sábado, 31 de março de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 11 – O problemas do Evangelho de Marcos

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 31/03/2001

Os textos primitivos – Os textos cristãos tinham o objetivo único de catequizar. O autor, assim que concluía o seu manuscrito, o enviava à comunidade a ser catequizada, que o utilizava como leitura em suas reuniões. Quando o texto era considerado importante (de autoria de um dos apóstolos ou discípulos conhecidos), ele era copiado (manualmente) e enviado à outra comunidade. Assim, até a invenção da imprensa (século 16) os textos mais concorridos eram reproduzidos centenas de vezes, ocorrendo um acúmulo de pequenos erros de reprodução. Atualmente são conhecidas mais de 2500 cópias dos Evangelhos (5.000 do Novo Testamento), todas escritas após o século IV. Estes textos apresentam cerca de 200.000 variações causadas pelas sucessivas cópias que alteraram o texto desde pequenas omissões de artigos até inclusões (ou cortes) de capítulos inteiros.

Uma agravante – O Evangelho de Marcos contém um fator agravante em sua composição. Existem várias razões para afirmarmos que o texto de Marcos passou por várias versões, possivelmente adições do próprio autor, o que teria gerado diversas variantes entre os textos contidos nas comunidades cristãs.

O texto que lemos hoje – Estes fatores fizeram com que o Evangelho de Marcos que encontramos hoje em nossas Bíblias (2º Evangelho) tenha chegado até nós com uma redação mutilada, cortada, resultando em histórias truncadas, sem continuidade, com mudanças repentinas de ambientação. Sem qualquer dúvida, trata-se do resultado das diversas versões do texto, somados aos problemas com os copistas. Se você quer receber um estudo completo sobre as quatro razões que levam os estudiosos a afirmarem a existência das diversas versões do texto de Marcos, solicite que lhe enviaremos.

Um corte – O texto de Mc 10,46 apresenta um claro corte no texto: "E eles chegaram a Jericó. Ao sair de Jericó com seus discípulos e uma multidão considerável, o cego Bertimeu, ...". . Fica claro que, no trecho de Mc 10,46, a primeira frase ("E eles chegaram a Jericó") só tem sentido caso venha a preceder uma história do ocorrido em Jericó.

Uma inclusão – Existem inúmeras falhas de composição, que nos levam a concluir por inclusões no texto. Eis algumas: nos versículos 3, 20-21, Jesus vem para a casa e a multidão se aglomera, não permitindo que eles tomem a refeição, quando chegam seus familiares. Neste ponto foi inserido o versículo 21, com problemas com a continuidade da história, e a descrição do episódio com os escribas (vers. 22-30). A história continua no versículo 31, quando a sua mãe e seus irmãos estão do lado de fora e a multidão não permite vê-lo. É evidente a inserção da história, pois o local não é o mesmo (onde estão a casa, a multidão e a família de Jesus?), e no texto correspondente de Mateus (Mt 12, 46) não existe tal envolvimento com os escribas.

Mais inclusões - Um outro fato semelhante acontece no relato da ressurreição da filha de Jairo (Mc 5, 21-43), onde, no decorrer da história, são inseridos os versículos Mc 5, 25-34 que descrevem a cura de uma mulher. Em Mc 8, 1-10 é repetida a multiplicação dos pães que já fora relatada no capítulo 6 (Mc 6, 34-44). Com toda certeza as duas descrições se referem ao mesmo fato, transcritas em duplicidade em uma das recomposições do texto, pois a seqüência dos fatos é a mesma.

O final do texto – O texto de Marcos termina em Mc 16, 8; o texto seguinte foi adicionado posteriormente por outra pessoa, sendo redigido num vocabulário e estilo de escrita muito diferentes do Evangelho. Na verdade, os antigos manuscritos apresentam 4 formas para o encerramento do Evangelho de Marcos.

(na próxima semana falaremos sobre o segundo Evangelho)

VOCÊ SABIA QUE ...

... existe uma carta de Clemente de Alexandria (escritor eclesiático grego e Padre apostólico da Igreja de Alexandria, viveu entre 150 e 215) enviada a um tal Theodore, que contém um fragmento inédito do Evangelho de Marcos. O texto (de autoria do próprio Marcos) conta que Jesus ressuscitou um morto em Betania (talvez Lázaro) e descreve o que aconteceu em Jericó (o texto que falta em Mc 10,46). Este trecho é conhecido como "Evangelho secreto de Marcos". Se você quer conhecer a carta de Clemente e o texto de Marcos solicite (carta ou E-mail) que lhe enviaremos gratuitamente.

sábado, 24 de março de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 10 – O Texto do Evangelho de Marcos

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 24/03/2001


As Fontes – Para redigir seu Evangelho (em grego), Marcos se fundamentou na catequese de Pedro e em histórias correntes na comunidade de Roma. Dos 661 versículos do Evangelho de Marcos, aproximadamente, 596 foram obtidos dos discursos de Pedro e 65 (a Paixão) transcritos de perícopes. Podemos dizer que é o "Evangelho de Pedro, escrito por Marcos".

