sábado, 22 de junho de 2013

Quem sou eu para vós?


O Evangelho das missas deste domingo acontece na fase final da etapa da Galiléia, em julho do ano 29 (lembrar que Jesus foi crucificado no dia 7 de abril do ano 30). Jesus orava sozinho, quando perguntou aos discípulos: “Quem dizem as multidões que Eu sou?” Eles responderam: “Uns, João Batista; outros, que és Elias; e outros, que és um dos antigos profetas que ressuscitou”. Disse-lhes Jesus: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” Pedro tomou a palavra e respondeu: “És o Messias de Deus”. 

Testemunhas – Jesus passou algum tempo apresentando o seu programa e levando a Boa Nova aos pobres, aos marginalizados, aos oprimidos (Lc 4,16-21). À volta d’Ele, formou-se um grupo de “testemunhas”, que apreciaram a sua atuação e que se juntaram a esse sonho de criar um mundo novo, de justiça, de liberdade e de paz para todos. Agora, antes de começar a etapa decisiva da sua caminhada nesta terra (o “caminho” para Jerusalém, onde Jesus vai concretizar a sua entrega de amor), os discípulos são convidados a tirar as suas conclusões sobre o que viram, ouviram e testemunharam. Quem é este Jesus, que se prepara para cumprir a etapa final de uma vida de entrega, de dom, de amor partilhado? E os discípulos estarão dispostos a seguir esse mesmo caminho de doação e de entrega da vida ao “Reino”? 

Oração – A cena de hoje começa com a indicação da oração de Jesus. É um dado típico de Lucas que põe sempre Jesus rezando antes de um momento fundamental. A oração é o lugar do reencontro de Jesus com o Pai. Depois de rezar, Jesus tem sempre uma mensagem importante – uma mensagem que vem do Pai – para comunicar aos discípulos. A questão importante que, nesse episódio, Jesus quer comunicar, tem a ver com a questão: “quem é Jesus?” 

Messias – A época de Jesus foi uma época de crise profunda para o Povo de Deus; foi, portanto, uma época em que o sofrimento gerou uma enorme expectativa messiânica. Asfixiado pela dor que a opressão trazia, o Povo de Deus sonhava com a chegada desse libertador anunciado pelos profetas. Esperavam um grande chefe militar que, com a força das armas, iria restaurar o império de David e obrigar os romanos opressores a respeitar aquela nação. Na época apareceram várias figuras que se assumiram como “enviados de Deus”, criaram à sua volta um clima de ebulição, arrastaram atrás de si grupos de discípulos exaltados e acabaram, invariavelmente, chacinados pelas tropas romanas. Jesus é também um destes demagogos, em quem o Povo vê cristalizada a sua ânsia de libertação? 

Messias? – Aparentemente, Jesus não é considerado pelas multidões “o messias”: preferencialmente, o Povo identifica-o com Elias, o profeta que as lendas judaicas consideravam estar junto de Deus e que voltaria a anunciar o grande momento da libertação do Povo de Deus. Talvez a postura de Jesus e a sua mensagem não correspondessem àquilo que se esperava de um rei forte e vencedor. 

Discípulos – Os discípulos (companheiros de “caminho” de Jesus) deviam ter uma perspectiva mais elaborada e amadurecida. De fato, é isso que acontece; por isso, Pedro não tem dúvidas em afirmar: “Tu és o messias de Deus”. Pedro representa aqui a comunidade dos discípulos – essa comunidade que acompanhou Jesus, testemunhou os seus gestos e descobriu a sua ligação com Deus. Dizer que Jesus é o “messias” significa reconhecê-lo como o “enviado” de Deus que havia de traduzir em realidade essas esperanças de libertação que enchiam o coração de todos. 

Libertador – Jesus não discorda da afirmação de Pedro. Ele sabe, no entanto, que os discípulos sonhavam com um “messias” político, poderoso e vitorioso e apressa-se a desfazer possíveis equívocos e a esclarecer as coisas: Ele é o enviado de Deus para libertar os homens; no entanto, não vai realizar essa libertação pelo poder das armas, mas pelo amor e pelo dom da vida. No seu horizonte próximo não está um trono, mas a cruz: é aí, na entrega da vida por amor, que Ele realizará as antigas promessas de salvação feitas por Deus ao seu Povo.

sábado, 15 de junho de 2013

Por que se afirma que Maria Madalena era prostituta?


