sábado, 22 de março de 2014

A samaritana se tornou discípula




Com o evangelho de hoje estamos, certamente, diante de uma das páginas mais belas do evangelho. Aquela mulher samaritana, ao redor do poço de Jacó, nasceu para a fé em Jesus Cristo, como nós na fonte batismal fomos gerados para a vida de fé, a fim de vivermos como um povo consagrado ao Senhor.

Fidelidade de Deus – O trecho do livro do Êxodo nos recorda um momento da longa travessia do povo de Deus pelo deserto, ao longo de quarenta anos. O povo que empreendeu a travessia pôde experimentar, não obstante sua infidelidade e suas resistências, a fidelidade de Deus, sua paciência, sua generosidade, seu cuidado, sua ternura. O povo murmura porque não tem água.

Água no deserto – Nós, que ouvimos o evangelho e renascemos nas águas do Batismo, sabemos que aquela água que faltava ao povo e que lhe foi dada por Deus era a prefiguração da água dada por Jesus Cristo, uma água que mata definitivamente a sede. Sem água a vida está profundamente ameaçada. Não só a vida pessoal, mas a unidade do povo de Deus.

Moisés – Queriam apedrejar Moisés. Diante da dificuldade, duvidaram de Deus, da sua promessa e da sua fidelidade. Só põe em questão a fidelidade e a lealdade de Deus quem não é capaz de ser fiel e leal. É preciso, sustentados pelo cuidado de Deus que nos acompanha na travessia da história, lutarmos contra o medo, o desespero, a murmuração.

Meio-dia – Era meio-dia quando do encontro de Jesus com a samaritana, ao redor do poço de Jacó, lugar de tantos encontros que transformaram a vida das pessoas. Foi lá que Jacó se apaixonou por Raquel. A observação da hora parece querer fazer o leitor compreender que, diante de Jesus, estamos em plena luz do dia. Aquele que é a “luz do mundo” ilumina também a Samaria, desprezada pelos outros judeus.


Discípula – O diálogo entre Jesus e aquela mulher é catequético, cuja finalidade é despertar a fé, o desejo da água que ela não podia recolher de nenhum poço; água que é dada somente pelo único Senhor da vida. Dando ouvidos a Jesus, ela poderá exprimir o desejo pela água que faz viver. O cântaro da purificação é superado pela água do Espírito Santo derramado no coração dela, lei interna da caridade. Iluminada e saciada, ela se torna discípula, testemunha de Jesus Cristo. Essa mesma água nos foi dada por ocasião do nosso Batismo.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Este é o meu Filho Amado


O Evangelho deste domingo (Mt 17,1-9) relata a transfiguração de Jesus, uma catequese cheia de a elementos simbólicos do Antigo Testamento, que apresenta-nos Jesus, como o Filho amado de Deus, Aquele que vai concretizar o projeto libertador do Pai, em favor dos homens, pelo dom da vida.

Desânimo – O relato da transfiguração de Jesus é precedido pelo primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23) e de uma instrução sobre as atitudes que discípulo deve ter (convidado a renunciar a si mesmo, a tomar a sua cruz e a seguir Jesus no seu caminho de amor e de entrega da vida – Mt 16,24-28). Depois de terem ouvido falar do “caminho da cruz” e de terem constatado aquilo que Jesus pede aos que O querem seguir, os discípulos estão desanimados e frustrados, pois a aventura em que apostaram parece caminhar para um rotundo fracasso; eles veem desaparecer, pouco a pouco – nessa cruz que irá ser plantada numa colina de Jerusalém – os seus sonhos de glória, de honras, de triunfos e se perguntam se vale a pena seguir um mestre que nada mais tem a oferecer do que a morte na cruz.

Projeto – É nesse contexto que Mateus coloca o episódio da transfiguração. A cena representa uma palavra de ânimo para os discípulos (e para os crentes, em geral), pois nela manifesta-se a glória de Jesus e atesta-se que Ele é – apesar da cruz que se aproxima – o Filho amado de Deus. Os discípulos recebem, assim, a garantia de que o projeto que Jesus apresenta é um projeto que vem de Deus e, apesar das suas próprias dúvidas, recebem um complemento de esperança que lhes permite “embarcar” e apostar nele.

