sábado, 26 de abril de 2008

O Espírito Santo

  

O Evangelho deste domingo nos apresenta a Última Ceia. Nessa noite de quinta-feira, 6 de abril do ano 30, na véspera da sua morte na cruz, Jesus reuniu-Se com os seus discípulos pela última vez.

 

Despedida – No decurso da “ceia”, Jesus despediu-Se dos discípulos e fez-lhes as últimas recomendações. As palavras de Jesus soam a “testamento final”: Ele sabe que vai partir para o Pai e que os discípulos vão continuar no mundo. Jesus fala-lhes, então, do caminho que percorreu (e que ainda tem de percorrer, até a consumação da sua missão e até chegar ao Pai); e convida os discípulos a seguir o mesmo caminho de entrega a Deus e de amor radical aos irmãos. É seguindo esse “caminho” que eles se tornarão Homens Novos e que chegarão a ser “família de Deus”.

 

Insegurança – Os discípulos, no entanto, estão inquietos e desconcertados. Será possível percorrer esse “caminho” se Jesus não caminhar ao lado deles? Como é que eles manterão a comunhão com Jesus e como receberão d’Ele a força para doar, dia-a-dia, a própria vida? No entanto, Jesus garante aos discípulos que não os deixará sós no mundo. Ele vai para o Pai, mas, vai encontrar uma forma de continuar presente e de acompanhar, passo a passo, a caminhada dos seus discípulos.

 

Paráclito – Jesus fala no envio do “Paráclito”, que estará sempre com os discípulos. A palavra grega “paráklêtos”, utilizada por João, pertence ao vocabulário jurídico e designa, nesse contexto, aquele que ajuda ou defende o acusado. Pode, portanto, traduzir-se como “advogado”, “auxiliar”, “defensor”. A partir daqui, pode deduzir-se, também, o sentido de “consolador” ou “intercessor”. No Novo Testamento, a palavra só aparece em João, onde é usada para designar o Espírito (Jo 14,26; 15,26; 16,7) ou o próprio Jesus (que no céu, cumpre uma missão de intercessão - 1Jo 2,1).

 

Espírito Santo – O “Paráclito” que Jesus vai enviar é o Espírito Santo – apresentado aqui como o “Espírito da Verdade”. Enquanto esteve com os discípulos, Jesus ensinou-os, protegeu-os, defendeu-os; mas, a partir de agora, será o Espírito que ensinará e cuidará da comunidade de Jesus. O Espírito desempenhará, nesse contexto, um duplo papel: conservará a memória da pessoa e dos ensinamentos de Jesus, ajudando os discípulos a interpretarem esses ensinamentos à luz dos novos desafios, e dará segurança aos discípulos, guiando e defendendo-os quando tiverem de enfrentar a oposição e a hostilidade do mundo. Em qualquer dos casos, o Espírito conduzirá essa comunidade em marcha pela história, ao encontro da verdade, da liberdade plena, da vida definitiva.

 

Órfãos – Depois de garantir aos discípulos o envio do “Paráclito”, Jesus reafirma que não os deixará “órfãos” no mundo. A palavra utilizada (“órfãos”) é muito significativa: no Antigo Testamento, o “órfão” é o protótipo do desvalido, do desamparado, do que está totalmente à mercê dos poderosos e que é a vítima de todas as injustiças. Jesus é claro: os seus discípulos não vão ficar indefesos, pois Ele vai estar ao lado deles.

 

Comunhão – É verdade que Ele vai deixar o mundo, vai para o Pai. O “mundo” não mais O verá, pois Ele não estará fisicamente presente. No entanto, os discípulos poderão “vê-l’O”, “contemplá-l’O”: eles continuarão em comunhão de vida com Jesus e receberão o Espírito, que lhes transmitirá, dia-a-dia, a vida de Jesus ressuscitado.

 

Família – Nesse dia (o dia em que Jesus for para o Pai e os discípulos receberem o Espírito), a comunidade descobrirá – por ação do Espírito – que faz parte da família de Deus. Jesus identifica-Se com o Pai, por ter o mesmo Espírito; os discípulos identificam-se com Jesus, por ação do Espírito. A comunidade cristã está unida com o Pai, através de Jesus, numa experiência de unidade e de comunhão de vida entre Deus e o homem. Nesse dia, a comunidade será a presença de Deus no mundo: ela e cada membro dela convertem-se em morada de Deus; o espaço onde Deus vem ao encontro dos homens. Na comunidade dos discípulos e por meio dela, realiza-se a ação salvadora de Deus no mundo.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

O Caminho de Jesus

  

A liturgia deste domingo convida-nos a refletir sobre a Igreja: é a comunidade dos discípulos que seguem o “caminho” de Jesus – “caminho” de obediência ao Pai e de dom da vida aos irmãos.

 Despedida – O ambiente em que este trecho nos coloca é o de uma ceia de despedida. Nessa ceia (realizada na quinta-feira à noite, pouco tempo antes da prisão, na véspera da morte), estão Jesus e os discípulos. Durante a ceia, Jesus despede-Se dos discípulos e faz-lhes as suas últimas recomendações. As palavras de Jesus soam a “testamento” final: Ele sabe que vai partir para o Pai e que os discípulos vão continuar no mundo.

 

Incertezas – Os discípulos, por sua vez, já perceberam que o ambiente é de despedida e que, daí a poucas horas, o Mestre vai ser tirado deles. Estão inquietos e preocupados. A aventura que eles começaram com Jesus, na Galiléia, terá chegado ao fim? Essa relação que eles construíram com o Mestre irá morrer? Os discípulos não sabem o que vai acontecer nem que caminho vão, a partir daí, percorrer. Sobretudo, não sabem como é que manterão, após a partida de Jesus, a sua relação com Ele e com o Pai.

 

Comunhão – A catequese desenvolvida pelo autor do Quarto Evangelho, neste diálogo de Jesus com os discípulos, é de uma impressionante densidade teológica. Vamos tentar esmiuçar o conteúdo e pôr em relevo os pontos fundamentais. O plano de salvação de Deus passa por estabelecer com os homens uma relação de comunhão, de familiaridade, de amor. Por isso Jesus veio ao mundo: para tornar os homens “filhos de Deus”.

 

Método – Como é que Jesus concretizou esse projeto? Ele “montou a sua tenda no meio dos homens” (Jo 1,14) e ofereceu aos homens um “caminho” de vida em plenitude: mostrou aos homens, na sua própria pessoa, como é que eles podem ser Homens Novos – isto é, homens que vivem na obediência total aos planos do Pai e no amor aos irmãos. Viver desse jeito é viver numa dinâmica divina, entrar na intimidade do Pai, tornar-se “filho de Deus”.