O Evangelho deste domingo apresenta o encontro de Jesus com a mulher pecadora que, arrependida de suas faltas, procura o perdão banhando os pés de Jesus com perfume e enxugando-os com os próprios cabelos. Durante dois mil anos, os cristãos associaram a imagem dessa mulher, considerada prostituta, com a de Maria Madalena. Por que isso se deu? 

Prostituta? – A ideia que temos de Maria Madalena é de uma mulher charmosa, de longos cabelos, atormentada por seus pecados e que de algum modo representa a imagem penitencial da Igreja. Nos quadros e obras de arte, ela sempre aparece com roupas provocantes, um manto vermelho, cabelos soltos, ajoelhada junto à cruz ou atirada devotamente aos pés de Jesus. Porém, quando vamos procurar no Novo Testamento a existência da pecadora Madalena, nada encontramos. Não encontramos nem um episódio que descreva a imagem da prostituta que conhecemos. De onde teria surgido essa história? 

Madalena – A primeira vez que Maria Madalena aparece é na metade do Evangelho de Lucas. Jesus viajava com seus doze apóstolos e algumas mulheres, que haviam sido curadas de “maus espíritos”; entre elas estava Maria Madalena (Lc 8, 2-3). Maria era o nome mais comum no tempo de Jesus, por isso, quando se nomeava alguma Maria, juntava-se alguma designação: “Maria, esposa de”, ou “Maria, mãe de”, ou “Maria, irmã de”. Neste caso, se diz “Madalena” porque ela havia nascido num povoado chamado “Magdala”, ou seja, Madalena não era um nome, mas um apelido referente ao seu lugar de origem. 

No Evangelho – A segunda vez em que Madalena aparece é no momento da crucificação de Jesus; ela está presente com as “outras” Marias e Salomé. A terceira vez que aparece nos Evangelhos é na retirada de Jesus da cruz, junto com José de Arimateia. A quarta vez é na madrugada do domingo de Páscoa, quando foi visitar o túmulo de Jesus. Maria Madalena é mencionada uma quinta vez, quando, ao sair do sepulcro, tem um fascinante encontro com Cristo ressuscitado.   

Razões – Que razões teriam levado à identificação de Madalena como prostituta? A primeira explicação está no final do capítulo 7 do Evangelho de Lucas, lido neste final de semana. Jesus foi comer na casa de um fariseu chamado Simão. Quando estava na mesa, apareceu uma mulher pecadora, que lavou os pés dele com lágrimas e os enxugou com os próprios cabelos. O dono da casa reconheceu a mulher como prostituta e assustou-se ao ver que Jesus se deixou ser tocado por ela. Na sequência do texto, inicia-se o capítulo 8 de Lucas, que menciona o nome de Madalena (Lc 8,1-3) Os cristãos relacionaram os textos, ligando a imagem da prostituta à de Madalena. 

Outro engano – No Evangelho de Marcos é apresentada a história de que Jesus, na cidade de Betânia, encontrou-se com uma mulher que derramou um frasco de perfume em sua cabeça. Esta mulher, por fazer algo semelhante à pecadora (de Lucas) foi também identificada como Maria Madalena. Assim, as três mulheres (Maria Madalena que seguia Jesus, a pecadora anônima e a mulher de Betânia) passaram a ser uma só pessoa, identificada como Maria Madalena.  

Mais enganos – No Evangelho de João, capítulo 4, Jesus se encontra (junto ao poço de Jacó) com uma promíscua samaritana, que já havia se relacionado com seis maridos. Embora o Evangelho não apresente qualquer identificação desta samaritana, ela também foi nomeada como Maria Madalena. O maior de todos os enganos relaciona-se ao capítulo 8 do Evangelho de João: a mulher surpreendida em adultério, prestes a ser apedrejada pelos judeus, também foi identificada como Maria Madalena. 