Teofania – A narração da transfiguração é uma teofania – quer dizer, uma manifestação de Deus. Portanto, o autor do relato coloca no quadro que descreve todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus (e que encontramos quase sempre presentes nos relatos teofânicos do Antigo Testamento): o monte, a voz do céu, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem e mesmo o medo e a perturbação daqueles que presenciam o encontro com o divino. Isso quer dizer: não estamos diante de um acontecimento real, mas de uma catequese construída de acordo com o imaginário judaico.

Catequese – Esta catequese, destinada a ensinar que Jesus é o Filho amado de Deus e que traz aos homens um projeto que vem de Deus, está construída sobre elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento. Que elementos são esses?

O monte: situa-nos num contexto de revelação; é sempre num monte que Deus Se revela e, em especial, é no cimo de um monte que Ele faz uma Aliança com o seu Povo. A mudança do rosto e das vestes – de brancura resplandecente – recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (Ex 34,29), depois de se encontrar com Deus e de ter as Tábuas da Lei.

A nuvem: indica a presença de Deus; era na nuvem que Deus manifestava a sua presença, quando conduzia o seu Povo pelo deserto (Ex 40,35). Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); são personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “Dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva (Dt 18,15-18).

Reação: o temor e a perturbação dos discípulos são a reação lógica de qualquer homem ou mulher diante da manifestação da grandeza, da onipotência e da majestade de Deus (Ex 19,16). As tendas parecem aludir à “Festa das Tendas”, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em “tendas”, no deserto.


Filho amado – A mensagem fundamental pretende dizer quem é Jesus. Recorrendo a simbologias do Antigo Testamento, o autor deixa claro que Jesus é o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele é também, esse Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Mais ainda: ele é um novo Moisés – isto é, aquele por meio de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a Nova Lei e através de quem Deus propõe aos homens uma nova aliança.

sábado, 1 de março de 2014

Deus e o dinheiro


O Evangelho deste domingo (Mt 6,24-34) continua no contexto do “Sermão da Montanha”. Jesus continua aqui, a apresentar a “nova Lei” (como, no Antigo Testamento, Deus apresentou ao seu Povo, na montanha do Sinai, a antiga Lei) que deve guiar a comunidade cristã na sua caminhada histórica. Jesus adverte os discípulos para o uso das riquezas e procura definir a atitude vital e o caminho do cristão

Mamonas – O versículo 24 afirma a incompatibilidade entre o amor a Deus e o amor aos bens materiais (o evangelista Mateus usa o termo “mamonas”, que significa o dinheiro como um poder que domina o mundo). Qual a razão dessa incompatibilidade?

Deus – Deus deve ser o centro ao redor do qual o homem constrói a sua existência, o valor supremo do homem… Mas, sempre que a lógica do “ter” domina o coração, o dinheiro ocupa o lugar de Deus e passa a ser o ídolo a quem o homem tudo sacrifica. O verdadeiro Deus passa, então, a ocupar um lugar perfeitamente secundário na vida do homem; e o dinheiro – ídolo exigente, ciumento, exclusivo, que não deixa espaço para qualquer outro valor – é promovido à categoria de motor da história e de referência fundamental para o homem.

Dinheiro – O amor ao dinheiro fecha totalmente o coração do homem, num egoísmo estéril, e não deixa qualquer espaço para o amor aos irmãos. Na sua vida, o homem deixa de ter lugar para aqueles que o rodeiam e, por amor do dinheiro, torna-se injusto, prepotente, corrupto, explorador, autossuficiente…

O que buscar primeiro? – Nos versículos 25-34, que se seguem aos “ditos” sobre a riqueza, Mateus procura responder às seguintes questões: como deve ser ordenada a hierarquia de valores dos discípulos de Jesus? Os membros da comunidade cristã não devem se preocupar, nem minimamente, com as suas necessidades básicas? Para os discípulos de Jesus, o “Reino” deve ser o valor mais importante, a principal prioridade, a preocupação mais séria, aquilo que, dia a dia, “faz correr” o homem e que domina todo o seu horizonte (“procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça”).