 

Homem Novo – Na ceia de despedida, Jesus sente que está começando o último ato da missão que o Pai lhe confiou (criar o Homem Novo). Falta oferecer aos discípulos a última lição – a lição do amor que se dá até à morte; falta também o dom do Espírito, que capacitará os homens para viverem como Jesus, na obediência a Deus e na entrega aos homens. Para que esse último ato se cumpra, Jesus tem que passar pela morte: tem que “ir para o Pai”. Ao dizer “vou preparar-vos um lugar”, Jesus sugere que tem que ir ao encontro do Pai, para que os homens possam fazer parte da família de Deus.

 

Família – Nessa família há lugar para todos os homens (“na casa de meu Pai há muitas moradas”): basta que sigam “o caminho” de Jesus” – isto é, que escutem as suas propostas e que aceitem viver como Homens Novos, no amor e no dom da vida. A “casa do Pai” é a comunidade dos seguidores de Jesus (a Igreja). Qual é o “caminho” para chegar a fazer parte dessa família de Deus?

 

Caminho – A resposta é simples… O “caminho” é Jesus: é a sua vida, os seus gestos de amor e de bondade, a sua morte (dom da vida por amor) que mostram aos homens o itinerário que eles devem percorrer. Ao aceitarem percorrer esse “caminho” de identificação com Jesus, os homens estão indo ao encontro da verdade e da vida em plenitude. Quem aceita percorrer esse “caminho” de amor, de entrega, de dom da vida, chega até ao Pai e torna-se – como Jesus – “filho de Deus”.

 

Pai e Jesus – Ao identificarem-se com Jesus, os discípulos estabelecem uma relação íntima e familiar com o Pai, porque o Pai e Jesus são um só. O Pai está presente em Jesus. Quem adere a Jesus e estabelece com Ele laços de amor, já faz parte da família do Pai, porque Jesus é Deus que veio ao encontro dos homens: as obras de Jesus são as obras do Pai; o seu amor é o amor do Pai; a vida que Ele oferece é a vida que o Pai dá aos homens.

 

Conclusão – Os discípulos de Jesus têm que percorrer um “caminho”, até chegarem a ser família de Deus. Esse “caminho” foi traçado por Jesus, na obediência a Deus e no amor aos homens. É no final desse “caminho” que os discípulos – tornados Homens Novos – encontrarão o Pai e serão integrados na família de Deus.

sábado, 5 de abril de 2008

AO PARTIR O PÃO, OS DISCÍPULOS O RECONHECERAM

  

O Evangelho deste domingo nos coloca para caminhar com dois discípulos de Jesus que, no domingo, vão de Jerusalém para Emaús.

 

Catequese – Trata-se de uma página de catequese escrita no final do primeiro século, na qual o autor não se preocupou com a descrição fiel de acontecimentos nem com as incongruências do texto. De acordo com o autor, os dois homens dirigiam-se para uma aldeia chamada Emaús, a 12 quilômetros de Jerusalém. Uma localidade com esse nome, a essa distância de Jerusalém é, no entanto, desconhecida. Estes discípulos partiram para a sua aldeia, na manhã de Páscoa, sem, no entanto, investigar os rumores de que o túmulo estava vazio e que Jesus tinha ressuscitado. Fica claro que o objetivo do autor é ensinar aos cristãos para quem escreve (na década de 80) como é que podem descobrir que Jesus está vivo e como podem fazer a experiência do encontro com Jesus ressuscitado.

 

Messias fracassado – A cena coloca-nos, em primeiro lugar, diante de dois discípulos que vão a caminho de Emaús. Um chama-se Cléofas; o outro não é identificado (podia ser ”qualquer um” dos crentes). Os dois estão, nitidamente, tristes e desanimados, pois os seus sonhos de triunfo e de glória ao lado de Jesus ruíram pela base, aos pés de uma cruz. Esse Messias poderoso, capaz de derrotar os opressores, de restaurar o reino grandioso de David revelou-se um grande fracasso. Em lugar de triunfar, morreu numa cruz; e a sua morte é um fato consumado pois ”é já o terceiro dia depois que isto aconteceu”. Abandonam a comunidade e regressam à sua aldeia, dispostos a esquecer o sonho.

 

Jesus – Na seqüência, o autor do relato introduz no quadro um novo personagem: Jesus. Ele faz-se companheiro de viagem desses discípulos em caminhada, interroga-os sobre ”o que se passou nestes dias” em Jerusalém, escuta as suas preocupações, torna-se o confidente das suas frustrações. Para responder às inquietações dos dois discípulos e para lhes demonstrar que o projeto de Deus não passava por quadros de triunfo humano, mas, pelo amor até às últimas conseqüências e pelo dom da vida, ”começando por Moisés e passando pelos profetas, explicou-lhes em todas as Escrituras o que lhe dizia respeito”. É na escuta e na partilha da Palavra que o plano salvador de Deus ganha sentido: só através da Palavra de Deus – explicada, meditada e acolhida – o crente pode perceber que o amor até às últimas conseqüências e o dom da vida não são um fracasso, mas geram vida nova e definitiva.

 

Em Emaús – Os três (Jesus, Cléofas e o discípulo não identificado) chegam, finalmente, a Emaús. Os discípulos continuam a não reconhecer Jesus, mas convidam-n’O a ficar com eles. Ele aceita e sentam-se à mesa. Enquanto comiam, Jesus ”tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e lhes entregou”. As palavras usadas por Lucas para descrever os gestos de Jesus evocam a celebração eucarística da Igreja primitiva. Dessa forma, Lucas recorda aos membros da sua comunidade que é possível encontrar Jesus vivo e ressuscitado na celebração eucarística dominical: sempre que os irmãos se reúnem em nome de Jesus para ”partir o pão”, Jesus lá está, vivo e atuante, no meio deles. A última cena da nossa história põe os discípulos regressando a Jerusalém para anunciar aos irmãos que Jesus está, efetivamente, vivo.

 

Comunidade – Quando Lucas escreve o seu Evangelho (década de 80), a comunidade cristã defrontava-se com algumas dificuldades. Tinham decorrido cerca de cinqüenta anos depois da morte de Jesus, em Jerusalém. A catequese dizia que Ele estava vivo; mas, no dia-a-dia de uma vida monótona, cansativa e cheia de dificuldades, era difícil fazer essa experiência. As testemunhas oculares de Jesus tinham já desaparecido e os acontecimentos da paixão, morte e ressurreição pareciam demasiado distantes, ilógicos e irreais. ”Se Jesus ressuscitou e está vivo, como posso encontrá-l’O? Onde e como posso fazer uma verdadeira experiência de encontro real com esse Jesus que a morte não conseguiu vencer? Porque é que Ele não aparece de forma gloriosa e não instaura um reino de glória e de poder, que nos faça triunfar definitivamente sobre os nossos adversários?”.