A Igreja – Muitos Papas e Santos da Igreja se opuseram a este erro histórico dentro da Igreja, entre eles, Santo Agostinho (século IV) e Santo Ambrósio (século IV). Mas o Papa Gregório Magno, numa célebre homilia pronunciada em 14 de setembro do ano 591, afirmou: “Pensamos que aquela a quem Lucas denomina pecadora e que João chama de Maria, designa essa Maria de quem foram expulsos sete demônios”. Assim, a partir do século VII a Igreja passou a sustentar, unanimemente, que as três mulheres eram uma só. 

Estudos atuais – Atualmente, num estudo mais detalhado, os exegetas, têm repudiado essa identificação, sustentando que são três pessoas distintas: a primeira (Lc 8,1-3) é Maria Madalena, que não tinha uma vida pecadora, mas “os sete demônios” (que se referem a alguma enfermidade); a pecadora pública (Lc 7, 36-50) é uma segunda mulher, que lava os pés de Jesus com lágrimas e enxuga com os cabelos, na tentativa de buscar perdão dos pecados; e a terceira mulher (distinta das duas primeiras) derrama perfume na cabeça de Jesus (Mc 14, 3-9).

sábado, 8 de junho de 2013

COMPAIXÃO


O Evangelho das missas deste domingo (Lc 7,11-17) apresenta a ressurreição do filho de uma viúva. No relato, o evangelista Lucas inspira-se no episódio do filho de uma viúva, em Sarepta (primeira leitura, 1Rs 17,8-24). 

Viagem – Jesus vai para Naim, pequeno vilarejo entre Cafarnaum e a Samaria. É acompanhado de seus discípulos e grande multidão. Às portas da cidade, Jesus e seus discípulos se encontram com outro grupo: “... levavam um morto para enterrar, um filho único, cuja mãe era viúva. Uma grande multidão da cidade a acompanhava”. O paralelo é evidente: os dois grupos caminham em direções opostas; o primeiro segue um homem poderoso em gestos e palavras, o segundo grupo, um morto. 

Compaixão – Até este ponto a descrição da cena e dos personagens é puramente objetiva. De repente somos surpreendidos por uma focalização interna, a menção da compaixão de Jesus: “Ao vê-la, o Senhor encheu-se de compaixão por ela e disse: ‘Não chores!’”. A iniciativa de Jesus é provocada pela sua compaixão. A palavra de Jesus permite entrar no coração das pessoas. É por Jesus que somos informados do sofrimento da mulher: “Não chores”, e da idade do morto: um “jovem”. Não é da morte que Jesus tem compaixão, nem do morto, mas da pessoa que sofre. A ênfase de todo o episódio é posto em Jesus, sobre sua compaixão e sua palavra poderosa. 

Consolação – Nesta passagem não é a morte nem o morto que importam, nem mesmo o retorno à vida, mas que uma mãe já viúva tenha perdido o seu filho único. O retorno à vida não é o objetivo da iniciativa de Jesus, mas a consolação da mãe que chora. A ação de Jesus termina com uma observação: “E Jesus o entregou à sua mãe”. O texto apresenta uma transformação que se dá não somente pelo retorno de um jovem à vida, mas das duas multidões que, primeiramente separadas, são reunidas, num segundo momento, no louvor a Deus. A passagem de Jesus por Naim possibilita um duplo reconhecimento, a saber: da identidade de Jesus (Profeta) e da visita salvífica de Deus. 

João Batista – O milagre relatado neste texto, assim como o dos versículos anteriores, responde à pergunta de João de Baptista a Jesus: “és Tu que hás de vir ou devemos esperar outro?” Jesus oferece a salvação (Lc 7,1-10) e mostra o verdadeiro triunfo da vida (Lc 7,11-17). O mais importante não é o relato em si, mas o sentido que nos transmite. 

Reino – Antes de mais, temos aqui uma revelação de Deus. Diante da atitude de piedade e compaixão de Jesus, neste milagre de ressurreição vemos a exclamação do povo: “Deus visitou o seu povo”. Jesus é “um grande profeta”, não apenas porque transmite a Palavra de Deus e anuncia o reino com palavras, mas, sobretudo porque veio realizar o reino pela ressurreição, oferecendo a sua vida. 

Sinal – Percebemos ainda todo o carácter de sinal, presente no milagre. A ressurreição do filho da viúva testemunha Jesus-que-há-de-vir, cuja vida triunfa plenamente sobre a morte. Significa que, para nós, hoje como então, Deus Se encontra onde há o sentido da piedade, do amor vivificante. Significa ainda que, seguindo Jesus, só podemos também suscitar vida, ter piedade dos que sofrem, oferecer a nossa ajuda, ter uma atitude de oblação. 