Desafio do Reino – E as preocupações mais “primárias” da vida do homem: a comida, a bebida, a roupa, a segurança? São valores secundários, que não devem sobrepor-se ao “Reino”. De resto, não precisamos viver obcecados com essas coisas, pois o próprio Deus Se encarregará de suprir as necessidades materiais dos seus filhos (“tudo o mais vos será dado por acréscimo”). Aliás, quem aceita o desafio do “Reino” descobre rapidamente que Deus é esse Pai bondoso que preside a história humana, que cuida dos seus filhos, que vela por eles com amor, que conhece as suas necessidades: se Deus, cada dia, veste de cores os lírios do campo e alimenta as aves do céu, não fará o mesmo – ou até mais – pelos homens? Aquele que crê e que escolhe o “Reino” passa, então, a viver nessa serena tranquilidade que resulta da confiança absoluta no Deus que não falha.


Comodismo? – A proposta de Jesus será um convite a viver na alegre despreocupação, na inconsciência, na passividade, no comodismo, na indiferença? Não. As palavras de Jesus são um convite a pôr em primeiro lugar as coisas verdadeiramente importantes (o “Reino”), a relativizar as coisas secundárias (as preocupações exclusivamente materiais) e, acima de tudo, a confiar totalmente na bondade e na solicitude paternal de Deus. De resto, viver na dinâmica do “Reino” não é cruzar os braços, à espera que Deus faça cair do céu aquilo que necessitamos; mas é viver comprometido, trabalhando todos os dias, a fim de que o sonho de Deus – o mundo novo da justiça, da verdade e da paz – se concretize

sábado, 22 de fevereiro de 2014

JESUS ORDENOU AMAR OS INIMIGOS?


Nos seus ensinamentos no Sermão da Montanha, Jesus nos diz: “amem seus inimigos” (Mt 5,44). Diante dessa afirmação, surgem várias dúvidas: é possível mandar no amor? Alguém pode ordenar-nos sentir afeto por outro? A manifestação de carinho é espontânea? Como é possível amar alguém que é nosso inimigo?

Raiz do problema – Todo o problema dessa passagem está na tradução das palavras de Jesus. Na língua portuguesa usamos sempre o mesmo verbo “amar”, para qualquer sentimento amoroso a que queremos nos referir. Na língua grega (em que foram compostos os Evangelhos), existem quatro verbos distintos para indicar “amar”, cada um com sentidos diferentes.
 
Amor romântico – Em primeiro lugar temos o verbo erao (de onde vem a palavra eros e seu adjetivo erótico). Significa amar em seu sentido romântico, carnal, sexual. Emprega-se para a atração entre um homem e uma mulher, em seu aspecto espontâneo e instintivo. Na Bíblia, aparece o verbo “erao” várias vezes: “O rei amou (erao) a Éster mais que as outras mulheres de sua corte” (Est 2,17). “Vou reunir todos os que te amaram (erao)” (Ez 16,37).  

Amor familiar – Outro verbo grego que significa amar é stergo. Indica o amor familiar, o carinho do pai por seu filho e do filho pelo pai. É o amor doméstico, de família, que brota naturalmente dos laços do parentesco. São Paulo, em sua Carta aos Romanos escreve: “Tenham uma caridade sem fingimento: amem-se cordialmente (stergo) uns aos outros” (Rom 12,10).

Amor de amigos – O terceiro verbo grego usado para designar “amor” é fileo. Expressa o amor da amizade, o afeto que se sente pelos amigos. Quando Lázaro, o amigo de Jesus, estava doente, as suas irmãs mandaram dizer: “Senhor, aquele a quem tu amas (fileo) está enfermo” (Jo 11,3). Quando Maria Madalena não encontra o corpo de Jesus no sepulcro, sai correndo para encontrar Pedro “e o outro discípulo que Jesus amava (fileo)” (Jo 20,2). Na parábola do filho pródigo, o irmão reclama ao pai: “Faz tantos anos que te sirvo e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com meus amigos (filos)” (Lc 15,29).