 

Eucaristia – É a isso que o catequista Lucas vai procurar responder. A sua mensagem dirige-se a esses crentes que caminham desanimados pela vida. Nessa narração de Lucas, aparece a idéia de que é na celebração comunitária da Eucaristia que os crentes fazem a experiência do encontro com Jesus vivo e ressuscitado. A narração apresenta o esquema litúrgico da celebração eucarística: a liturgia da Palavra (a ”explicação das Escrituras” – que permite aos discípulos entenderem a lógica do plano de Deus em relação a Jesus) e o ”partir do pão” (que faz com que os discípulos entrem em comunhão com Jesus).

domingo, 30 de março de 2008

MEU SENHOR E MEU DEUS

  

No Evangelho das missas deste domingo (Jo 20, 19-31) , Jesus aparece aos apóstolos e a Tomé.

 

Medo – A comunidade criada a partir da ação de Jesus está reunida no cenáculo, em Jerusalém. Está desamparada e insegura, cercada por um ambiente hostil. O medo vem do fato de não terem ainda feito a experiência de Cristo ressuscitado.

 

No meio deles – Na primeira parte do Evangelho, descreve-se uma “aparição” de Jesus aos discípulos. Depois de sugerir a situação de insegurança e de fragilidade em que a comunidade estava (o “anoitecer”, as “portas fechadas”, o “medo”), o autor deste texto apresenta Jesus “no centro” da comunidade. Ao aparecer “no meio deles”, Jesus assume-se como ponto de referência, fator de unidade, videira à volta da qual se enxertam os ramos. A comunidade está reunida à volta d’Ele, pois Ele é o centro onde todos vão beber essa vida que lhes permite vencer o “medo” e a hostilidade do mundo.

 

Shalom – A esta comunidade fechada, com medo, mergulhada nas trevas de um mundo hostil, Jesus transmite duplamente a paz (“shalom” hebraico, no sentido de harmonia, serenidade, tranqüilidade, confiança, vida plena). Assegura-se, assim, aos discípulos que Jesus venceu aquilo que os assustava (a morte, a opressão, a hostilidade do mundo); e que, doravante, os discípulos não têm qualquer razão para ter medo.

 

Sinais – Depois, Jesus revela a sua “identidade”: nas mãos e no lado trespassado, estão os sinais do seu amor e da sua entrega. É nesses sinais de amor e de doação que a comunidade reconhece Jesus vivo e presente no seu meio. A permanência desses “sinais” indica a permanência do amor de Jesus: Ele será sempre o Messias que ama e do qual brotarão a água e o sangue que constituem e alimentam a comunidade.

 

Espírito – Em seguida, Jesus “soprou” sobre os discípulos reunidos à sua volta. O verbo aqui utilizado é o mesmo do texto grego de Gn 2,7 (quando se diz que Deus soprou sobre o homem de argila, infundindo-lhe a vida de Deus). Com o “sopro” de Gn 2,7, o homem tornou-se um ser vivente; com este “sopro”, Jesus transmite aos discípulos a vida nova que fará deles homens novos. Agora, os discípulos possuem o Espírito, a vida de Deus, para poderem – como Jesus – dar-se generosamente aos outros. É este Espírito que constitui e anima a comunidade de Jesus.

 

Tomé – Na segunda parte do Evangelho, apresenta-se uma catequese sobre a fé. Tomé representa aqueles que vivem fechados em si próprios (está fora) e que não faz caso do testemunho da comunidade, nem percebe os sinais de vida nova que nela se manifestam. Em lugar de se integrar e participar da mesma experiência, pretende obter (apenas para si próprio) uma demonstração particular de Deus.

 

Eucaristia – Tomé acaba, no entanto, por fazer a experiência de Cristo vivo no interior da comunidade. No “dia do Senhor” Cristo volta a estar com a sua comunidade. É uma alusão clara ao Domingo, ao dia em que a comunidade é convocada para celebrar a Eucaristia: é no encontro com o amor fraterno, com o perdão dos irmãos, com a Palavra proclamada, com o pão de Jesus partilhado, que se descobre Jesus ressuscitado.

 

A experiência de Tomé não é exclusiva das primeiras testemunhas; todos os cristãos de todos os tempos podem fazer esta mesma experiência.

domingo, 23 de março de 2008

ELE VIU E ACREDITOU

  

Neste domingo celebramos a Páscoa cristã. O texto do Evangelho lido nas missas é padrão para esta comemoração: Jo 20,1-9.

 

Novo tempo – O texto começa com uma indicação aparentemente cronológica, mas que deve ser entendida sobretudo em chave teológica: “no primeiro dia da semana”. Significa que começou um novo ciclo – o da nova criação, o da Páscoa definitiva. Aqui começa um novo tempo, o tempo do homem novo, que nasce a partir da doação de Jesus.

 

Madalena – A primeira personagem em cena é Maria Madalena: ela é a primeira a dirigir-se ao túmulo de Jesus (ainda o sol não tinha nascido), na manhã do “primeiro dia da semana”. Ela representa a nova comunidade, que nasceu da ação criadora e vivificadora do Messias; essa nova comunidade, testemunha da cruz, inicialmente acredita que a morte triunfou e vai procurar Jesus no sepulcro: é uma comunidade perdida, desorientada, insegura, desamparada, que ainda não conseguiu descobrir que a morte foi derrotada; mas, diante do sepulcro vazio, a nova comunidade apercebe-se de que a morte não venceu e que Jesus continua vivo.

 

Discípulos – Na seqüência, o autor do quarto Evangelho apresenta uma catequese sobre a dupla atitude dos discípulos diante do mistério da morte e da ressurreição de Jesus. Essa dupla atitude é expressa no comportamento de dois discípulos que, na manhã da Páscoa, correm ao túmulo de Jesus: Simão Pedro e um “outro discípulo” não identificado (mas que parece ser o “discípulo amado”, apresentado no Quarto Evangelho como modelo ideal do discípulo).

 

Discípulo Amado – O autor coloca estas duas figuras lado a lado em várias circunstâncias: na última ceia, é o “discípulo amado” que percebe quem está do lado de Jesus e quem O vai trair (Jo 13,23-25); na paixão, é ele que consegue estar perto de Jesus no átrio do sumo sacerdote, enquanto Pedro O trai (Jo 18,15-18.25-27); é ele que está junto da cruz quando Jesus morre (Jo 19,25-27); é ele quem reconhece Jesus ressuscitado nesse vulto que aparece aos discípulos no lago de Tiberíades (Jo 21,7). Nas outras vezes, o “discípulo amado” levou sempre vantagem sobre Pedro. Aqui, isso irá acontecer outra vez: o “outro discípulo” correu mais e chegou ao túmulo primeiro que Pedro (o fato de se dizer que ele não entrou logo pode querer significar a sua deferência e o seu amor, que resultam da sua sintonia com Jesus); e, depois de ver, “acreditou” (o mesmo não se diz de Pedro).