O texto – O texto mostra claramente um judeu escrevendo para não judeus. O autor tem total conhecimento das tradições israelitas, explicando aos leitores os rituais de mãos, taças, jarros, pratos etc. (veja Mc 7, 3s), a datas judaicas (veja Mc 14, 12) etc.. Cita constantemente palavras judaicas, explicando o seu significado : Boanerges (filhos do trovão, em Mc 3, 17), Talítha Koum (filha, ordeno-te: levanta-te, em Mc 5, 41); Ephphata (abre-te, em Mc 7, 34); Abba (Pai, em Mc 14, 36); Eloí, Eloí, lama sabachthani (Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste, em Mc 5, 34).

O modo de escrever – Marcos era um judeu que ouvia a catequese de Pedro, em aramaico, e transcrevia em grego, uma língua estrangeira que aprendeu, não na escola, mas no convívio diário com mercadores e artesãos. Por isso o texto de Marcos é escrito num grego com vocabulário pobre, as frases são mal ligadas, com grande variação nos tempos dos verbos, ou seja, trata-se de uma narrativa muito próxima da pregação oral. Estas deficiências, porém, contribuem para dar vida à narrativa, aproximando-a bastante do estilo oral. A designação de que trata-se de um Evangelho "colhido ao vivo" é bastante pertinente. Com um estilo simplíssimo de escrever, repete cansativamente algumas palavras, não se utiliza de frases subordinadas, fazendo com que sua narração se constitua de proposições independentes ligadas pela conjunção "e (em grego kai)"; as frases são mal construídas, defeituosas, incompletas e incorretas.

O conteúdo – O Evangelho de Marcos pode ser dividido nas seguintes partes: introdução, onde descreve a pregação de João Batista e Batismo de Jesus (até Mc 1,13) e ministério na Galiléia e ministério na Judéia. Nestas 3 partes o autor usa como fonte de informações a catequese de Pedro; na descrição da Paixão e morte usou perícopes extraídas da tradição oral. O Evangelho termina com uma ampliação (Mc 16,9-20), que é um texto adicionado posteriormente (século II) à redação original, por um outro autor.

(na próxima semana falaremos sobre os problemas do Evangelho de Marcos)


VOCÊ SABIA QUE ...

... no Evangelho de Marcos a palavra "logo" é repetida 42 vezes, sendo 11 no 1º capítulo; "começou a ..., pôs-se a ..." 26 vezes; e que 78% das frases de Marcos começam com "e" ? No trecho Mc 4,3-9 todas as frases começam com "e"; em Mc 3,1-26 a partícula "e" aparece 30 vezes. Se você se interessa pelo assunto e deseja receber (gratuitamente) um estudo completo sobre os problemas textuais do Evangelho de Marcos, solicite por E-mail ou carta.

sábado, 17 de março de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 9 – O Primeiro Evangelho Escrito

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 17/03/2001


O texto – Depois da morte de Pedro, surgiu nas comunidades cristãs um texto anônimo, que fazia uma compilação completa da vida e morte de Cristo. Inúmeras testemunhas atribuem o texto a Marcos (ou João Marcos). Este texto, embora tenha sido o primeiro a ser escrito, aparece em nossas Bíblias como o 2º Evangelho.

O autor – Marcos era filho de família cristã, pertencia a linhagem sacerdotal, pois era primo do levita Barnabé (ver Col 4,10), e teria sido batizado por Pedro que o chama de "Marcos, o meu filho" (ver 1Pr 5,13). A tradição da Igreja identifica a casa dos pais de Marcos como local da Última Ceia, bem como onde se reuniram os apóstolos em Atos 1,13. Pedro ao sair do cárcere no ano 44, imediatamente se dirigiu à casa dos pais de Marcos, encontrando muitos discípulos reunidos em oração. Marcos também é identificado como o jovem que assistia a prisão de Jesus no Getsêmani (Mc 14,51s) apenas coberto com um lençol; ao ser abordado pelos soldados, deixou o lençol e fugiu nu (esta identidade pode ter alguma sustentação, afinal, quem iria se lembrar de redigir, quase 40 anos depois, um detalhe de tão pouca importância, senão o próprio autor).