Amor caritativo – O quarto verbo grego para “amar” é agapao. É utilizado para o amor de caridade, de benevolência, de boa vontade, o amor capaz de dar sem esperar nada em troca. É o amor totalmente desinteressado, completamente abnegado, o amor com sacrifício. O evangelista João usa o verbo “agapao” na descrição da Última Ceia: “Sabendo Jesus que havia chegado a hora de passar deste mundo ao Pai, tendo amado (agapao) aos seus, os amou até o fim” (Jo 13,1).  Ou ainda: “Como o Pai me amou, eu também os amo (agapao)” (Jo 15,9). E quando encontra os apóstolos: “Nada tem maior amor (agápe) do que dar a vida por seus amigos” (Jo 15,13).
 
Jogo de Palavras – Um exemplo interessante é o episódio em que Jesus ressuscitado aparece aos apóstolos no lago de Tiberíades (Jo 21,15s) e pergunta três vezes a Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais que estes?”. Jesus usa o verbo agapao: ”Simon, agapás me?”. Pedro lhe responde com fileo: “Filo se”. Jesus pergunta a Pedro se ele o ama com amor total, amor de entrega de serviço, e Pedro lhe responde humildemente com fileo, menos pretensioso. Na segunda vez, Jesus volta a perguntar: “Simon, agapás me? E Pedro novamente responde com fileo. Na terceira vez, Jesus sabendo esperar com paciência o processo de maturidade de cada um, usa o verbo fileo: “Simon, fileis me? Então Pedro se entristece ao identificar o sentido da pergunta.

Amar os inimigos? – Voltando agora à frase de Jesus, ordenando que se ame os inimigos, Jesus não utilizou o verbo erao, nem stergo nem fileo. Usou o verbo agapao. Jesus nunca pediu que amássemos os inimigos do mesmo modo que amamos nossos entes queridos. Nem pretendeu que sentíssemos o mesmo afeto que sentimos por nosso cônjuge (erao), nossos familiares (stergo) ou nossos amigos (fileo). Se quisesse isso, teria usado os outros verbos.

Amor ágape O que Jesus exige é o amor ágape. Este não consiste em um sentimento, nem afeto, nem algo de coração (senão seria impossível cumprir). O ágape que Jesus pede é uma decisão, uma atitude, uma determinação que depende da vontade. Não nos obriga a sentir apreço ou estima, nem devolver a amizade por quem nos tenha ofendido. O que Jesus pede é a capacidade de ajudar e prestar um serviço de caridade, se algum dia aquele que nos ofendeu necessitar.


QUER SABER MAIS – Gostou dos termos em grego? Se você quer conhecer o Novo Testamento em grego (na forma original em que foi escrito), solicite por E-mail.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Não penseis que vim revogar a Lei


O Evangelho das missas deste domingo (Mt 5, 20-37) é a continuação das bem-aventuranças de domingo passado (Mt 5, 13-16). Com o objetivo de doutrinar, Mateus reúne, didaticamente, uma grande coleção de sentenças associadas a Jesus, às quais se denomina "o Sermão da Montanha".

A Lei – Os judeus chamavam de “A Lei” os cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis, êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Estes cinco livros constituem a base da doutrina judaica. Também são chamados de Torá, ou Pentateuco ou ainda de Lei de Moisés.

Jesus e Moisés – O discurso de Jesus “no cimo de um monte” nos leva à montanha da Lei (Sinai), onde Deus Se revelou e deu ao seu Povo a Lei (os Dez Mandamentos). Agora, é Jesus que, numa montanha, oferece ao novo Povo de Deus essa nova Lei que deve guiar todos os que estão interessados em aderir ao “Reino”. Neste discurso (o primeiro dos cinco grandes discursos que Mateus apresenta), o evangelista agrupa um conjunto de “ditos” de Jesus e oferece à comunidade cristã um novo código ético, a nova Lei, que deve guiar os discípulos de Jesus na sua marcha pela história.

Cumprimento da Lei – A Primeira Leitura apresenta Deus propondo os Mandamentos ao Povo de Israel, num clima de aliança e o povo acolhe unânime (Eclo 15,16-21). Para o povo de Israel, o amor e a fidelidade à Lei constituiam toda a justiça e a santidade... É no cumprimento dos mandamentos da Lei de Deus que está a vida e a felicidade, pois ela é uma fonte de bênção (Dt 28,1-14) e a sua rejeição, uma fonte de maldições (Dt 28,15ss) – apesar de muitas infidelidades... Mas, com o passar do tempo, o povo reduziu a Lei a uma observância puramente externa, sem uma convicção interior mais profunda...