 

Morte e ressurreição - Provavelmente, o autor do Quarto Evangelho quis descrever, através destas figuras, o impacto produzido nos discípulos pela morte de Jesus e as diferentes disposições existentes entre os membros da comunidade cristã. Em geral Pedro representa, nos Evangelhos, o discípulo obstinado, para quem a morte significa fracasso e que se recusa a aceitar que a vida nova passe pela humilhação da cruz (Jo 13,6-8.36-38; 18,16.17.18.25-27; cf. Mc 8,32-33; Mt 16,22-23). Ao contrário, o “outro discípulo” é o “discípulo amado”, que está sempre próximo de Jesus, que faz a experiência do amor de Jesus; por isso, corre ao seu encontro de forma mais decidida e “percebe” – porque só quem ama muito percebe certas coisas que passam despercebidas aos outros – que a morte não pôs fim à vida.

 

Homem Novo – Esse “outro discípulo” é, portanto, a imagem do discípulo ideal, que está em sintonia total com Jesus, que corre ao seu encontro com um total empenho, que compreende os sinais e que descobre (porque o amor leva à descoberta) que Jesus está vivo. Ele é o paradigma do Homem Novo, do homem recriado por Jesus.

 

Que a mensagem da Ressurreição, da vitória da vida sobre a morte, nos anime e dê força, especialmente quando a Cruz pesar muito em nossas vidas.

sábado, 15 de março de 2008

A LOUCURA DA CRUZ

  

O mês de março 2008 é assinalado pela celebração de Páscoa. Esta é a festa da vitória da Vida sobre a morte ou a festa da conversão da morte em canal para a Vida ou ainda a festa da recriação do ser humano ferido pelo pecado.

 

A Cruz Essa grandiosa realidade é expressa por um símbolo muito significativo para os cristãos: a cruz. Na época anterior a Cristo, a norte na cruz era o maior símbolo de desonra, reservada aos escravos e ao rebotalho da sociedade. O crucificado era geralmente privado de sepultura e abandonado aos animais selvagens e às aves de rapina. Dizia Cícero (filósofo, orador, escritor, advogado e político romano nascido no ano 106 a.C.) que “a cruz era o suplício mais cruel e mais repugnante”, e Sêneca (filósofo e escritor romano nascido no ano 4 a.C.) a tachava de “poste infamante e sinal de vergonha”.

 

Loucura – Deus Filho feito homem quis assumir o suplício da cruz. Ele, o Santo e Inocente.., a fim de mudar-lhe o significado, pois fez da cruz o preâmbulo da ressurreição. Ele nada devia à morte; por isto atravessou a morte e reapareceu como nova criatura. Esta inversão dos significados podia parecer loucura aos olhos da razão.

 

Cristãos loucos – Um desenho encontrado na colina do Palatino em Roma estampa um homem em oração diante da imagem de um Crucificado com cabeça de burro; uma inscrição explicava: “Alexâmenos adora o seu Deus”. São Justino (conhecido como Justino Mártir, foi um teólogo do século II, nascido no ano 100 d.C.) escreveu: “Os pagãos dizem que a nossa demência consiste em colocar um homem crucificado em segundo lugar, depois de Deus imutável e eterno, Deus criador do mundo” (Apologia 113,4). Os judeus pensavam do mesmo modo ao dizerem: “Colocais vossa esperança num homem que foi crucificado”.

 

Cruz – Trono – Os cristãos, a princípio, sentiram o desconcerto provocado pela reviravolta. Não ousavam representar Cristo na cruz, mas ornavam-na com pedras preciosas e flores: desejavam assim caracterizá-la como o trono em que reina o Senhor da glória. Observavam que a cruz estende sua haste vertical e seus braços na direção dos quatro pontos cardeais. Santo lreneu (conhecido como Ireneu de Lião, foi um Padre da Igreja, teólogo e escritor cristão que nasceu no ano 130 d.C.), escreveu, aludindo a essa dimensão cósmica da Cruz: “O autor do mundo no plano invisível contém todas as coisas criadas e encontra-se gravado (em forma de cruz) em toda a criação” (Contra as Heresias V 18, 3).

 

A Cruz de Cristo – Ora todo cristão é chamado a carregar uma parcela da cruz de Cristo. E para desejar que a carregue em atitude de Páscoa, ciente de que está sendo acompanhado pelo Autor da Vida, que venceu a morte num duelo admirável. Lembre-se do Apóstolo São Paulo: vítima de maltratos e intimidações diversas, podia escrever, salientando o paradoxo ou a loucura da Cruz: “É na fraqueza (do homem) que a força (de Deus) manifesta todo o seu poder... Por isto eu me alegro nas fraquezas, humilhações, necessidades, perseguições e angústias por causa de Custo. Pois, quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12, 9s).

 

Páscoa – Quem disto está convicto, jamais perde a alegria de Páscoa, pois sabe que é co-herdeiro com Cristo, é filho no FILHO bem-amado desde toda a eternidade!

 

Este texto – O texto que você acabou de ler foi baseado em um artigo de autoria do Frei Estevão Bettencourt, na Revista “Pergunte e Responderemos” de março de 2005.

sábado, 8 de março de 2008

Eu sou a Ressurreição e a Vida

  

O Evangelho das missas deste domingo nos apresenta a ressurreição de Lázaro (capítulo 11 do Evangelho de João).

 

Família – A cena acontece em Betânia, uma aldeia a Leste do monte das Oliveiras, a cerca de três quilômetros de Jerusalém. O autor da catequese coloca-nos diante de um triste episódio familiar: a morte de um homem. A família mencionada, constituída por três pessoas (Marta, Maria e Lázaro), parece conhecida de Jesus. A visita de Jesus a casa desta família é, aliás, mencionada em Lc 10,38-42; o texto observa que a Maria, aqui referenciada, é a mesma que tinha ungido o Senhor com perfume e lhe tinha enxugado os pés com os cabelos.

 

A história – A catequese se resume em: a família de Betânia é formada por Maria, Marta e Lázaro (não há pai, nem mãe, nem filhos). Trata-se de uma família amiga de Jesus. Um fato abala a vida desta família: um irmão (Lázaro) está gravemente doente. As “irmãs” preocupadas, informam Jesus. Jesus não vai imediatamente ao seu encontro. Depois de dois dias, Jesus resolve dirigir-se à Judéia ao encontro do “amigo”. Ao chegar a Betânia, Jesus encontrou o “amigo” sepultado há já quatro dias. De acordo com a mentalidade judaica, a morte era considerada definitiva a partir do terceiro dia.

 

As irmãs – Por esta altura, entram em cena as “irmãs” de Lázaro. Marta é a primeira. Vem ao encontro de Jesus e insinua a sua reprovação: Jesus podia ter evitado a morte do amigo, se tivesse estado presente, pois onde Ele está reina a vida. Maria, a outra irmã, tinha ficado em casa. Está imobilizada, paralisada pela dor sem esperança. Marta convida a irmã a sair da sua dor e ir ao encontro de Jesus. Maria vai rapidamente, sem dar explicações a ninguém: ela tem consciência de que só em Jesus encontrará uma solução para o sofrimento que lhe enche o coração.