Ainda Marcos – Marcos não pertenceu ao grupo dos 12 apóstolos, como também não seguia o grupo de Jesus, pois deveria ser criança nos anos de pregação (entre 27 e 30 d.C.). Aparece como ajudante de Paulo e Barnabé em sua primeira viagem apostólica no ano de 45 d.C. (veja At 13,5), desistindo no meio da viagem e fazendo com que Paulo não o aceitasse como companheiro na segunda viagem (49/50 d.C.). Doze anos mais tarde (61/63) acompanhou o apóstolo Paulo na prisão, em Roma. Também acompanhou Pedro na mesma cidade entre 63 e 64 d.C.. Em 66 d.C. Marcos aparece na Ásia, sendo recomendado por Paulo a Timóteo para que o leve consigo nas pregações, pois "ele é precioso no que toca ao ministério", indicando que Marcos deveria ser um ótimo catequista (confira em 2Tim 4,11).

São Marcos – Não se sabe exatamente qual o destino do discípulo após a morte de São Pedro e São Paulo. Alguns escritores antigos narram que ele foi para o Egito, onde fundou a sede episcopal de Alexandria (dado incerto). São Marcos é anualmente cultuado como mártir em 25 de abril; suas relíquias estão na majestosa basílica de Veneza.

Época do Evangelho – O texto foi escrito após a morte de Pedro (morto em 64, vítima da perseguição de Nero) e antes da guerra judaica (entre 68 e 71 d.C.). Assim, podemos datar o Evangelho de Marcos entre os anos de 65 e 70 d.C. (portanto de 35 a 40 anos após a morte de Cristo). Os principais testemunhos da autoria e época de composição são de Pápias (bispo de Hierápolis, na Ásia Menor, falecido em 130 d.C.), que descrevia Marcos como interprete de Pedro; Irineu (bispo de Lyon, na Gália, nasceu em 120 d.C. e morreu em 202 d.C.); Clemente de Alexandria (padre apostólico da Igreja de Alexandria no final do século II).
(na próxima semana falaremos sobre o texto do Evangelho de Marcos)

LENDO E APRENDENDO:

Se você quer conhecer o texto de Pápias, intitulado "Explicações dos Discursos do Senhor", um dos primeiros e mais preciosos textos do cristianismo, solicite por carta ou E-mail que lhe enviaremos gratuitamente (já traduzido para o português). Pápias foi bispo de Hierápolis, viveu entre os anos 60 e 130 d.C., tendo conhecido os apóstolos e discípulos e participado da formação das primeiras comunidades cristãs. Neste texto, Pápias fala sobre o Evangelho oral e o Evangelho escrito (ele considerava o primeiro mais importante), descreve o parentesco de Jesus e seus primos e atribui claramente a autoria do 1º Evangelho a Marcos.

sábado, 10 de março de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 8 – A dispersão dos Apóstolos

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 10/03/2001

O Evangelho – Como já vimos, os membros da comunidade cristã primitiva pregavam o Evangelho (Boa Nova) de Cristo em toda a Palestina. Era o Evangelho Oral. Com o objetivo de atingir outros povos, os apóstolos saíram de Jerusalém (também forçados pelas perseguições) e se fixaram em outras comunidades.

A dispersão – Tendo em mente a consolidação da mensagem cristã, os apóstolos e discípulos da Igreja primitiva foram enviados para as várias comunidades. Isto aconteceu numa data posterior ao ano de 54 d.C.

Por que 54 d.C. – No ano de 54 aconteceu uma visita de Paulo aos apóstolos em Jerusalém, conforme relatado na Carta de São Paulo aos Gálatas. Eis o texto de Gal 2,1-9: "Depois, quatorze anos mais tarde [a contar de 40 d. C. conforme Gal 1, 18-20], é que subi outra vez a Jerusalém, acompanhado de Barnabé e levando comigo Tito. Tiago, Cefas [Pedro] e João, que são considerados as colunas, reconhecendo a graça que me foi dada, deram as mãos a mim e a Barnabé em sinal de pleno acordo: nós iríamos aos pagãos e eles aos judeus."

A "História Eclesiástica" - O envio dos apóstolos é narrada em detalhes no livro "História Eclesiática" de Eusébius de Cesaréia: "Enquanto isto os santos apóstolos e discípulos de nosso Salvador foram dispersados por todo o mundo. Parthia, de acordo com a tradição foi entregue a Tomé como seu campo de trabalho, Scythia para André, Ásia para João que viveu lá por algum tempo e morreu em Éfeso. Pedro parece ter pregado para os judeus da dispersão em Pontus, Galatia, Bithynia, Capadocia e Ásia. No final viveu em Roma onde foi crucificado (por próprio pedido) de cabeça para baixo. Sobre Paulo, ele pregou o Evangelho de Cristo de Jerusalém para Illyricum, e depois foi martirizado por Nero."