Nova Lei? – Para entendermos o “pano de fundo” do Evangelho, convém que nos situemos no ambiente das comunidades cristãs primitivas e, de forma especial, no ambiente da comunidade de Mateus: trata-se de uma comunidade com fortes raízes judaicas, na qual predominavam os cristãos que vinham do judaísmo… As questões que a comunidade propunha, na década de oitenta (quando este Evangelho aparece), eram: continuamos obrigados a cumprir a Lei de Moisés? Jesus não aboliu a Lei antiga? O que é que há de verdadeiramente novo na mensagem de Jesus?

Dúvida – O texto começa por eliminar esse equívoco que perdurou por longo período e foi ocasião de disputas não somente entre Jesus e os seus contemporâneos, mas entre judeus e cristãos. O modo como Jesus interpretava e punha em prática a Lei de Moisés desconcertava a tal ponto, que fazia com que seus contemporâneos e a geração posterior pensassem que ele desprezava e revogava a Lei de Moisés.

Vida e liberdade – Jesus censura uma observância puramente externa, sem convicção interior... "Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos céus!". E apresenta seis exemplos concretos, em forma de antíteses ("Ouvistes o que foi dito... EU, porém, vos digo..."), proclamando com elas o sentido da nova Lei. No Evangelho deste domingo, aparecem quatro delas: homicídio, adultério, divórcio e perjúrio. As duas últimas são: perdão no lugar de vingança (Lei do talião) e o Amor ao inimigo, ao invés de ódio (próximo domingo). As antíteses são o exemplo claro de que Jesus ultrapassa a letra da Lei, supera o rigor que sufoca e que impede de entrar na finalidade própria da Lei: preservar o dom da vida e da liberdade. Parece que é exatamente isso que Jesus quer dizer ao afirmar que a justiça (o modo de proceder em conformidade com a vontade de Deus) expressa na Lei, deve superar o rigorismo dos escribas e fariseus. Não basta uma prática apenas externa da lei, temos que obedecer, viver o espírito da Lei.  

Plenitude dos tempos – Jesus não revoga a Lei de Moisés. Contudo, ela precisa ser interpretada à luz da revelação de Jesus Cristo (Mt 5,17; 7,12; 22,40). No centro dessa “nova justiça” estão o amor, o perdão e a reconciliação, a misericórdia, a unidade e o acolhimento, que incluem e integram a todos na comunhão com Deus. O Sermão da Montanha, nesse trecho, nos ensina que a vida espiritual não está num catálogo de normas perfeitas que proíbem as más ações, mas na limpeza da fonte de todas as ações: o coração, pois dele procedem assassínios, adultérios, prostituições, falsos testemunhos e difamações.


Para refletir - E nós, como observamos os Mandamentos? Com o espírito do Antigo Testamento, fazendo isto ou aquilo porque é lei, porque é "obrigado"? Por que vou à Missa? Por ser ela um preceito? "Se a justiça de vocês não for maior que a dos escribas e fariseus, vocês não entrarão no Reino dos céus". Quem me AMA, guarda os meus mandamentos...". Seja a nossa observância uma expressão sincera e profunda do nosso amor para com Deus.       

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Vós sois o sal e a luz do mundo


O Evangelho das missas deste domingo (Mt 5, 13-16) é a continuação do texto de domingo passado. Após a apresentação das bem-aventuranças, Mateus reúne uma grande coleção de sentenças associadas a Jesus. Com o objetivo de doutrinar, ele reuniu didaticamente, ditos e sentenças dispersos, originários de palavras de Jesus, que circulavam livremente como tradição entre os cristãos. Vários desses ditos e sentenças aparecem espalhados ao longo dos outros evangelhos sinóticos (Marcos e Lucas). O conjunto forma o que se costuma denominar como "o Sermão da Montanha".

História – Mateus redige sua obra em um momento em que o judaísmo, após a destruição do Templo de Jerusalém (Guerra Judaica, no ano 70), busca sua identidade estrita e rigorosamente na observância da Lei. Sob esta decisão, os fariseus expulsaram das sinagogas os judeus convertidos ao cristianismo que, embora ameaçados, perseveravam em sua fé cristã.