 

Catequese – Jesus inicia a sua catequese dizendo-lhe: “teu irmão ressuscitará”. Marta pensa que as palavras de Jesus são uma consolação banal e que Ele se refere à crença farisaica, segundo a qual os mortos haveriam de reviver, no final dos tempos, quando se registrasse a última intervenção de Deus na história humana. Isso ela já sabe; mas não chega: esse último dia ainda está tão longe…

 

Amigo – Jesus, no entanto, não fala da ressurreição no final dos tempos. O que Ele diz é que, para quem é amigo de Jesus, não há morte, sequer. Jesus é “a ressurreição e a vida”. Para os seus amigos, a morte física é apenas a passagem desta vida para a vida plena. Jesus não evita a morte física; mas Ele oferece ao homem essa vida que se prolonga para sempre. Para que essa vida definitiva possa chegar ao homem é necessário, no entanto, que o homem adira a Jesus e O siga, num caminho de amor e de dom da vida (“todo aquele que vive e acredita em mim, nunca morrerá”).

 

A pedra – A cena da ressurreição de Lázaro começa com Jesus chorando. Não é pranto ruidoso, mas sereno… Jesus chega junto do sepulcro de Lázaro. A entrada da gruta onde Lázaro está sepultado está fechada com uma pedra (como era costume, entre os judeus). A pedra é, aqui, símbolo da definitividade da morte. Separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos, cortando qualquer relação entre um e outro. Jesus, no entanto, manda tirar essa “pedra”: para os crentes, não se trata de duas realidades sem qualquer relação. Jesus, ao oferecer a vida plena, abate as barreiras criadas pela morte física. A morte física não afasta o homem da vida.

 

Dar Vida – A ação de dar vida a Lázaro representa a concretização da missão que o Pai confiou a Jesus: dar vida plena e definitiva ao homem. É por isso que Jesus, antes de mandar Lázaro sair do sepulcro, ergue os olhos ao céu e dá graças ao Pai: a sua oração demonstra a sua comunhão com o Pai e a sua obediência na concretização do plano do Pai. Depois, Jesus mostra Lázaro vivo na morte, provando à comunidade dos crentes que a morte física não interrompe a vida plena do discípulo que ama Jesus e O segue.

 

Comunidade – A família de Betânia representa a comunidade cristã, formada por irmãos e irmãs. Todos eles conhecem Jesus, são amigos de Jesus, acolhem Jesus na sua casa e na sua vida. Essa família também faz a experiência da morte física. Como é que deve lidar com ela? Com o desespero de quem acha que tudo acabou? Com a tristeza de quem acha que a morte venceu, por algum tempo, até que Deus ressuscite o “irmão” morto, no final dos tempos (perspectiva dos fariseus da época de Jesus)? Não; de forma alguma.

 

Vida Plena – Ser amigo de Jesus é saber que Ele é a ressurreição e a vida em todos os momentos. Ele não evita a morte física; mas a morte física é, para os que aderiram a Jesus, apenas a passagem (imediata) para a vida verdadeira e definitiva. Para os “amigos” de Jesus – para aqueles que acolhem a sua proposta e fazem da sua vida uma entrega a Deus e um dom aos irmãos – não há morte… Podemos chorar a saudade pela partida de um irmão, mas temos de saber que, ao deixar este mundo, ele encontrou a vida plena, na glória de Deus.

sábado, 1 de março de 2008

A Luz do Mundo

  

No Evangelho deste domingo (Jo 9,1-41) Jesus apresenta-se como “a luz do mundo”; a sua missão é libertar os homens das trevas do egoísmo, do orgulho e da auto-suficiência.

 

Luz – Continuando a série de leituras evangélicas que procuram ensinar verdades sobre a pessoa e a missão de Jesus, a catequese sobre a “luz” é colocada no contexto da festa das colheitas (Sukkot). Um dos ritos mais populares dessa festa era, exatamente, a iluminação dos quatro grandes candelabros do átrio das mulheres, no Templo de Jerusalém.

 

Pecado – No Novo Testamento, esse é o único texto que traz o relato da cura de um cego de nascença. Os “cegos” faziam parte do grupo dos excluídos da sociedade palestina de então. As deficiências físicas eram consideradas pelos judeus como resultado do pecado. Os rabis da época chegavam a discutir de onde vinha o pecado de alguém que nascia com uma deficiência: se o defeito era o resultado de um pecado dos pais ou se era o resultado de um pecado cometido pela criança no ventre da mãe.

 

Castigo – Segundo a concepção da época, Deus castigava de acordo com a gravidade da culpa. A cegueira era considerada o resultado de um pecado especialmente grave: uma doença que impedisse o homem de estudar a Lei era considerada uma maldição de Deus por excelência. Pela sua condição de impureza notória, os cegos eram impedidos de servir de testemunhas no tribunal e de participar nas cerimônias religiosas no Templo.

 

História – O autor do quarto Evangelho usa símbolos para criar os quadros da história: Jesus é apresentado como a “luz” que veio iluminar o caminho dos homens. O “cego” da nossa história é um símbolo de todos os homens e mulheres que vivem na escuridão, privados da “luz”, impedidos de chegar à plenitude da vida. É enfatizado o nome da piscina onde ocorre a cura – Silóe, que significa “enviado”. Em mais uma alusão à liturgia batismal, João insiste que a cura da cegueira mortal ocorre através de Jesus – O Enviado do Pai.

 

Homem, profeta e Messias – Analisando as etapas da história, podemos encontrar uma progressão na fé do cego, nos três interrogatórios: inicialmente ele é interrogado pelos vizinhos, depois pelos fariseus e, finalmente, pelo próprio Jesus. A cada passo ele aprofunda o seu conhecimento de Jesus. Aos vizinhos ele responde que Jesus é simplesmente um homem. Diante dos fariseus, ele reconhece que Jesus é um profeta. No diálogo com Jesus ele chega a proclamar que Jesus é o Filho do Homem, o Messias.

 

Catequese – A análise da história deixa claro que se trata de um texto criado para catequese, no final do primeiro século. Isso se explica pelo fato de que no tempo de Jesus ninguém era expulso da comunidade judaica por acreditar no seu messianismo. Isso passou a acontecer após 85 d.C., com a reconstituição do judaísmo na sua forma farisaica e rabínica, após a destruição de Jerusalém. Por isso, a confissão de fé do cego em Jesus custa-lhe a perseguição, situação vivida na última década do primeiro século. Mas, se custou a expulsão da comunidade judaica, também lhe trouxe a verdadeira luz da vida, a vida plena em Jesus.