Escolha – Das duas, uma: ou fazemos da nossa vida um cortejo de morte, dos sem esperança, que acompanham o cadáver, em atitude de choro, de luto, de desespero; ou fazemos do nosso peregrinar um caminho de esperança, de ressurreição, de transformação do choro e da morte em sentido de vida. Podemos escolher, é certo. Mas se somos seguidores de Cristo e nos deixamos visitar por este grande profeta, não temos alternativa!

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Jesus era casado?


A pergunta pode parecer imprudente, desrespeitosa ou até ofensiva. O livro e filme “O Código da Vinci” colocou o assunto em discussão. O livro vendeu mais de 80 milhões de cópias (é o 10º mais vendido do mundo) e o filme foi visto por mais de 5 milhões de pessoas só no Brasil. Em recente pesquisa realizada nos Estados Unidos, 30% dos entrevistados disseram que acreditavam que Jesus era casado com Maria Madalena.
 

Qual é a história? – Contam as antigas lendas, que Jesus era casado com Maria Madalena e que, nos anos seguintes à crucificação, alguns de seus discípulos e pessoas próximas fugiram da Judéia em um barco e chegaram à costa sul da Gália, atual França. Na embarcação usada para a fuga pelo mar Mediterrâneo estavam os irmãos Lázaro, Maria e Marta, juntamente com a mãe dos apóstolos João e Tiago (chamada Maria Salomé), acompanhados ainda por Maria de Cleófas, a tia de Jesus, e do discípulo Maximinio. Junto com eles, estava uma jovem chamada Sara, identificada como filha de Jesus Cristo e Maria Madalena.
 

Judeus – Na sociedade judia do 1º século, o celibato era mal visto e tratado com vergonhoso. Seguindo Gen 1, 28 (“sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra”), os rabinos ensinavam que nenhum homem decente deveria deixar de cumprir este mandamento. O rabino Eliezer bem Hircano qualificava de assassino o homem que não tinha filhos. O Talmud ensinava que um homem sem uma mulher era apenas meio homem. Por outro lado, sabemos que muitos judeus que viveram na época de Jesus não se casaram (por exemplo, os essênios). Os profetas Jeremias (Jr 16,1-4), Eliseu (1Re 19,19-20) e João Batista (Mc 6,29) não se casaram. Com estes exemplos, não é estranho pensar que Jesus também tenha permanecido solteiro.
 

Argumento – O Novo Testamento nada diz sobre o estado civil de Jesus. Dan Brown, o autor de “O Código da Vinci”, para fundamentar o seu livro, recorre a dois livros apócrifos: o “Evangelho de Maria Madalena” e ao “Evangelho de Filipe”. É claro que o uso desses textos facilita o convencimento dos leitores, pois poucas pessoas conhecem estes apócrifos.
 

O Evangelho de Maria Madalena – Trata-se de um livro escrito no século II e descoberto no Egito, em 1896. Em um trecho, Pedro e os discípulos dizem para Maria Madalena: “Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que qualquer outra mulher. Conte-nos as palavras do Salvador, as de que te lembras, aquelas que só tu sabes e que nós não conhecemos”. Em seguida, Madalena conta uma parábola (realmente desconhecida). Ao terminar, Pedro reclama: “Será que Jesus realmente conversou em particular com uma mulher e não abertamente conosco, e agora teremos que recorrer a ela e escutá-la? Ele a preferiu a nós?”. Então Levi responde: “Pedro, sempre fostes exaltado. Agora te vejo competindo com uma mulher como adversário. Mas, se o Salvador a fez merecedora, quem és tu para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece bem. Daí a ter amado mais do que a nós”.
 

O que dizer? – Pela época em que o texto foi escrito, o seu autor não foi Maria Madalena nem qualquer seguidor de Jesus. Notamos também que, em nenhuma parte, o texto afirma que Maria Madalena era esposa de Jesus. Apenas diz que o amor que Jesus sentia por ela o levou a fazer revelações especiais.
 