Diferenças do Reino – Com a coletânea de sentenças do Sermão da Montanha, Mateus procura identificar, para as comunidades que vieram do judaísmo, as características do Reino dos Céus, diferenciando-as daqueles critérios de identidade que os fariseus exigiam. Daí vem a frequente repetição da expressão: “... foi dito aos antigos... Eu, porém, vos digo...", ao longo do Sermão.

Sal e Luz – As palavras de Jesus, escritas por Mateus, animam, encorajam e motivam os discípulos que são e serão insultados, perseguidos, maltratados por causa do anúncio e testemunho do Evangelho. Eles devem ter a consciência de que serão o sal da terra, que preserva a humanidade de todo mal, e a luz do mundo, que irradia a mensagem da Salvação para todos os povos, iluminando os caminhos. O v. 16 identifica esta luz com as boas obras.

Sal – Na Bíblia, esta é a única passagem em que o sal é usado em uma metáfora aplicada a pessoas. O sal tem efeito de purificar, curar, conservar e dar sabor. Assim, os discípulos têm uma grande responsabilidade para com todos os povos: mediante a proclamação do Evangelho e a conduta de vida têm a responsabilidade, o compromisso de preservar o mundo da corrupção e degradação espiritual, levando cada um a viver segundo a dignidade e a responsabilidade própria dos filhos de Deus. Os discípulos são chamados ao compromisso da fidelidade ao projeto de Deus. Se não contribuírem para o “sabor” do Evangelho, com o testemunho de vida, com coerência, serão desprezados pelo povo e recusados como pessoas “sem gosto, sem sabor” (insossos).

A luz – A luz é o admirável fenômeno físico que nos revela a natureza das coisas materiais. No âmbito das realidades espirituais, a luz identifica-se com a verdade. É pela verdade que alcançamos a realidade dos fatos e da vida, ocultados pela falsidade e pela mentira. Os discípulos devem difundir a luz do Evangelho para levar as pessoas à conversão; sobretudo com o bom exemplo e o testemunho de vida. A conduta edificante dos discípulos, sobretudo com a prática das boas obras, manifesta a ação de Deus no mundo, inaugurando o seu Reino de amor e paz.

Verdade – A alegria e a verdade são manifestações do amor que une os discípulos em comunidades e que irradiam, transformando o mundo. Na humildade e na confiança em Deus (primeira leitura), os discípulos são chamados a ser a luz que ilumina os caminhos e revela a verdade de Jesus. Todo homem que crê tem uma missão a desempenhar em favor dos outros homens, daqueles que não conhecem a Deus. O cristão, de fato, não pode fugir do mundo, esconder-se ou considerar a religião um assunto particular. Ele vive no mundo e tem uma responsabilidade, uma missão diante de todos os homens: ser a luz que ilumina. Esta missão está confiada a todos nós e, se não a cumprirmos, seremos inúteis como o sal que perdeu o sabor ou como a luz que se tornou sombra.


Reino – Ser o sal da terra e a luz do mundo é comprometer-se com o Reino dos Céus encarnado na história, no dia a dia. É partilhar com quem tem fome, acolher os pobres, vestir os nus. É praticar a justiça e a paz, que demovem os poderosos injustos e violentos. O cristão deve realizar boas obras com um espírito novo, aquele espírito que faz com que não seja mais ele a viver em si mesmo, mas Cristo nele. "Assim, qual novo amanhecer,... tua luz brilhará nas trevas". 

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Quantos eram os apóstolos? – conclusão



 Na semana passada, vimos que o Novo Testamento nos apresenta três listas dos apóstolos (Mc 3, 16-19; Mt 10, 2-4; Lucas 6, 14-16 e At 1, 13). Quando estas listas são comparadas, elas apresentam alguns problemas, com nomes diferentes e até mesmo uma mulher recebe o título de apóstolo.

Quantos eram, afinal, os apóstolos? A esta altura, já é evidente que não eram doze. Por que, então, nós falamos sempre em doze apóstolos?