 

Ironia – No final do texto, os fariseus ironizam a declaração de Jesus de que a cegueira não é causada pelo pecado, perguntando cinicamente, se ele os considera cegos. Ele retruca que a situação deles é muito pior – não é que não possam ver, é que não querem ver! Termina afirmando que a cegueira pior, a espiritual, realmente é conseqüência do pecado. A missão de Jesus no mundo causa uma inversão de situações: os que estão cegos e que chegam à fé, são curados e recebem a revelação da Luz do mundo, enquanto aqueles que se envaidecem de ser os esclarecidos, se fecham nos seus sistemas religiosos e ideológicos, mergulhando cada vez mais nas trevas e na perdição.

 

Luz do Mundo – O nosso encontro com Cristo tem que iluminar os olhos da nossa mente e espírito, para que vejamos o mundo com os olhos de Jesus e tornemos a nossa fé um seguimento Dele, continuando a Sua missão: “enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo”.

 

sábado, 23 de fevereiro de 2008

A Samaritana Pecadora

 

No Evangelho deste domingo, o evangelista João descreve uma catequese usada no final do primeiro século. Ele conta o encontro de Jesus com uma mulher da Samaria, em um poço na cidade samaritana de Sicar. A Samaria era a região central da Palestina: uma região heterodoxa, habitada por uma raça de sangue misturado (de judeus e pagãos) e de uma religião que misturava ritos e crenças.

 Samaritanos – Na época de Jesus existia uma animosidade muito viva entre samaritanos e judeus. Historicamente, a divisão começou quando os assírios invadiram a Samaria e deportaram cerca de 4% da população samaritana. Os colonos assírios, então, se instalaram na região e se misturaram com a população local. Na visão dos judeus, os habitantes da Samaria começaram nesse momento a paganizar-se (2 Re 17,29). A relação entre as duas comunidades deteriorou-se ainda mais quando, passados quase trezentos anos, os judeus retornaram do exílio e recusaram a ajuda dos samaritanos (Esd 4,1-5) para reconstruir o Templo de Jerusalém e denunciaram os casamentos mistos.

 Templo – Assim, os judeus tiveram que enfrentar a oposição dos samaritanos na reconstrução da cidade (Ne 3,33-4,17). Cem anos depois, novo elemento de separação: os samaritanos construíram um Templo no monte Garizim, que foi destruído duzentos anos depois por João Hircano. Mais tarde, os desentendimentos continuaram: o mais famoso aconteceu por volta do ano 6 d.C., quando os samaritanos profanaram o Templo de Jerusalém durante a festa da Páscoa, espalhando ossos humanos nos átrios.

 Desprezo – Os judeus desprezavam os samaritanos por serem uma mistura de sangue israelita com estrangeiros e consideravam-nos hereges em relação à pureza da fé. Os samaritanos pagavam aos judeus com um desprezo semelhante.

 O poço – A cena que João descreve passa-se em volta do “poço de Jacob”, situado no vale entre os montes Ebal e Garizim, perto da cidade samaritana de Siquém (em aramaico, Sicara – a atual Askar). Trata-se de um poço estreito, aberto na rocha calcária, cuja profundidade ultrapassa os 30 metros. Segundo a tradição, ele teria sido aberto pelo patriarca Jacob. Os dados arqueológicos revelam que ele serviu os samaritanos entre o ano 1000 a.C. e o ano 500 d.C. (embora ainda hoje se possa extrair água dele).

 Os sinais – O evangelista utiliza “personagens” para compor a sua história. A mulher representa a Samaria, que procura desesperadamente a água capaz de matar a sua sede de vida plena. Jesus vai ao encontro da “mulher”.

 Mais sinais – O “poço” representa a Lei, o sistema religioso à volta do qual se conformava a experiência religiosa dos samaritanos. Era nesse “poço” que os samaritanos procuravam a água da vida plena. Mas, os próprios samaritanos tinham reconhecido a insuficiência do “poço” da Lei e haviam buscado a vida plena noutras propostas religiosas. Os “cinco maridos” que a mulher já teve representam os cinco deuses dos samaritanos (2 Re 17,29-41).

 Água Viva – Estamos, pois, diante de um quadro que representa a busca da vida plena. Onde encontrar essa vida? Na Lei? Noutros deuses? É aqui que entra a novidade de Jesus. Ele senta-se “junto do poço”, como se pretendesse ocupar o seu lugar; e propõe à mulher/Samaria uma “água viva”, que matará definitivamente a sua sede de vida eterna. Jesus passa a ser o “novo poço”, onde todos os que têm sede de vida plena encontrarão resposta para a sua sede.

 Proposta de vida – Jesus tem para oferecer a “água do Espírito”, que no Evangelho de João é o grande dom de Jesus. A mulher/Samaria fica confusa, não sabendo escolher entre o caminho dos samaritanos ou dos judeus. No entanto, Jesus nega que se trate de escolher entre um caminho ou outro: não é no Templo de pedra de Jerusalém ou no Templo de pedra do monte Garizim que Deus está… O que se trata é de acolher à novidade do próprio Jesus, aderir a Ele e aceitar a sua proposta de vida.

 Resposta – A mulher/Samaria responde à proposta de Jesus abandonando o cântaro (agora inútil), e corre a anunciar aos habitantes da cidade o desafio que Jesus lhe faz. O texto fala, ainda, sobre a adesão entusiástica de todos os que tomam conhecimento da proposta de Jesus e a “confissão da fé”: Jesus é reconhecido como “o salvador do mundo” – isto é, como Aquele que dá ao homem a vida plena e definitiva (vers. 28-41).

 Missão de Jesus – O texto deixa claro que Jesus quer comunicar ao homem o Espírito que dá vida. O Espírito que Jesus tem para oferecer desenvolve e fecunda o coração do homem, dando-lhe a capacidade de amar sem medida. Eleva, assim, os que buscam a vida plena e definitiva à categoria de Homens Novos, filhos de Deus que fazem as obras de Deus. Do dom de Jesus nasce a nova comunidade.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A Transfiguração


 

O Evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos apresenta a Transfiguração de Jesus e nos ensina o caminho da escuta atenta de Deus e dos seus projetos, da obediência total e radical aos planos do Pai.

 

Os desanimados – O relato da transfiguração de Jesus é antecedido do primeiro anúncio da paixão (cf. Mt 16,21-23) e de uma instrução sobre as atitudes próprias do discípulo (convidado a renunciar a si mesmo, a tomar a sua cruz e a seguir Jesus no seu caminho de amor e de entrega da vida – cf. Mt 16,24-28). Depois de terem ouvido falar do “caminho da cruz” e de terem constatado aquilo que Jesus pede aos que o querem seguir, os discípulos estão desanimados e frustrados, pois a aventura em que apostaram parece encaminhar-se para um fracasso; eles vêem desaparecer, pouco a pouco – nessa cruz que irá ser plantada numa colina de Jerusalém – os seus sonhos de glória, de honras, de triunfos e perguntam-se se vale a pena seguir um mestre que nada mais tem para oferecer do que a morte na cruz.