O Evangelho de Filipe – A segunda prova usada por Dan Brown é um texto escrito no segundo século e descoberto em Nag Hammadi, em 1945. O texto não permite uma tradução clara, pois está apagado: “A companheira de ... (Jesus) é Maria Madalena. Cristo a amava mais do que todos os discípulos e costumava beijá-la frequentemente na ... . Os demais ... (discípulos) disseram: ‘Por que a amas mais do que a todos nós?’ O Salvador respondeu dizendo: ‘Por que não os amo como a ela? Quando um cego e uma pessoa normal estão juntos na escuridão, não são diferentes um do outro. Quando chega a luz, então, aquele que vê verá a luz, e o cego permanecerá na escuridão’”.
 

O que dizer? – Parece uma prova irrefutável do casamento de Jesus. Mas não é. O termo ‘companheira’ não significa esposa; segundo estudiosos, a palavra que falta na frase “beija-la frequentemente na ...” é “fronte”. Porém, mesmo que a palavra fosse “boca”, a expressão significaria ‘transmitir um conhecimento especial ou secreto’. Portanto, este texto não comprova o casamento de Jesus.
 

Concluindo – Todos os judeus do tempo de Jesus se casavam antes de completarem 20 anos. Com Jesus não foi assim porque sabia a sua missão de anunciar o Reino de Deus. Aos seus seguidores, exigiu que abandonassem tudo, inclusive os laços familiares, para segui-lo (Mc 10,29-30). E deu o exemplo. Assim se deduz de sua frase que não tinha nem “uma pedra onde reclinar a cabeça” (Lc 9,58). Havia sido um mestre muito coerente e praticou o que ensinou.
 

Ficou curioso? – Se você gostou e quer ler os Evangelhos apócrifos de Maria Madalena e de Filipe, solicite por E-mail e lhe enviaremos o arquivo gratuitamente.

sábado, 18 de maio de 2013

O Início da Igreja


Este domingo é uma grande festa missionária. Marca a transformação da Igreja de uma seita judaica para uma comunidade universal, missionária, comprometida com a construção do Reino de Deus "até os confins da Terra". A liturgia deste final de semana nos apresenta a descida do Espírito Santo sobre a comunidade dos discípulos, em duas tradições: a de Lucas (Atos 2,1-11) e a de João (João 20, 19-23). 

Diferença – Uma leitura fundamentalista da Bíblia leva a gente a um beco sem saída, pois, em João, a Ressurreição, a Ascensão e a descida do Espírito se deram no mesmo dia (domingo de Páscoa, dia 9 de abril do ano 30), enquanto Lucas descreve a ascensão e a descida do Espírito cinquenta dias depois. Assim, devemos ler os textos dentro dos interesses teológicos dos dois autores: os 50 dias de Lucas, por exemplo, entre a Ressurreição e a Ascensão, correspondem aos 40 dias da preparação de Jesus no deserto, para a sua missão. Da mesma maneira que Jesus ficou "repleto do Espírito Santo" e se lançou na sua missão "com a força do Espírito", a comunidade cristã se preparou durante um período semelhante e, na festa judaica de Pentecostes, também experimentou que "todos ficaram repletos do Espírito Santo".

Atos – “Atos dos Apóstolos” descreve o dia de Pentecostes, quando os discípulos estavam reunidos e veio do céu um barulho, como se fosse uma forte ventania, que encheu a casa onde eles se encontravam. Então apareceram línguas como de fogo, que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Todos ficaram cheios de Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os inspirava.
 

Catequese – Não podemos tomar o texto de Lucas (Atos) como uma reportagem jornalística de acontecimentos históricos. O texto que descreve os acontecimentos do dia do Pentecostes é uma construção, com uma evidente intenção teológica. Para apresentar a sua catequese, Lucas recorre às imagens, aos símbolos, à linguagem poética das metáforas. Precisamos entender estes símbolos, para chegarmos à interpelação essencial que a catequese primitiva quis transmitir. 

Símbolos – Nos primeiros versículos, o ambiente é o de uma casa, onde os discípulos se reuniram. Lembra que estavam reunidos três grupos distintos: os Onze, as mulheres (entre as quais Maria, a mãe de Jesus) e os irmãos do Senhor. A expressão externa da descida do Espírito é o "falar em outras línguas" (não o "falar em línguas" – glossolalia – tão valorizado por muitos grupos de cunho neopentecostal). 