Porque Doze – Antigamente, o povo de Israel era formado por doze tribos. Mas, no século 8 a.C., ao sofrer uma invasão por parte dos assírios, dez delas desapareceram. No século 6 a.C., as tribos que restavam também sofreram a invasão dos babilônicos, mas uma delas se salvou: a tribo de Judá (de onde vem o nome atual de “judeus”). Os profetas predisseram que chegaria um dia em que Deus voltaria a reunir as doze tribos de Israel. Recordando essas profecias, Jesus buscou entre seus seguidores doze homens, um de cada tribo perdida, e os fez seus discípulos imediatos. Era uma maneira de dizer que Deus estava começando um novo povo. As profecias, pois, se haviam cumprido em Jesus. Os novos tempos haviam chegado.

Apóstolos? – Mas os doze homens eleitos por Jesus nunca se chamaram “apóstolos”, mas simplesmente os “Doze”. Por quê? Porque a palavra “apóstolo” significa “enviado”. E, enquanto Jesus viveu, os doze não se separaram dele. Estavam ao seu lado, o acompanharam em suas viagens, o ajudaram em seus milagres e curas e, de vez em quando, iam pregar em seu nome; mas não os “enviou” de um modo permanente a nenhum lugar. Sempre voltavam a ele. Por isso, a maioria das vezes nos Evangelhos não se diz “os doze apóstolos”, mas somente os “Doze”: Jesus elegeu os Doze (Mc 3, 14); perguntaram-lhe os Doze (Mc 4, 10); tomou os Doze (Mc 10, 32), saiu com os Doze (Mc 11, 11); reuniu os Doze (Mt 20, 17); o acompanhavam os Doze (Lc 8, 1); acercaram-lhe os Doze (Lc 9, 12); Judas, um dos Doze (Jo 6, 71).

Enviados – A partir da ressurreição de Jesus, os Doze compreenderam que o Senhor os mandava pregar o Evangelho a todos os povos. Então se sentiram “enviados” e decidiram criar o título de apóstolo (enviado) para designar essa nova missão que tinham. Por isso os “Doze” receberam também o título de “apóstolos”, que nunca haviam recebido durante a vida de Jesus.

Outros – Além dos Doze, muitas outras pessoas também se sentiram “enviadas” e quiseram sair a pregar o Evangelho de Jesus (ex-leprosos, cegos curados, discípulos, gente que o havia conhecido e escutado). Que fazer com toda essa gente?

Critérios para ser Apóstolo – Os Doze pensaram que não era qualquer um que podia ser um enviado oficial de Jesus Cristo, já que existia o perigo de que a doutrina se desviasse. Então resolveram colocar duas condições para que alguém mais, além dos Doze, pudesse ser chamado de apóstolo: a) ter visto Jesus Ressuscitado; e, b) ter recebido de Jesus a missão de pregar.

Os primeiros apóstolos – Dessa maneira, foi se formando um grupo mais amplo de apóstolos, dedicados principalmente ao anúncio e pregação do Evangelho. Os “Doze” constituíam um grupo distinto ao dos “apóstolos”. Vejam as palavras de Paulo: “Apareceu a Cefas, logo aos Doze..., logo a todos os apóstolos, e em último lugar a mim” (1Cor 15, 5-8).

Os Doze e os apóstolos – Pouco a pouco, os Doze foram desaparecendo. A última vez em que são citados no Novo Testamento é em Atos (6, 2), na eleição dos sete diáconos. Depois não são mencionados nunca mais. Então os “apóstolos” passaram a ser os de maior prestígio e autoridade dentro da Igreja. Com o transcorrer do tempo, desapareceram também os apóstolos, esse grupo privilegiado de testemunhas de Jesus Cristo, e surgiram outros ministros novos, como os presbíteros, os diáconos, os bispos. Mas ninguém voltou a ter o título oficial de apóstolo.


As listas – Quando, a partir do ano 70, se escreveram os Evangelhos, os nomes de alguns dos Doze que acompanharam Jesus foram se perdendo, pois não se teve mais notícias deles e se mesclaram com os outros apóstolos posteriores. Por isso, ao confeccionar as diversas listas, colocaram nomes diferentes. E como fazia muito tempo que os “Doze” também eram chamados “apóstolos”, em algumas partes do Evangelho se misturaram ambos os títulos e puseram “os doze apóstolos” (Mt 10,2; Lc 6, 13), como se houvessem sido os únicos apóstolos. Daí procede nossa confusão atual.