jesus denuncia – em nome do “Reino” – esta prática; mas vai mais além e apresenta uma proposta verdadeiramente subversiva… Segundo Ele, é preciso convidar “os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos”. Os cegos, coxos e aleijados eram considerados pecadores notórios, amaldiçoados por Deus e por isso estavam proibidos de entrar no Templo (2Sm 5,8), para não profanar esse lugar sagrado (Lv 21,18-23). No entanto, são esses que devem ser os convidados para o “banquete”.

 

Verdadeiro banquete – Já percebemos que, aqui, Jesus já não está simplesmente falando dessa refeição comida em casa de um fariseu, na companhia de gente distinta; mas está falando daquilo que esse “banquete” anuncia e prefigura: o banquete do “Reino”.

 

Perfil do Reino – Jesus traça, portanto, os contornos do “Reino”: ele é como um “banquete”, no qual os convidados estão unidos por laços de familiaridade, de irmandade, de comunhão. Para esse “banquete”, todos – sem exceção – são convidados (inclusive aqueles que a cultura social e religiosa tantas vezes exclui e marginaliza). As relações entre os que aderem ao banquete do “Reino” não serão marcadas pelos jogos de interesses, mas pela gratuidade e pelo amor desinteressado; e os participantes do “banquete” devem despir-se de qualquer atitude de superioridade, de orgulho, de ambição, para se colocarem numa atitude de humildade, de simplicidade, de serviço.

sábado, 21 de agosto de 2010

Quantos se salvarão?


No tempo de Jesus, a questão da salvação era muito debatida nos ambientes judaicos. Para os fariseus, a “salvação” era reservada apenas aos filhos de Abraão (povo judeu), enquanto que as nações gentias (povos pagãos) seriam destruídas e condenadas. Este é o assunto tratado por Jesus no Evangelho deste domingo (Lc 13, 22-30). Vamos fazer uma reflexão, usando o comentário do Pe. Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia de Roma.

 

Quantos? – Existe uma questão que sempre marcou os fiéis: são muitos ou poucos os que se salvam? Em certas épocas, este problema se tornou tão agudo que levou algumas pessoas em uma angústia terrível. O Evangelho deste domingo nos informa que um dia se propôs a Jesus este problema: “Enquanto caminhava para Jerusalém, alguém lhe disse: ‘Senhor, são poucos os que se salvam? ’”. A pergunta, como se vê, trata do número, sobre quantos se salvam: muitos ou poucos? Jesus, em sua resposta, muda o centro da atenção de “os que se salvam” para “como salvar-se”, isto é, entrando “pela porta estreita”.

 

Sabedoria – É a mesma atitude que observamos com relação ao retorno final de Cristo. Os discípulos perguntam quando acontecerá a volta do Filho do Homem, e Jesus responde indicando como preparar-se para essa vinda, o que fazer na espera (Mt 24, 3-4). Esta forma de atuar de Jesus não é estranha ou descortês. Simplesmente é a maneira de atuar de alguém que quer educar seus discípulos para que passem do plano da curiosidade ao da verdadeira sabedoria; das questões sem importância, que seduzem as pessoas, aos verdadeiros problemas que importam na vida.

 

Absurdos – Neste ponto, já podemos entender o absurdo daqueles que crêem saber até o número preciso dos salvos: cento e quarenta e quatro mil. Este número, que aparece no Apocalipse, tem um valor puramente simbólico (12 ao quadrado, o número das tribos de Israel, multiplicado por mil) e se explica imediatamente com a expressão que lhe segue: “uma multidão imensa que ninguém poderia contar” (Ap 7, 4.9).

 

Lotado – Também, se esse fosse de verdade o número dos salvos, então já podemos fechar a porta, nós e eles. Como na entrada dos estacionamentos, na porta do paraíso deve estar pendurada, há muito tempo, a placa de “lotado”.

 

Método – Para Jesus, não interessa tanto revelar-nos o número dos que serão salvos, mas a forma de salvar-se. Sobre a salvação, Ele nos diz duas coisas: uma negativa (não necessária) e outra positiva (necessária).

 

Não é necessário – ou em todo caso não basta, o fato de pertencer a um determinado povo, a uma determinada raça, tradição ou instituição, ainda que fosse o povo escolhido do qual provém o Salvador.

 

É necessário – O que situa no caminho da salvação não é um certo título de propriedade (“Comemos e bebemos em tua presença...”), mas uma decisão pessoal seguida de uma coerente conduta de vida. Isso está mais claro ainda no texto de Mateus, que contrapõe dois caminhos e duas entradas, uma estreita e outra ampla (Mateus 7, 13-14).

 

Caminhos – Por que esses dois caminhos são chamados respectivamente de caminho “amplo” e “estreito”? Será que, talvez, o caminho do mal seja sempre fácil e agradável de percorrer e o caminho do bem, sempre duro e fatigoso? Aqui é preciso estar atento para não cair na freqüente tentação de achar que tudo acontece magnificamente bem, aqui embaixo, aos malvados, e tudo vai sempre mal para os bons.