Ouvir e compreender – No meio do texto o ambiente muda: da casa para um lugar público, provavelmente o pátio do Templo. O sinal visível da presença do Espírito não é mais o falar em outras línguas, mas o fato de que todos os presentes – destacado por três vezes – pudessem "ouvir os discípulos falarem, na sua própria língua". O termo "ouvir" implica também "compreender". Lucas quer enfatizar que o dom do Espírito Santo tem um objetivo missionário e profético. O texto é uma releitura da Torre de Babel, em que a língua única era o instrumento de um projeto de dominação (uma torre até o céu), que foi destruído por Deus, pela diversidade de línguas.

Missão – O Pentecostes de “Atos” é uma página programática da Igreja e anuncia aquilo que será o resultado da ação das “testemunhas” de Jesus: a humanidade nova, a anti-Babel, nascida da ação do Espírito, onde todos serão capazes de comunicar e de se relacionar como irmãos, porque o Espírito reside no coração de todos como lei suprema, como fonte de amor e de liberdade.

Evangelho – O Evangelho de João descreve o anoitecer, o primeiro da semana. É um quadro que reproduz a situação de uma comunidade desamparada no meio de um ambiente hostil e, portanto, desorientada e insegura. É uma comunidade que perdeu as suas referências e a sua identidade e que não sabe, agora, a que se agarrar. Quando estavam reunidos com as portas fechadas, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: "A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio. Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos".
 

Evangelho de João – Em João é o próprio Jesus que aparece aos Apóstolos e doa o Espírito Santo. O evangelista quer destacar que os discípulos, fazendo a experiência do encontro com Jesus ressuscitado, redescobriram o seu centro, o seu ponto de referência, à volta do qual a comunidade se constrói e toma consciência da sua identidade. A comunidade cristã só existe consistentemente se está centrada em Jesus ressuscitado. Duas vezes o Cristo proclama o seu desejo para os seus discípulos: "A paz esteja com vocês". Na verdade, Jesus usou o termo hebraico “Shalom!” que tem um significado bem mais amplo que a palavra paz. O "Shalom" é a paz que vem da presença de Deus, da justiça do Reino. Envia os seus discípulos na missão árdua em favor do Reino e promete o “shalom”, pois Ele nunca abandonará aquele que procura viver, na fidelidade, o projeto de Deus.  

Reino – Que a celebração de Pentecostes nos anime a buscar um mundo onde o Shalom realmente possa reinar; não a paz falsa da opressão e injustiça, mas, do Reino de Deus, fruto de justiça, solidariedade e fraternidade. Jesus nos deu o Espírito Santo – agora depende de nós usarmos essa força que temos, na construção do mundo que Deus quer.

sábado, 11 de maio de 2013

Jesus proibiu o divórcio?


Conforme a Lei Judaica, todo judeu podia se divorciar de sua mulher. Era um direito outorgado por Moisés: “Se um homem se casa com uma mulher, e depois descobre nela algo que não lhe agrada, ele deverá escrever uma carta de divórcio, entregar a ela e despedi-la de sua casa” (Dt 24,1). Durante a pregação de Jesus, os fariseus se acercaram Dele e perguntaram em que casos um homem poderia divorciar-se de sua mulher. Jesus respondeu que “nunca, porque o homem não pode separar o que Deus uniu”. Porque Jesus assumiu uma postura tão rígida (e contrária ao judaísmo) diante do matrimônio? 

Novo Testamento – Lendo o Novo Testamento, entretanto, verificamos com surpresa que a ordem determinante de Jesus foi suavizada pelos autores bíblicos, sendo adaptada às diversas circunstâncias da pregação da Boa Nova. No Novo Testamento encontramos quatro versões diferentes.  