Os outros – Também sabemos que Mateus permaneceu em Jerusalém, enquanto Tiago (menor) foi martirizado (apedrejamento) no ano 62. Tiago (maior) pregou em Jerusalém, Filipe foi para Hierápolis, Simão (o cananeu) foi para Pérsia e Armênia e Judas Tadeu pregou na Judéia e Samaria.

(na próxima semana falaremos sobre o primeiro Evangelho)

Lendo e Aprendendo:

Se você quer uma leitura mais profunda do livro "A História Eclesiática", escrito por Eusébius de Cesaréia, solicite por E-mail que lhe enviaremos (gratuitamente) os arquivos dos textos (em inglês). Eusebius Pamphili (viveu entre 260 e 340 d.C.) foi um estudioso bíblico, historiador, com grande influência política sobre a Igreja. Em 303 d.C. foi bispo de Cesaréia Marítima. O livro, conhecido também como "História da Igreja". trata-se, talvez, do mais importante documento histórico da Igreja.

sábado, 3 de março de 2001

A Formação dos Evangelhos: Parte 7 – O "Evangelho de Tomé"

Coluna "Ser Católico" – Jornal da Cidade – 03/03/2001

A descoberta – Em 1945 foram encontrados nas proximidades da cidade de Nag-Hammadi, no Egito, diversos manuscritos em papiro, escritos em copta, língua dos cristãos egípcios. O texto ficou conhecido como ‘Evangelho de Tomé’, tendo despertado grande interesse entre os pesquisadores do cristianismo primitivo. Este evangelho não é canônico (reconhecido pela Igreja), portanto não faz parte de nossas Bíblias, mas trata-se de uma importante descoberta histórica pois, certamente, o "Evangelho de Tomé" foi a transcrição da pregação dos primeiros cristãos (evangelho oral).

Quando foi escrito? – Existe uma grande polêmica sobre a data em que foi escrito o texto. Alguns estudiosos situam sua composição no final do primeiro século ou início do século II, enquanto que estudos mais recentes indicam a sua redação entre os anos 50 e 60 d.C. Isto coloca o "Evangelho de Tomé" como contemporâneo, ou até anterior, aos Evangelhos Canônicos, mostrando em detalhes a pregação oral.

O autor – Na primeira frase do texto, o autor se identifica como Tomé da seguinte forma: "São estas as palavras ocultas proferidas por Jesus, o vivente, e escritas por Dídimo Judas Tomé." Portanto o texto é atribuído ao apóstolo Tomé (citado na lista dos apóstolos, Mt 10,3), que pregou na Igreja da Síria.

Qual o conteúdo do Evangelho de Tomé – O texto apresenta uma lista de 114 frases atribuídas a Jesus. Não existe história, nem uma seqüência natural de fatos, nem descrições da vida ou ensinamentos de Cristo. Nada é comentado sobre o nascimento, infância, vida pública, julgamento, morte ou ressurreição de Cristo. Apenas uma coleção de pronunciamentos iniciados pelas palavras "Jesus disse" ou "Ele disse".

Relação com os evangelhos canônicos – Das 114 frases atribuídas a Jesus, inúmeras são passagens contidas nos evangelhos canônicos. 47 frases do "Evangelho de Tomé" têm paralelo no Evangelho de Marcos, 17 aparecem em Mateus, 4 em Lucas e 5 em João. 65 frases de Jesus são inéditas. A comparação com o ‘documento Q’ (descrito nesta coluna na semana passada) nos apresenta 40 passagens semelhantes, o que coloca o ‘Evangelho de Tomé’ como fonte primária de dados sobre Jesus.

Uma passagem inédita – "Perguntaram-lhe os discípulos: A circuncisão é útil ou não? Respondeu-lhes: Se fosse proveitosa, o pai geraria os filhos circuncidados desde o seio materno. Mas verdadeira circuncisão, a espiritual, é inteiramente proveitosa." (Ev To, 53).

(na próxima semana falaremos sobre a expansão dos cristãos pelo mundo)

Você quer conhecer o "Evangelho de Tomé"?

Se você ficou curioso sobre o "Evangelho de Tomé" e gostaria de ler o texto completo com as correlações com os Evangelhos canônicos, solicite por E-mail ou por carta que lhe enviaremos o texto (já traduzido para o português). Junto com os textos também lhe enviaremos explicações e comentários sobre o "Evangelho de Tomé".