 

Amplo e estreito – O caminho dos ímpios é amplo, sim, mas só no começo; na medida em que se adentram nele, ele se torna estreito e amargo. E em todo caso é estreitíssimo no final, porque se chega a uma rua sem saída. O desfrute que neste caminho se experimenta, tem como característica que diminui na medida em que é provado, até gerar náusea e tristeza. O caminho dos justos, ao contrário, é estreito no começo, quando se empreende, mas depois se transforma em uma via espaçosa, porque nela se encontra esperança, alegria e paz no coração.

sábado, 14 de agosto de 2010

Assunção de Maria


Neste domingo, a Igreja comemora a Assunção de Maria. O Evangelho lido é Lc 1, 39-56, que descreve a visita de Maria à sua prima Isabel e o Magnificat.

 

Uma nova reflexão – Em tempos que a mídia e ONGs fazem campanha pró-aborto e a Lei permite a destruição de embriões congelados, vamos refletir o Evangelho da visitação com outra perspectiva, que não apenas o carinho e a solicitude de Maria para com sua prima.

 

O primeiro milagre de Jesus – Quando se fala no primeiro milagre de Jesus, logo se pensa nas bodas de Caná da Galiléia, onde ele converteu a água em vinho a pedido de sua Mãe (Jo 2). Porém, muito antes desse momento, a Bíblia nos relata outro milagre operado por Jesus, quando ainda estava no ventre de Maria Santíssima: a santificação de João Batista, que estava no ventre de Isabel.

 

Visita – Maria soube, pelo anjo Gabriel, que sua parenta Isabel, uma anciã estéril, tinha ficado grávida e já estava no sexto mês de gestação, pois “para Deus nada é impossível” (Lc 1,36-37). Depois de aceitar a sua própria gravidez (“Eis a serva do Senhor...” - Lc 1,38), Maria foi amorosa e apressadamente (Lc 1,39) ao encontro da outra gestante, Isabel, que morava em uma cidade de Judá. Acredita-se que essa cidade seja Ain-Karim, situada seis quilômetros a oeste de Jerusalém.

 

Distância – Ora, a distância entre Nazaré – onde estava Maria – e Jerusalém é de aproximadamente 140 quilômetros. Como ela viajou “às pressas”, talvez tenha demorado uns seis dias para chegar a Ain-Karim.

 

Embrião – Ao entrar na casa de Zacarias e saudar Isabel, o menino Jesus tinha, então, alguns dias de vida gestacional – um embrião. Era tão pequeno que nem sequer havia se formado o coração (que só começa a pulsar entre o 18º e o 21º dia). Nem estava ainda presente o tubo neural, que daria origem ao sistema nervoso. Estava com a idade de um embrião que ainda não se fixou no útero, um embrião “pré-implantatório”. Tinha o tamanho e a aparência daqueles embriões humanos que estão congelados em alguma clínica, porque “sobraram” no processo de fertilização “in vitro”. Era semelhante àqueles que, hoje, a Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005) permite que sejam destruídos, a fim de que suas células sejam usadas em pesquisa ou terapia. Minúsculo e ainda sem uma aparência atraente, Jesus operou um milagre.

 

Maternidade – Isabel, com um grande grito, exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite?” (Lc 1,42-43). Note-se que o menino Jesus ainda não nascera, mas Isabel, “repleta do Espírito Santo” (Lc 1,41) chama Maria “a mãe do meu Senhor” e não “a futura mãe do meu Senhor”. De fato, a maternidade começa com a concepção e não com o parto. “Pois quando a tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu em meu ventre” (Lc 1,44). Cumpriu-se aquilo que o anjo Gabriel havia anunciado a Zacarias: o menino “ficará pleno do Espírito Santo ainda no seio de sua mãe” (Lc 1,15).

 

Milagre – Esse milagre foi operado por Jesus com a mediação de Maria, assim como ocorreria anos depois com o milagre de Caná. Mas o milagre da visitação supera em muito o milagre das bodas. Por quê? Porque o primeiro ocorreu na ordem da graça, ao passo que o segundo ocorreu na ordem da natureza. E a graça – que é a vida de Deus em nós – é imensamente superior à natureza.

 

Jesus e João – Comparemos agora o Autor do milagre (Jesus) com o seu beneficiário (João Batista). Jesus é um pequeno embrião de alguns dias. João já é um bebê grande, com seis meses de vida de gestação. Seus órgãos já estão todos formados. Encolhido no ventre de Isabel, ele já faz sentir sua presença quando se move.