Paulo – O texto mais antigo está na 1ª Carta aos Corintios, em que Paulo diz: “Aos que estão casados, tenho uma ordem. Aliás, não eu, mas o Senhor: a esposa não se separe do marido; e caso venha a separar-se, não se case de novo, ou então se reconcilie com o marido. E o marido não se divorcie de sua esposa.’” (1Cor 7,10-11). Até aqui, Paulo repete os dizeres da Jesus. Porém, Paulo acrescenta uma exceção: “Se o não cristão quiser separar-se, que se separe. Nesse caso, o irmão ou irmã não estão vinculados, pois foi para viver em paz que Deus nos chamou.” (1Cor 7,15). Paulo permitiu esta exceção porque constatava em suas comunidades que, quando um pagão se convertia ao cristianismo, nem sempre era acompanhado por seu cônjuge, gerando tensões. Ou seja, apenas 20 anos após a morte de Jesus, Paulo já permitiu o divórcio em suas comunidades alegando que poderiam “viver em paz”.  

Marcos – Por volta do ano 68 (38 anos após a morte de Jesus), foi escrito o Evangelho de Marcos, com um ensinamento diferente sobre o divórcio. Segundo Marcos, na discussão com os fariseus, Jesus disse que o homem não deve divorciar-se de sua mulher (Mc 10,9); quando os discípulos lhe pediram uma explicação, ele esclareceu: “O homem que se divorciar de sua mulher e se casar com outra, cometerá adultério contra a primeira mulher. E se a mulher se divorciar do seu marido e se casar com outro homem, ela cometerá adultério”. (Mc 10,11-12). Temos aqui uma nova adaptação das palavras de Jesus: Marcos não proíbe o homem de separar-se. Pode separar-se. O que não pode é casar-se outra vez. Portanto, se o cristão de sua comunidade (Roma) tivesse problemas com sua mulher, podia divorciar-se e seguir considerando-se cristão. Outra inovação do texto de Marcos é a possibilidade da mulher se divorciar. 

Lucas – Nos anos 80 Lucas nos apresenta mais uma versão para o divórcio: “Todo homem que se divorcia da sua mulher, e se casa com outra, comete adultério; e quem se casa com mulher divorciada do seu marido, comete adultério”.  (Lc 16,18). Segundo este texto, Jesus não só proibiu um divorciado voltar a casar-se, mas também um solteiro a casar-se com uma divorciada, talvez seguindo o Antigo Testamento (Lv 21,7). 

Mateus – Por fim, nos anos 90, Mateus nos apresenta uma quarta norma. Segundo ele, Jesus disse aos fariseus: Jesus respondeu: “Moisés permitiu o divórcio, porque vocês são duros de coração. Mas não foi assim desde o início. Eu, por isso, digo a vocês: quem se divorciar de sua mulher, a não ser em caso de fornicação, e casar-se com outra, comete adultério” (Mt 19,8-9). Nestes casos, o homem pode divorciar-se e voltar a casar-se. 

Afinal, o que Jesus disse – Não sabemos exatamente qual foi o ensinamento de Jesus (certamente proibiu o divórcio), pois nos quatro textos que chegaram a nós, os autores bíblicos adaptaram as palavras de Jesus segundo as necessidades de cada comunidade: segundo Paulo, Jesus permitiu o divórcio se um cônjuge se convertia ao cristianismo e o outro não; segundo Mateus, Jesus permitiu o divórcio em caso de imoralidade; segundo Marcos, Jesus proibiu que um divorciado voltasse a casar; e segundo Lucas, proibiu inclusive que um solteiro se case com uma divorciada. 

A Igreja Católica – A Igreja também ficou indecisa em aplicar os ensinamentos de Jesus. Até os séculos III e IV, alguns Santos Padres rechaçaram absolutamente o divórcio, enquanto outros o aceitavam em caso de adultério. Vários Concílios da Igreja aceitaram e regularam o divórcio, como, por exemplo, o Concílio de Verberie (752), que estabelecia: “Se uma mulher planeja matar o seu marido, e este pode provar, ele pode divorciar-se dela e tomar outra esposa”. O Concílio de Compiegne (757) afirmava: “Se um enfermo de lepra permitir, sua mulher pode casar-se com outro”. 

Situação atual – Somente no final do século XII, com o Papa Alexandre III, estabeleceu de maneira definitiva a postura atual da Igreja Católica, que proíbe absolutamente o divórcio e um novo casamento. O Catecismo da Igreja Católica não reconhece como válida uma segunda união, determinando que o homem e a mulher não podem ter acesso à Comunhão Eucarística e a responsabilidades eclesiais enquanto perdurar a situação (§1650). O divórcio separa o que Deus uniu (§1664).

sábado, 4 de maio de 2013

Se não vos tornardes como meninos...