 

Projeto – É neste contexto que Mateus coloca o episódio da transfiguração. A cena constitui uma palavra de ânimo para os discípulos (e para os crentes em geral), pois nela manifesta-se a glória de Jesus e atesta-se que Ele é – apesar da cruz que se aproxima – o Filho amado de Deus. Os discípulos recebem, assim, a garantia de que o projeto que Jesus apresenta é um projeto que vem de Deus; e, apesar das suas próprias dúvidas, recebem um complemento de esperança que lhes permite “embarcar” e apostar nesse projeto.

Simbologia – Literariamente, a narração da transfiguração é uma teofania – quer dizer, uma manifestação de Deus. Portanto, o autor do relato vai colocar no quadro que descreve todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus (e que encontramos quase sempre presentes nos relatos teofânicos do Antigo Testamento): o monte, a voz do céu, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem e mesmo o medo e a perturbação daqueles que presenciam o encontro com o divino. Isto quer dizer o seguinte: não estamos diante de um relato fotográfico de acontecimentos, mas de uma catequese (construída de acordo com o imaginário judaico) destinada a ensinar que Jesus é o Filho amado de Deus, que traz aos homens um projeto que vem de Deus.

 

Elementos – Esta página de catequese, destinada a ensinar que Jesus é o Filho de Deus e que o projeto que Ele propõe vem de Deus, está construída sobre elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento. Que elementos são esses?

 

O monte situa-nos num contexto de revelação: é sempre num monte que Deus Se revela; e, em especial, é no cimo de um monte que Ele faz uma aliança com o seu Povo. A mudança do rosto e as vestes de brancura resplandecente recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf. Ex 34,29), depois de se encontrar com Deus e de ter as tábuas da Lei. A nuvem, por sua vez, indica a presença de Deus: era na nuvem que Deus manifestava a sua presença, quando conduzia o seu Povo através do deserto.

 

Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); além disso, são personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva. O temor e a perturbação dos discípulos são a reação lógica de qualquer homem ou mulher diante da manifestação da grandeza, da onipotência e da majestade de Deus. As tendas parecem aludir à “festa das tendas”, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em “tendas”, no deserto.

 

Novo Moisés – A mensagem fundamental, moldada com todos estes elementos, pretende dizer quem é Jesus. Recorrendo a simbologias do Antigo Testamento, o autor deixa claro que Jesus é o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele é, também, esse Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Mais ainda: ele é um novo Moisés – isto é, aquele através de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a nova lei e através de quem Deus propõe aos homens uma nova aliança.

 

Novo Povo de Deus – Da ação libertadora de Jesus (o novo Moisés), irá nascer um novo Povo de Deus. Com esse novo Povo, Deus vai fazer uma nova aliança; e vai percorrer com ele os caminhos da história, conduzindo-o através do “deserto” que leva da escravidão à liberdade.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

As bem-aventuranças

  

O Evangelho deste domingo proclama os “bem-aventurados” e recomenda, aos crentes, a misericórdia, a sinceridade de coração, a luta pela paz, a perseverança diante das perseguições: essas são as atitudes que correspondem ao compromisso pelo “Reino”. Enquanto que no primeiro grupo de “bem-aventuranças” se constatam situações, no segundo grupo propõem-se atitudes que os discípulos devem assumir.

 

A nova Lei – Ao longo do seu texto, Mateus apresenta cinco longos discursos, nos quais agrupa “ditos” e ensinamentos, provavelmente proferidos por Jesus em várias ocasiões e contextos. Na visão de Mateus, esses cinco discursos traziam uma nova Lei, destinada a substituir a antiga Lei dada ao Povo por meio de Moisés e escrita nos cinco livros do Pentateuco.

 

As bem-aventuranças – As “bem-aventuranças” que Mateus coloca na boca de Jesus, são consideravelmente diferentes das “bem-aventuranças” propostas por Lucas (cf. Lc 6,20-26). Mateus tem nove “bem-aventuranças”, enquanto que Lucas só apresenta quatro; além disso, Lucas prossegue com quatro “maldições”, que estão ausentes do texto mateano; outras notas características da versão de Mateus são a espiritualização (os “pobres” de Lucas são, para Mateus, os “pobres em espírito”) e a aplicação dos “ditos” originais de Jesus à vida da comunidade e ao comportamento dos cristãos. É muito provável que o texto de Lucas seja mais fiel à tradição original e que o texto de Mateus tenha sido mais trabalhado.

 

O Reino – As “bem-aventuranças” são fórmulas freqüentes na tradição bíblica e definem sempre uma alegria oferecida por Deus. Devem ser entendidas no contexto da pregação sobre o “Reino”: Jesus proclama “bem-aventurados” aqueles que estão numa situação de debilidade, de pobreza, porque Deus está a ponto de instaurar o “Reino” e a situação destes “pobres” vai mudar radicalmente; além disso, são “bem-aventurados” porque, na sua fragilidade, debilidade e dependência, estão de espírito aberto e coração disponível para acolher a proposta de salvação e libertação que Deus lhes oferece em Jesus (a proposta do “Reino”).

Os pobres – As quatro primeiras “bem-aventuranças” referidas por Mateus (vers. 3-6) dirigem-se aos “pobres” (as segunda, terceira e quarta “bem-aventuranças” são apenas desenvolvimentos da primeira, que proclama: “bem-aventurados os pobres em espírito”). Saúdam a felicidade daqueles que se entregam confiadamente nas mãos de Deus e procuram fazer sempre a sua vontade; daqueles que, de forma consciente, deixam de colocar a sua confiança e a sua esperança nos bens, no poder, no êxito, nos homens, para esperar e confiar em Deus; daqueles que aceitam renunciar ao egoísmo, que aceitam despojar-se de si próprios e estar disponíveis para Deus e para os outros.

Os “mansos” – Não são os fracos, os que suportam passivamente as injustiças, os que se conformam com as violências orquestradas pelos poderosos; mas, são aqueles que recusam a violência, que são tolerantes e pacíficos, embora sejam, muitas vezes, vítimas dos abusos e prepotências dos injustos… A sua atitude pacífica e tolerante os torna membros de pleno direito do “Reino”.

Os que choram - São aqueles que vivem na aflição, na dor, no sofrimento provocados pela injustiça, pela miséria, pelo egoísmo; a chegada do “Reino” vai fazer com que a sua triste situação se mude em consolação e alegria…

Os que têm fome e sede de justiça – Provavelmente, a justiça deve entender-se, aqui, em sentido bíblico – isto é, no sentido da fidelidade total aos compromissos assumidos para com Deus e para com os irmãos. Jesus dá-lhes a esperança de verem essa sede de fidelidade saciada, no Reino que vai chegar.