 

Jesus Deus – Muitas das pessoas que não teriam escrúpulos em destruir fetos com a idade de Jesus (alguns dias) teriam dúvidas em fazer isso com um bebê da idade de João (seis meses). No entanto, o pequeno santificou o grande. Toda a alegria que inundou a casa de Isabel e que culminou com o cântico de Nossa Senhora (o “Magnificat”) teve como causa aquele minúsculo ser humano, que também é Deus, oculto no ventre de Maria.

sábado, 7 de agosto de 2010

Vigiai e estai preparados


A Palavra de Deus que a liturgia deste domingo nos propõe convida-nos à vigilância: o verdadeiro discípulo não vive de braços cruzados, numa existência de comodismo e resignação, mas está sempre atento e disponível para acolher o Senhor, para escutar os seus apelos e para construir o “Reino”. O Evangelho das missas deste domingo começa com uma referência ao “verdadeiro tesouro”, que os discípulos devem procurar e que não está nos bens deste mundo: trata-se do “Reino” e dos seus valores. A questão fundamental é: como descobrir e guardar esse “tesouro”? A resposta é dada em três “parábolas”, que apelam à vigilância.

 

A primeira parábola convida a ter os rins cingidos e as lâmpadas acesas (o que parece aludir a Ex 12,11 e à noite da primeira Páscoa, celebrada de pé e “com os rins cingidos”, antes da viagem para a liberdade), como homens que esperam o senhor que volta da sua festa de casamento. Os que creem são, assim, convidados a estarem preparados para acolher a libertação que Jesus veio trazer e que os levará da terra da escravidão para a terra da liberdade; e são também convidados a acolherem “o noivo” (Jesus) que veio propor à “noiva” (os homens) a comunhão plena com Deus (a “nova aliança”, representada na teologia judaica através da imagem do casamento).

 

A segunda parábola aponta para a incerteza da hora em que o Senhor virá. A imagem do ladrão que chega a qualquer hora, sem ser esperado, é uma imagem estranha para falar de Deus; mas é uma imagem sugestiva para mostrar que o discípulo fiel é aquele que está sempre preparado, a qualquer hora e em qualquer circunstância, para acolher o Senhor que vem.

 

A terceira parábola parece dirigir-se aos responsáveis da comunidade, que devem permanecer fiéis às suas tarefas de animação e de serviço: se algum deles descuida de suas responsabilidades no serviço aos irmãos e usa as funções que lhe foram confiadas de forma negligente ou em benefício próprio, será castigado. A última afirmação (“a quem muito foi dado, muito será exigido, a quem muito foi confiado, mais se lhe pedirá – vers. 48b) é claramente dirigida aos responsáveis da comunidade; mas pode aplicar-se a todos os que receberam dons materiais ou espirituais.

 

Reflexão – O Evangelho nos propõe refletir que:

♦ A vida dos discípulos de Jesus precisa ser uma espera vigilante e atenta, pois o Senhor, permanentemente, vem ao nosso encontro e nos desafia a nos despirmos das cadeias que nos escravizam e a percorrermos, com Ele, o caminho da libertação. O que é que nos distrai, que nos prende, que nos aliena e que nos impede de acolher esse dom contínuo de vida?

♦ Ser cristão não é um trabalho “das 8 às 18h”, ou um “hobby” de fim-de-semana; é um compromisso em tempo integral, que deve marcar cada pensamento, cada atitude, cada opção, vinte e quatro horas por dia… Estou consciente dessa exigência e suficientemente atento para marcar, com o selo do meu compromisso cristão, todas as minhas ações e palavras?

♦ Viver a Palavra é um constante desafio Estou suficientemente atento e disponível para acolher e responder aos apelos que Deus me faz e aos desafios que se apresentam através das necessidades dos irmãos? Estou suficientemente atento e disponível para escutar os sinais, através dos quais Deus me apresenta as suas propostas?

♦ Por vezes, os discípulos de Jesus manifestam a convicção de que tudo vai de mal a pior, que esta geração de tão poucos valores está perdida e que não é possível fazer mais nada para tornar o mundo mais humano e mais feliz… Isso não será, apenas, uma forma de mascararmos o nosso egoísmo e comodismo e de nos recusarmos a ser protagonistas empenhados na construção desse “Reino” que é o tesouro mais valioso?

♦ A Palavra de Deus deste final de semana contém uma indagação especial a todos aqueles que desempenham funções de responsabilidade, quer na Igreja, quer no governo, quer nas autarquias, quer nas empresas, quer nas repartições… Convida cada um a assumir as suas responsabilidades e a desempenhar, com atenção e empenho as funções que lhe foram confiadas. A todos aqueles a quem foi confiado o serviço da autoridade, a Palavra de Deus pergunta sobre o modo como nos comportamos: como servos que, com humildade e simplicidade cumprem as tarefas que lhes foram confiadas, ou como ditadores que manipulam os outros a seu bel‑prazer? Estamos atentos às necessidades – sobretudo dos pobres, dos pequenos e daqueles que são frágeis – ou instalamo-nos no egoísmo e no comodismo e deixamos que as coisas se arrastem, sem entusiasmo, sem vida, sem desafios, sem esperança?