Deixai os meninos, e não os impeçais de vir a mim, porque deles é o reino dos céus (Mt 19, 14). 

Ternura – Jesus demonstra afeto e ternura para com as crianças. Quando os Doze tentaram afastá-las dele, indignou-se (Mc 10,13-16, Mt 19,13-15 e Lc 18,15-17). Pode parecer estranho que Jesus, solteiro, sem filhos, tivesse por aqueles pequenos – descalços, esfarrapados, frequentemente doentes – uma ternura que os Doze não sentiam, sendo na maior parte casados e tendo filhos (1Cor 9,5). Mas talvez fosse exatamente essa condição que não lhes permitia espalhar afeto e ternura além das paredes do lar.  

Oposição dos doze – O motivo fundamental da oposição dos Doze àqueles "pequeninos" era, na realidade, outro. Devido à situação sóciojurídica das crianças, Jesus ensinava, na prática, qual era a verdadeira grandeza no seio da Comunidade (Mt 18,1-6, Mc 9, 33-37 e Lc 9,46-48). Para os contemporâneos de Jesus, o nascimento de um menino era uma graça de Deus (Salmos 126,3-5;127,3-4), a garantia do futuro religioso, nacional e político da estirpe, se bem que o menino, o herdeiro, enquanto não atingisse a maioridade, não diferia em nada de um "escravo" (Gl 4,1). Fora do âmbito da casa e da escola, preocupar-se com uma criança era considerado, na melhor das hipóteses, perda de tempo. Para um rabino, portanto, acariciar e abraçar as crianças, como Jesus fazia, era aviltar a própria dignidade. Por esse motivo, os Doze cerravam fileiras em torno daquele que, orgulhosamente, chamavam de Mestre. 

Argumento eficaz – Pois bem, era exatamente essa condição jurídica da criança, para Jesus, um ótimo argumento para desmontar a soberba dos Doze, preocupados em saber qual deles seria o maior e para sugerir um modelo de comportamento. Com certeza, Jesus não falava para induzir à infantilidade e muito menos para tecer inverdades à virtude infantil. Pelo contrário, a única vez que Jesus faz uma avaliação das qualidades naturais da criança, define-a como caprichosa, arrogante e incapaz de levar a cabo uma brincadeira que seja (Mt 11,16-19; Lc 7,31-35).  

No que ser criança – Mas existe um primado, pertencente à criança, ao qual o discípulo de Cristo deve inclinar-se: o de colocar-se em último lugar, como naquela época a lei determinava que devia ser. Colocar-se em último lugar para servir, não para ser servido e dar a própria vida para a redenção dos irmãos (Mc 10,45 e passagens paralelas). 

Modelo de conversão – Alguns exegetas acreditavam que os adjetivos "mikros", "pequeno", "mikroteros", "menor", talvez fossem sinônimos de "paidion", "criança". Pensou-se em encontrar um exemplo dessa aproximação em Mateus 18,1-6. Mas Jesus, na realidade, apresenta um menino como modelo de conversão aos discípulos, caso quisessem entrar no Reino dos céus, ou seja, se quisessem fazer parte da Igreja, a qual, embora não seja o Reino dos céus, é o húmus em que o Reino se desenvolve. 

Recomendações – No versículo 5, passando do símbolo à realidade, Jesus recomenda o acolhimento terno e afetuoso das crianças – quem as acolhe, alimenta, veste, educa, acolhe a Cristo. No versículo 6, que se liga ao precedente pela repetição de termos, é transmitido um ensinamento ministrado por Jesus em outras circunstâncias sobre a gravidade do pecado do escândalo: "Porém, o que escandalizar um destes pequeninos, que creem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço a mó dum moinho, e que o lançassem ao fundo do mar". 

Quem? são os pequeninos – Os "pequeninos" desse versículo não são as crianças — que certamente não estão excluídas, mas os discípulos, que em outras ocasiões são chamados de "mikroi", "pequeninos" (Mt 18, 10; 10, 42; 11, 11; Lucas 12, 32). Quem consegue tornar-se "pequeno" é efetivamente "grande" no seio da Comunidade: "Aquele que entre vós todos é o menor, esse ó o maior" (Lc 9,48).