Misericordiosos e puros de coração – Os “misericordiosos” são aqueles que têm um coração capaz de compadecer-se, de amar sem limites, que se deixam tocar pelos sofrimentos e alegrias dos outros homens e mulheres, que são capazes de ir ao encontro dos irmãos e estender-lhes a mão, mesmo quando eles falharam. Os “puros de coração” são aqueles que têm um coração honesto e leal, que não pactua com a duplicidade e o engano.

Os “que constroem a paz” – São aqueles que se recusam a aceitar que a violência e a lei do mais forte dirijam as relações humanas; e são aqueles que procuram ser – às vezes com o risco da própria vida – instrumentos de reconciliação entre os homens.

Os perseguidos por causa da justiça – São aqueles que lutam pela instauração do “Reino” e são desautorizados, humilhados, agredidos, marginalizados por parte daqueles que praticam a injustiça, que fomentam a opressão, que constroem a morte… Jesus garante-lhes: o mal não poderá vencer; e, no final do caminho, espera o triunfo, a vida plena.

Os perseguidos por causa de Jesus – Na última “bem-aventurança” (vers. 11), o evangelista dirige-se, em jeito de exortação, aos membros da sua comunidade que têm a experiência de serem perseguidos por causa de Jesus e convida-os a resistir ao sofrimento e à adversidade. Esta última exortação é, na prática, uma aplicação concreta da oitava “bem-aventurança”.

No seu conjunto, as “bem-aventuranças” deixam uma mensagem de esperança e de alento para os pobres e débeis. Anunciam que Deus os ama e que está do lado deles; confirmam que a libertação está para chegar e que a sua situação vai mudar; asseguram que eles vivem já na dinâmica desse “Reino” onde vão encontrar a felicidade e a vida plena.

sábado, 26 de janeiro de 2008

O projeto do Reino

  


O texto que nos é proposto como Evangelho deste domingo encerra a etapa da preparação de Jesus para a missão (Mt 3,1-4,16) e lança a etapa do anúncio do Reino.

 Local – O texto situa-nos na Galiléia, a região setentrional da Palestina, zona de população heterogênea e ponto de encontro de muitos povos. Faz referência também à cidade de Cafarnaum, cidade situada no limite do território de Zabulão e de Neftali, na margem noroeste do lago de Genezaré, na direção do “caminho do mar” (que ligava o Egito e a Mesopotâmia). Cafarnaum era considerada a capital judaica da Galiléia porque Tiberíades, a capital política da região, por causa dos seus costumes pagãos e por estar construída sobre um cemitério, era evitada pelos judeus. A sua situação geográfica abria-lhe, também, as portas dos territórios dos povos pagãos da margem oriental do lago.

 Cafarnaum – Na primeira parte (Mt 4,12-16), Mateus refere como Jesus abandona Nazaré, o seu lugar de residência habitual, e se transfere para Cafarnaum. Mateus descobre nesse fato um significado profundo, à luz de Is 8,23-9,1: a “luz” que havia de eliminar as trevas e as sombras da morte de que fala Isaías é, para Mateus, o próprio Jesus. Na terra humilhada de Zabulão e Neftali, vai começar a brilhar a luz da libertação; e essa libertação vai atingir, também, os pagãos que acolherem o anúncio do Reino. O anúncio libertador de Jesus apresenta, desde logo, uma dimensão universal.

 Reino – Na segunda parte (Mt 4,17-23), Mateus apresenta o lançamento da missão de Jesus: o conteúdo básico da pregação que se inicia vai se definindo, o “Reino” apresenta-se como realidade viva atuante e são apresentados os primeiros discípulos, que acolhem o apelo do “Reino” e que vão acompanhar Jesus na missão.

 Anúncio – Qual é, em primeiro lugar, o conteúdo do anúncio? O versículo 17 é claro: Jesus veio trazer “o Reino”. A expressão “Reino de Deus” refere-se, no Antigo Testamento e na época de Jesus, ao exercício do poder soberano de Deus sobre os homens e sobre o mundo. Decepcionado com a forma com que o os reis humanos exerceram a realeza, o Povo de Deus começa a sonhar com um tempo novo, em que o próprio Deus vai reinar sobre o seu Povo. Para eles, esse reinado será marcado pela justiça, pela misericórdia, pela preocupação de Deus em relação aos pobres e marginalizados, pela abundância e fecundidade, pela paz sem fim.

 Arrependei-vos – Jesus tem consciência de que a chegada do “Reino” está ligada à sua pessoa. Para Mateus o primeiro anúncio resume-se no seguinte slogan: “arrependei-os, porque o Reino dos céus está para chegar”. O convite à conversão é um convite a uma mudança radical na mentalidade, nos valores, na postura vital. Corresponde, fundamentalmente, a um reorientar a vida para Deus, a um reequacionar a vida, de modo que Deus e os seus valores passem a estar no centro da existência do homem. Só quando o homem aceita que Deus ocupe o lugar que lhe compete, está preparado para aceitar a realeza de Deus… Então, o “Reino” pode nascer e tornar-se realidade no mundo e nos corações.

 Apóstolos – Finalmente, Mateus descreve o chamamento dos primeiros discípulos. Não se trata, segundo parece, um relato jornalístico de acontecimentos, mas de uma catequese sobre o chamamento e a adesão ao projeto do “Reino”. Através da resposta pronta de Pedro e André, Tiago e João, propõe-se um exemplo da conversão radical ao “Reino” e de adesão às suas exigências.

 Chamamento – O relato ressalta uma diferença fundamental entre os chamados por Jesus e os discípulos que se juntavam à volta dos mestres do judaísmo: não são os discípulos que escolhem o mestre e pedem para entrar no seu grupo, como acontecia com os discípulos dos “rabbis”; mas a iniciativa é de Jesus, que chama os discípulos que Ele próprio escolheu, que os convida a segui-Lo e lhes propõe uma missão.

 Opção – A resposta dos quatro discípulos ao chamamento é também inusitada: renunciam à família, ao seu trabalho, às seguranças instituídas e seguem Jesus sem condições. Esta ruptura (que significa não só uma ruptura afetiva com pessoas, mas também a ruptura com um quadro de referências sociais e de segurança econômica) indicia uma opção radical pelo “Reino” e pelas suas exigências.

 Missão – Uma palavra para a missão que é proposta aos discípulos que aceitam o desafio do “Reino”: eles serão pescadores de homens. O mar é, na cultura judaica, o lugar dos demônios, das forças da morte que se opõem à vida e à felicidade dos homens; a tarefa dos discípulos que aceitam integrar o “Reino” será, portanto, libertar os homens dessa realidade de morte e de escravidão em que eles estão mergulhados, conduzindo-os à liberdade e à realização plenas.

 Testemunhas – Estes quatro discípulos representam todo o grupo dos discípulos, de todos os tempos e lugares… Como eles, devemos responder positivamente ao chamamento, optar pelo “Reino” e pelas suas exigências e tornarmo-nos testemunhas da vida e da salvação de Deus no meio dos homens e do mundo.